sábado, 8 de março de 2014

Capítulo 23 - Um número tatuado no braço

— Cadáver de Hitler coisa nenhuma! Apenas um boneco de palha! Uma
cabeça de cera! Esse louco Anjo da morte criou uma farsa para manter vivo seu
doido projeto de provocar outra guerra mundial!
Na sala de espera do hospital, aguardando para uma visita a Ferenc Gábor,
Andrade não conseguia parar de falar naquela aventura tresloucada ao Doutor
Pacheco e aos seus queridos meninos. Como uma homenagem especial àqueles
adolescentes fantásticos e àquele dedicado policial, o Doutor Pacheco até tinha
tirado os óculos escuros.
O gordo detetive continuava:
— E o molequinho da África do Sul era outra fraude! Hitler jamais teve
filhos, netos ou bisnetos! Tudo não passou de uma farsa louca. Como é fácil fazer
as pessoas acreditarem em qualquer coisa!
Miguel balançou a cabeça:
— Só que, na verdade, Andrade, na verdade verdadeira, no que realmente
aconteceu, ninguém vai acreditar!
Os meninos tinham razão. Não adiantava contar tudo o que tinha acontecido
naquela noite. Se a imprensa publicasse aquela história, ninguém acreditaria.
Além disso, não havia nenhuma prova material nem contra o Anjo da morte
nem contra a Organização. Mais uma vez, os seus queridos meninos ficariam na
sombra, como se não tivessem tido nada com o esclarecimento daquele caso!
O gordo detetive olhava orgulhoso para Calú e Chumbinho. Como dois garotos
podiam ter feito aquilo tudo? Como Chumbinho podia ter feito aquele discurso? O
que teria acontecido se aqueles cinco meninos não tivessem se metido naquele
caso?
Todos gostariam de poder anunciar para o mundo que um dos maiores
criminosos nazistas havia sido capturado. Mas não havia como provar coisa
alguma. Para todos os efeitos, aquele velho tinha a identidade de um judeu
chamado Ferenc Gábor e era apenas o benemérito diretor do Lar da Juventude
Brasileira: uma instituição legal, "filantrópica", inatacável. O Anjo da morte não
poderia ser julgado criminoso por recolher jovens abandonados pelas ruas e darlhes
alimento e um teto.
Foi possível comunicar-se com a polícia de todos os países da América Latina
de modo que os conspiradores que viriam ao Brasil fossem localizados. Mas
também nada havia que pudesse ser usado contra eles. Nem mesmo contra os
líderes do crime organizado que constavam da cadernetinha do Anjo da morte.
Que crime tinham eles cometido? Ninguém pode ser julgado pela intenção de
reunir-se no Brasil com o chefe de uma instituição filantrópica. A Organização
continuaria impune. Talvez a lição tivesse servido, e eles não tentassem mais
uma loucura como aquela. Talvez...
O Anjo da morte seria levado a julgamento apenas pelo assassinato de
Solomon Friedman. Sua letra trêmula no impresso amarelo seria prova suficiente
para condená-lo. Seria também julgado pelo atentado contra Ferenc Gábor, uma
vez que a arma dos dois crimes era a mesma. Fora isso, nada mais podia ser
alegado contra ele. Os milhares de seres humanos que assassinara e os milhares
de crianças que o canalha havia mandado embalsamar continuariam esquecidos.
— E os jovens do Lar da Juventude Brasileira, Andrade? — perguntou Miguel.
— O que vai ser feito com eles?
O detetive não conseguiu responder. O que ele poderia dizer? Que aqueles
jovens agora seriam recolhidos pela sociedade e a eles seria dado um lar,
alimento, saúde, educação, afeto? E quanto de tudo isso eles tinham recebido até
agora? E quanto de tudo isso recebia a maior parte da infância e da juventude
brasileira?
Andrade não respondeu. Só sentiu vergonha. Uma imensa vergonha.
— O Anjo da morte estava conseguindo convencer pessoas com sua loucura
do mesmo modo como Hitler conseguiu convencer o povo alemão, décadas atrás
— comentou o Doutor Pacheco. — Eu nunca poderei entender isso tudo! Como é
que um louco como Adolf Hitler pôde dominar as consciências de uma gente
civilizada como o povo alemão?
Andrade falou alto, como se discutisse futebol:
— Louco? Louco nada! Um louco pode cometer uma violência, uma
barbaridade em seus acessos de loucura. Mas não vive em acessos o tempo todo.
Hitler não era louco.
Acusá-lo de louco seria uma forma de desculpá-lo. Ele era mau!
— Ele era o Mal... — ajuntou Magrí.
