quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 3 - O inferno começa no paraíso

A visão do cerrado mato-grossense e a sucessão monótona das grandes áreas
desmaiadas não conseguiam desviar-lhe a atenção. Crânio olhava sem nenhum
interesse pela vigia, enquanto o avião perdia altitude, preparando-se para o pouso
em Campo Grande.
Seu objetivo era encontrar uma resposta, por pequena que fosse, para aliviar
o peso que lhe trazia a lembrança do professor Elias. Do pobre professor
massacrado.
O alto-falante do avião avisou que o rapazinho estava sendo esperado no
aeroporto, no balcão da companhia aérea.

* * *

Para alguém como tia Matilde, que vivera tantos anos nos Estados Unidos, o
domínio da língua portuguesa continuava perfeito. Crânio releu o bilhete que
recebera no balcão e guardou-o carinhosamente no bolso da jaqueta. Tia Matilde
se atrasaria e ele deveria esperar ali mesmo, no saguão do aeroporto.
Esperar... O gênio dos Karas aproximou-se das portas envidraçadas que
davam acesso às pistas. Do outro lado dos vidros, um empregado puxava um
carrinho de bagagens sobre o qual havia uma jaula, desembarcada no mesmo
avião em que Crânio viajara. Dentro, a sombra de um cão negro.
A surpresa de uma sirene desviou a curiosidade de Crânio. Um grupo de
funcionários corria para a pista. Uma ambulância e um carro de bombeiros
lideravam a corrida, a toda velocidade.
No saguão, uma mocinha, ao lado de Crânio, olhava na mesma direção.
Parecia uma índia. Bem jovem, morena, de cabelos lisos e negros, carregando
um bebê envolto em uma manta colorida, apesar do calor.
Crânio sorriu para a mocinha. Ela não respondeu ao cumprimento.
O empregado que trouxera o carrinho abriu a jaula. O cão negro, preso por
uma coleira, foi entregue a um homem de bigode.
Nesse momento, os olhares do jovem gênio dos Karas, da mocinha índia e do
homem de bigode voltaram-se para um só ponto. Na cabeceira da pista, um C-
47, velho bimotor cargueiro da 2ª Guerra, aproximava-se para pouso. Mesmo
daquela distância, Crânio notou que uma das hélices estava imóvel.
A tragédia parecia estar próxima, mas ainda assim o rapaz não pôde deixar
de sorrir: o enorme avião estava pintado de rosa-choque!
Perseguido pela ambulância e pelo carro de bombeiros, o avião rosa-choque
tocou a pista e ricocheteou pesadamente, como uma bola cheia de água. Os
freios começaram a detê-lo, mas o outro motor, ainda em funcionamento, fez o
avião girar, arremetendo perigosamente contra a ambulância, que também fez
meia-volta. Por um momento, aquilo pareceu uma perseguição de comédia. A
ambulância e o C-47 pareciam querer evitar a colisão, mas quase sempre
desviavam para o mesmo lado. Pelo jeito, o piloto deveria ser um motorista de
fim de semana.
A ambulância jogou-se sobre os canteiros gramados e o avião passou
pesadamente, guinchando os pneus. Quase no fim do asfalto, guinou
violentamente, agora com a velocidade sob controle.
Quando o avião imobilizou-se, o grupo de funcionários já estava a postos,
encostando a escadinha de desembarque. Desviando a atenção do rapaz, que
estava curioso para ver quem desceria do avião rosa-choque, a porta
envidraçada foi aberta e o homem de bigode, com o cão negro seguro pela
coleira, entrou no saguão.
O gênio dos Karas afastou-se para dar passagem aos dois.
O cão olhou para o lado do garoto e rosnou. Agarrada pelo homem de bigode,
a correia esticou-se ao máximo e o latido furioso ecoou como um som dos
infernos.
Crânio recuou, surpreso, e sentiu o corpo da mocinha índia que se protegia
atrás dele.
Dava para ler um brilho estranho no olhar do homem de bigode. Antes que
acontecesse, o rapaz percebeu que a correia ia ser solta.
Por quê?
O cão negro, num salto, investiu contra ele. Crânio desviou-se e girou no ar a
maletinha que trazia, atingindo o animal em cheio. O cão rolou de lado,
recompôs-se e saltou novamente. Não queria nada com Crânio. Era a mocinha
índia que o animal queria. Mas, a essa altura, o rapaz já agarrara a correia.
Susteve o primeiro tranco do salto do cão em direção à mocinha, puxou-o e
conseguiu prender a correia na maçaneta da porta.
Com o coração aos pulos, tonto pela luta, pelas vozes excitadas e pelo latido
histérico que o envolviam, Crânio voltou-se para a mocinha.
— Você está bem?
O homem de bigode aproximava-se. A mocinha, olhos arregalados de medo,
deu dois passos em direção ao rapaz e, inesperadamente, jogou o bebê em seu
colo.
— O quê...?
Sem uma palavra, a mocinha abriu passagem por entre o grupo de curiosos
que já os cercava, e desapareceu. O homem de bigode empurrou o rapaz e
enfiou-se por entre as pessoas, perseguindo a fugitiva.
— Pega! Não deixa fugir!
Sem entender nada, Crânio olhou para o bebê. Ele não acordara com todo
aquele barulho.
O rapaz abriu delicadamente a manta e viu uma carinha de olhos fechados,
azulada. Quase que com medo tocou o rostinho do bebê. Apesar de todo o calor
do centro-oeste, o bebê estava gelado.
— Meu Deus! O bebê está...
— Pega esse rapaz aí! É um deles!
Era a voz do homem de bigode que, de revólver em punho, avançou em
direção ao garoto. Instintivamente, Crânio recuou, como que protegendo o bebê.
— Ei, espere um pouco!
A mão armada ergueu-se e socou a cabeça do rapaz com a coronha do
revólver. Uma bola de fogo espalhou-se por dentro de sua cabeça. Agarrando o
bebê, Crânio escorregou suavemente para o chão. Tentou arregalar os olhos,
tentou entender, mas sentiu-se entorpecido, enfraquecido, sentiu-se morrer.