— Assim como Kurt Kraut. O nazismo aconteceu porque um grande demônio
deu a outros demônios a oportunidade de fazer tudo o que suas mentes sórdidas
imaginavam. Eles mentiram e enganaram o povo alemão. Por causa deles, foi
jogada uma nódoa sobre a História da Alemanha. Uma nódoa que o povo
alemão não merece...
— Um assassino que embalsamava cabeças de crianças! — lamentou o
Doutor Pacheco. — Eu posso não acreditar em Deus, porque hoje não há
ninguém bom o suficiente para comprová-lo. Mas eu acredito no diabo, porque
existe este maldito Kurt Kraut para provar a existência do Mal absoluto sobre a
Terra. Porque existiu e existe o nazismo, para provar a força do demônio!
Andrade sorriu. Para ele, a prova material da bondade de Deus era a
existência de um certo grupo de cinco adolescentes...
Magrí enlaçou carinhosamente o braço de Calú. A interpretação de Hitler a
que ela havia assistido tinha sido demais! Aquele rapazinho era um ator tão bom
que ela pediria um autógrafo a ele. Só que ela não precisava de um autógrafo de
Calú. A menina tinha Calú inteirinho para ela!
Miguel remexeu-se na cadeira, incomodado com o agarramento dos dois.
Crânio quase mordeu a gaitinha.
Naquele momento, apareceu um funcionário do hospital avisando que Ferenc
Gábor já tinha voltado para o apartamento, depois de um último exame.
— Vamos subir, pessoal — convidou o Doutor Pacheco.
— O pobre velho vai ficar muito contente ao saber que enjaulamos a fera que
tanto o fez sofrer!
O velho Ferenc Gábor estava deitado e recebeu os visitantes com um sorriso.
Já estava corado e, não fossem as bandagens que lhe enfaixavam toda a volta do
abdômen e que apareciam sob a camisolinha que todos os pacientes tinham de
usar naquele hospital, ninguém diria que o velho sofrerá um atentado há apenas
dois dias.
Miguel olhou para o velho. Um companheiro de Solomon Friedman que não
chegara a tempo de rever o amigo.
Em seu antebraço esquerdo, o rapaz viu a tatuagem que marcava seres
humanos antes de levá-los ao matadouro. Lá estava o número, terminado por
4445.
"Este número não dá pra rir", pensou o rapaz, lembrando-se da narrativa de
Calú. "Não dá pra fazer quá-quá-quá-quá..."
O líder dos Karas estava pálido como uma folha de papel ao perguntar para o
seu amigo detetive:
— Andrade, eu tenho uma pergunta muito importante. Preste atenção.
Lembra-se da manhã seguinte ao assassinato de Solomon Friedman quando você
veio nos buscar no Colégio Elite?
— Claro que lembro, Miguel. Por que isso agora?
— Lembra-se que havia um jornal no fusquinha? Você tinha comprado jornal
naquela manhã?
— Não...
— Então... aquele jornal era do dia anterior?
O Doutor Pacheco pigarreou:
— Um momento, Miguel. Acho que não podemos nos demorar muito para
não perturbar o descanso do senhor Gábor — e voltou-se para Calú. — Você,
Calú, que fala francês, poderia explicar para o senhor Gábor que o caso já foi
resolvido e...
A interrupção de Miguel caiu sobre todos naquele quarto como uma descarga
elétrica:
— Não, Doutor Pacheco. Este caso não está resolvido!
— Vamos, Miguel! O que você está dizendo? Não podemos acusar Kurt Kraut
de ser o Anjo da morte, mas ele vai passar o tempo que lhe resta para viver atrás
das grades, pelo assassinato de Solomon Friedman. Acho que é o suficiente
para...
— O Anjo da morte não assassinou Solomon Friedman, Doutor Pacheco!
— Como?!
Miguel suspirou. A revelação da verdade pareceu-lhe cruel demais. Na
cama, sem entender o que estava sendo dito a sua volta, o velho Ferenc Gábor
mostrou-se um pouco aflito:
— Qu 'est ce qu 'ily a? Qu 'est ce qu 'il dit?
Miguel olhou cada um dos presentes nos olhos e continuou a falar, fitando por
fim o velho deitado na cama do hospital.
— Este senhor não chegou depois do assassinato de Solomon Friedman.
Aquele jornal que encontramos no fusquinha de Andrade era do dia anterior. Isto
quer dizer que este senhor chegou a São Paulo na manhã do dia em que Solomon
Friedman foi assassinado!