* * *

Não chegou a perder completamente os sentidos. Mas tudo, à sua volta,
passava-se como um pesadelo, superpovoado de vultos disformes, com o
burburinho de vozes misturadas, com a sensação de mãos que o apalpavam, que
o revistavam. A cabeça doía e parecia crescer por dentro, parecia querer
explodir.
— Abram caminho... é o Senador...
Um vulto maior que todos os outros debruçou-se sobre o garoto. Os homens
que o revistavam afastaram-se um pouco, respeitosamente. Mãos enormes
ergueram-lhe suavemente a cabeça, sustendo-o pela nuca.
O homem de bigode estava de volta e ajoelhou-se também, ao lado de
Crânio.
— Ele está limpo, tenente — adiantou-se uma voz. — Não encontramos nada.
Só se a coisa estiver com a garota, mas ela fugiu.
Os latidos do cão negro continuavam, agora numa histeria monótona.
O tenente de bigode falou, excitado:
— O cão ainda está latindo. A coisa ainda está por aqui.
— Não pode estar, tenente. Desculpe, mas não há nada com o garoto, nem na
maleta. Deve estar com a mocinha. Ela jogou o bebê no colo desse aí e fugiu.
Talvez ainda seja possível pegá-la...
Em meio a uma névoa vermelha, que lhe prejudicava a visão, Crânio viu o
tenente de bigode tomar o bebê de seus braços, levantar-se e aproximar-se do
cão. Os latidos aumentaram, furiosos.
A voz firme, de barítono, do grandalhão a quem chamavam Senador, fez-se
ouvir pela primeira vez:
— Há algum médico por aí? Precisamos de um médico!
O tenente afastou a manta e olhou o bebê. Sua expressão foi de nojo.
— Alguém chamou um médico? — ofereceu-se alguém. — Eu sou médico!
A voz do tenente comandou, agressivamente:
— O senhor é médico? Examine este bebê.
— Examine o rapaz primeiro, doutor. 
Ninguém se opôs à voz grossa do Senador.
O médico ajoelhou-se ao lado do garoto. Crânio não conseguia articular
palavra. Mal sentia as mãos que o examinavam. A pequena surpresa de uma
agulhada no braço fez com que ele abrisse um pouco os olhos. Viu depois o
médico levantar-se e examinar o pacotinho que estava nos braços do tenente. A
dor aumentava. Aos poucos, uma espécie de entorpecimento crescia também,
como um alívio. Antes que a névoa vermelha escurecesse por completo,
conseguiu ouvir a voz do médico:
— Barbaridade! Como alguém pôde fazer uma coisa destas?
As vozes, os latidos e toda a excitação desapareceram repentinamente dos
sentidos de Crânio, como se alguém tivesse desligado um rádio.

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