Andrade sorriu incomodado. Não gostava de ver o seu querido Miguel passar
vergonha:
— Ora, Miguel! E daí? O que muda este caso o fato de o senhor Ferenc Gábor
ter chegado antes ou...
— O Anjo da morte fazia-se passar por Ferenc Gábor. Mas Ferenc Gábor não
existe mais. Ele morreu em 1944, num velho armazém na União Soviética!
Andrade estava pasmo. Tentou abrir a boca e dizer que aquilo era um
absurdo, que Ferenc Gábor estava ali, na frente deles, deitado na cama, mas
resolveu calar-se. O rapazinho estava seguro demais, tenso demais. E o gordo
detetive sabia que não era bom contrariar Miguel nessas ocasiões.
— Lembra-se, Andrade? O assassino foi convidado para a estréia do Rei Lear
pelo próprio Solomon Friedman. Você acha que o velho Sol convidaria Kurt
Kraut para sua estréia? É claro que não! Mas ele convidaria um companheiro de
campo de concentração que chegara naquele mesmo dia a São Paulo, não
convidaria?
— Você quer dizer que aquele convite foi oferecido por Solomon Friedman
ao senhor Ferenc Gábor? A este senhor?
Miguel cortou bruscamente:
— A este senhor sim, mas este senhor não é Ferenc Gábor!
Forçou-se a sorrir ao falar em francês com o velho:
— Bonjour, Monsieur Davi Segai!
Naquele instante, o velho adquiriu um aspecto mais condizente com alguém
que tinha sido ferido à bala. Empalideceu, quis falar, mas parou, com a boca
aberta, no meio da primeira palavra.
— Davi Segai? — espantou-se o Doutor Pacheco.
— Que negócio é esse?
Miguel pegou o braço nu do velho e o levantou:
— Vejam! 4445! Lembram-se da seqüência da numeração dos três amigos
que Solomon Friedman contou a Calú?
Compreendendo aonde Miguel queria chegar, Calú repetiu, em voz alta:
— Ele disse: "Aí está, Calú: quá-quá-quá-quá! Parece uma gargalhada, não é?
Ah-ah-ah-ah! Quá-quá-quá-quá!
Ferenc Gábor foi o primeiro a receber este 'enfeite'. Depois foi a minha vez
e, por fim, a vez de Davi Segai. Gábor tinha de ser o primeiro! Era o primeiro
em tudo, o mais valente, o mais ousado, o menos acomodado dos homens..."
— Ferenc Gábor foi o primeiro! — continuou Miguel.
— O número de Solomon Friedman terminava por 4444! Assim, o número de
Ferenc Gábor, o "primeiro em tudo", deveria terminar por 4443. Logo, o de Davi
Segai terminaria por 4445!
O velho não resistia ao rapaz, que mantinha seu braço estendido. Ali estava
tatuado claramente: 4445. O número de Davi Segai!
— A exposição! — lembrou Magrí. — A exposição que veio ao Brasil é de
"desenhos feitos dentro do campo de Sobibor"! Solomon Friedman contou a Calú
que os desenhos se perderam na fuga. Ficaram completamente estragados depois
do mergulho nos tonéis de sujeira e no rio Bug!
— É isso! — reforçou Crânio. — Solomon Friedman foi informado pelos
russos de que o nome do sobrevivente Ferenc Gábor estava anotado duas vezes
no registro de ocorrências daquela noite. Kurt Kraut e Davi Segai declararam-se
como Ferenc Gábor, cada um por sua vez, quando recobraram a consciência.
Dois Ferenc Gábor! Mas dois falsos Ferenc Gábor!
O sangue subiu às faces de Calú e ele praticamente se jogou na direção do
velho, agarrando-lhe o braço:
— Por quê? Por que o senhor tomou o lugar de Ferenc Gábor? O senhor vestia
a farda de Kurt Kraut naquela noite! Qual foi o outro corpo encontrado com a
farda? O rosto e o braço esquerdo queimados, não é? Para que ninguém pudesse
reconhecer o cadáver, não é? Por quê? De quem era aquele cadáver? Solomon
Friedman, o Anjo da morte e o senhor sobreviveram à explosão da granada
russa. Só poderia ser de Ferenc Gábor, não é? Por quê? Por que o senhor matou
Ferenc Gábor e vestiu-lhe a farda de Kurt Kraut? Por que se fez passar por
Ferenc Gábor por todos estes anos? Por quê?
Muito nervoso, o rapazinho fazia as perguntas em português. O velho, na
cama, não entendia as palavras, mas compreendia os nomes de Kurt Kraut, de
Solomon Friedman, de Ferenc Gábor e de Davi Segai, gritados por Calú.
O velho baixou a cabeça e começou a chorar.
O Doutor Pacheco não compreendia nada. Ele não tinha ouvido o relato de
Solomon Friedman que Calú contara aos outros e, além de tudo, não conhecia
aqueles garotos.
Calú não pôde traduzir a acusação para o francês, tão nervoso se encontrava.
Esse papel coube a Magrí.
O velho não resistiu às acusações. Estava frágil e chorava como uma criança
enquanto confessava tudo.
Magrí traduziu a confissão:
— Este homem era um gênio da pintura, frustrado por não ser reconhecido e
admirado — Magrí misturava seus próprios comentários à tradução das palavras
do velho.
— Naquela noite, depois da explosão da granada russa, só Ferenc Gábor
morreu. Este homem, Davi Segai, nada sofreu, mas pensou que todos os outros
estivessem mortos. Aí, então, imaginou seu plano maluco: resolveu "morrer" aos
olhos do mundo, para que seu valor artístico pudesse ser, enfim, reconhecido.
Vestiu a farda do Anjo da morte no cadáver do amigo Gábor e jogou-o sobre o
fogareiro, de modo a queimar-lhe o rosto e o braço tatuado. Queimou também as
pastas com os documentos dos três prisioneiros.
Ninguém saberia o que acontecera, e ele poderia fazer-se passar por Ferenc
Gábor o resto da vida. Assim ele fez. Passou estas décadas "cuidando" da obra de
Davi Segai. E enriquecendo com ela. Apesar disso, foi ficando cada vez mais
neurótico, pois era obrigado a pintar somente os pesadelos que mantinha na
memória porque, para todos os efeitos, aqueles quadros tinham sido todos
pintados antes da suposta morte de Davi Segai. Assim, ele só podia pintar o
passado. Por isso ele misturou em suas telas a loucura do nazismo, o povo judeu
massacrado e as suas próprias neuroses, por viver esse tempo todo ouvindo
elogios ao gênio de Davi Segai como se fosse outra pessoa! Davi Segai falava
sem parar e sem olhar para ninguém.
Magrí continuou traduzindo e introduzindo as outras informações que eles
tinham para que o Doutor Pacheco pudesse entender melhor o que estava
acontecendo:
— Solomon Friedman deve ter exultado de felicidade ao ler nos jornais que
chegaria ao Brasil seu saudoso companheiro Ferenc Gábor. Foi ao hotel à
procura do amigo e, não o encontrando, deixou um ingresso para a noite de
estréia do Rei Lear e uma carta, com todo o seu carinho.
Este homem, ao encontrar o ingresso e a carta, enlouqueceu de vez. Ele não
sabia da existência de Solomon, de uma testemunha que poderia desmascarar
sua fraude. Ele pensava que todos que pudessem reconhecê-lo estivessem
mortos. Assim, decidiu que Solomon Friedman não poderia continuar vivo. Pouco
antes de a peça começar, ele resolveu cometer o crime. Ao sair da poltrona,
pediu licença àquela mulher, com seu sotaque alemão. Era o sotaque de Davi
Segai, não o de Kurt Kraut. Foi até os camarins e esbarrou em você, Calú...
— Por isso o velho Sol morreu com um sorriso! — comentou Crânio. — Ele
deve ter reconhecido seu velho amigo Davi Segai pelo reflexo no espelho do
camarim, um segundo antes de receber um tiro na nuca!
O Doutor Pacheco estava de boca aberta:
— Mas e a tentativa de assassinato contra ele, na galeria de arte?
— Ele ficou apavorado ao receber nossa visita, Doutor Pacheco. Foi para o
escritório, alegando cansaço, e deu um tiro em si mesmo, de raspão, segurando a
pequena pistola com um lenço, para não deixar impressões digitais. Lembram-se
do lenço com que ele procurava estancar o sangramento? Deixou a janela aberta
e jogou a pistola perto dela, para que a polícia pensasse que o assassino havia
deixado a arma cair enquanto fugia. Como era a mesma pistola com que ele
matara Solomon Friedman, o plano parecia perfeito!
— Este canalha matou o próprio amigo, apenas e somente para não ser
reconhecido! — espantou-se o Doutor Pacheco, deixando-se cair numa poltrona
que havia no quarto do hospital. — Incrível! Se não fosse por suas revelações,
Calú, nós jamais conseguiríamos desmascarar este assassino.
Abriu os braços, concluindo:
— Muito bem: temos o suficiente para conseguir uma condenação. Pena é
que teremos de pôr aquele maldito Kurt Kraut em liberdade!
Calú pulou:
— Como?! Libertar o Anjo da morte?
— Sim, Calú. Jamais poderemos provar que aquele velho é Kurt Kraut, o
Anjo da morte. Oficialmente, sua vida como carrasco nazista acabou naquela
noite, em 1944, na União Soviética. O único modo que tínhamos de puni-lo,
indiretamente, por seus milhares de crimes, era condená-lo, como Ferenc Gábor,
pelo assassinato de Solomon Friedman...
Todos, no quarto do hospital, olhavam para Calú. O rapazinho tremia,
totalmente dividido por dentro. Cravou seu olhar no chão e falou, com um fio de
voz:
— Doutor Pacheco, eu não vou testemunhar contra este homem.
Ninguém falou nada. Mas, pela cabeça de todos, passou o dilema de Calú: que
assassino eles queriam prender?
Davi Segai, que matara o amigo Solomon Friedman? Ou Kurt Kraut, que
assassinara milhares de inocentes, homens, velhos, mulheres, e mandara
embalsamar dezoito mil cabecinhas de crianças? Quem merecia ir para a
cadeia?
Davi Segai, que ficara famoso porque fora considerado morto, porque sofrerá
num campo de concentração, porque defendera a memória de todas as vítimas
com a sua pintura?
O que fazer? Inocentar um maldito carrasco, uma prova da existência do
demônio? Ou levar à cadeia um gênio que todos pensavam morto? E que poderia
ainda, acobertado pelo disfarce da morte, produzir mais algumas daquelas
maravilhosas telas que chocavam o mundo e que mantinham viva a lembrança
dos horrores do nazismo, que nunca, nunca deveriam ser esquecidos, sob pena de
se repetirem?
A decisão era difícil. Do ponto de vista estrito da justiça, era até imoral. Mas
todos compreenderam o enorme sacrifício de Calú, que deixaria livre o covarde
assassino do seu querido professor de teatro para que a Humanidade pudesse
punir o Anjo da morte, embora tardiamente, embora não com uma pena
proporcional aos seus crimes hediondos...
O Doutor Pacheco falou lentamente, dirigindo-se a Magrí:
— Por favor, diga a esse desgraçado que desapareça deste país. Diga a ele
que vá para onde quiser e tente viver com o crime que ele cometeu em sua
consciência.
Todos choravam ao sair do hospital.
Anoitecia no Colégio Elite.
O pátio estava deserto quando Magrí saiu, depois de passar a tarde na
biblioteca, recuperando as matérias que perdera por causa daqueles dias de
aventura.
No fundo do pátio, a menina viu uma silhueta encostada no muro, de cabeça
baixa.
A silhueta era Calú.
Lentamente, Magrí aproximou-se do amigo.
Calú ergueu os olhos ao perceber a presença da menina. Mas não a fitou. Seus
olhos perderam-se longe, sob sobrancelhas apertadas, como se encarasse sua
própria consciência.
— Solomon Friedman... — Calú pronunciava lentamente o nome do velho
amigo, como se avaliasse o peso de cada sílaba. — Em muitas línguas,
"Friedman" significa "homem livre"... O velho Sol lutou a vida inteira para
conquistar a liberdade, para tornar-se um homem livre. E foi aqui, no Brasil, que
ele conseguiu construir sua liberdade...
Magrí ouviu com ternura a declaração de admiração e saudade que Calú
sentia pelo velho Sol. E reforçou:
— E, em troca, com sua arte, esse grande homem ajudou-nos a consolidar a
nossa própria liberdade... Nós nunca o esqueceremos, querido...
O rapaz voltou os olhos para sua querida amiga:
— Magrí... Será que eu fiz a escolha certa, Magrí?
As mãos espalmadas da menina apoiaram-se docemente sobre o peito do
rapaz. Ele a abraçou e sentiu-se envolvido pelo calor e pelo perfume do corpinho
da amiga.
— Calú, meu querido!
Ela queria falar, queria consolar o amigo, queria elogiar-lhe a valentia, a
inteligência. Gostaria de mostrar-lhe que ele escolhera o único caminho justo.
Mas, com o corpo colado ao corpo forte de Calú, Magrí só pôde levantar o
rosto. Sua mãozinha apoiou-se na nuca do rapaz e trouxe seu rosto delicadamente
em sua direção.
Calú sentiu a deliciosa pressão dos lábios de Magrí esmagando-se contra os
seus.
E, por um momento, pensou que um beijo como aquele, daquela menina
adorada, compensava tudo. Todos os riscos que tinha enfrentado para livrar a
Humanidade da sombra sinistra do Anjo da morte…





FIM

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