quarta-feira, 12 de março de 2014

Capítulo 3

Daphne cheirava a cerejeiras e amêndoas. Seu perfume era o mesmo
desde os treze anos. Ela o usava na noite anterior e eu ainda podia sentilo,
apesar de ela desejar não me ver nunca mais.
Ela tinha uma cicatriz no pulso, de um arranhão que fez ao tentar
subir em uma árvore aos onze anos. Foi culpa minha. Ela não era tão
feminina na época, e eu a convenci — ou melhor, a desafiei — a apostar
uma corrida até o topo de uma das árvores que cercavam o jardim.
Ganhei.
Daphne tinha pânico do escuro, e como eu também tinha meus
medos, nunca caçoei dela por isso. E ela tampouco caçoava de mim. Pelo
menos não quando as coisas eram importantes.
Ela era alérgica a frutos do mar. Sua cor preferida era amarelo. Por
mais que tentasse, era incapaz de cantar, mesmo que sua vida dependesse
disso. Só que ela sabia dançar, então não a ter tirado para uma dança na
noite passada significou mais do que uma simples decepção.
Quando eu tinha dezesseis anos, Daphne me mandou um estojo novo
para a minha câmera, como presente de Natal. Apesar de eu nunca ter
dado qualquer indício de querer me livrar do estojo antigo, significou
tanto para mim saber que ela prestava atenção nas coisas que eu gostava
que passei a usar o presente. Eu ainda o usava.
Eu me espreguicei sob os lençóis e virei a cabeça na direção do estojo.
Perguntei-me quanto tempo ela teria gasto para escolher o modelo certo.
Talvez Daphne tivesse razão. Tínhamos mais história do que eu havia
percebido antes. Mantínhamos uma relação através de visitas espaçadas e
telefonemas esporádicos. Por isso, nunca passou pela minha cabeça que
aquilo tinha tanto peso.
E agora ela estava no avião rumo à França, onde Frederick a
aguardava.
Arrastei-me para fora da cama e arranquei a camisa amassada e a calça
do terno para tomar uma ducha. Tentava silenciar meus pensamentos enquanto
a água lavava os resquícios do meu aniversário.
Mas não conseguia pôr de lado a denúncia perturbadora que ela havia
feito sobre os meus sentimentos. Será que eu não conhecia o amor? Será
que eu o havia provado e descartado? Se sim, como lidaria com a
Seleção?
Conselheiros corriam pelo palácio com pilhas de formulários de inscrição
para a Seleção; todos sorriam para mim como se soubessem de
algo que eu ignorava. De tempos em tempos, um deles me dava tapinhas
nas costas ou cochichava palavras de incentivo, como se sentissem que eu
repentinamente começara a duvidar da única coisa com que sempre havia
contado e que tinha aguardado minha vida inteira.
— O lote de hoje é muito promissor — dizia um deles.
— O senhor é um homem de sorte — assegurava outro.
Mas enquanto as pilhas de formulários cresciam, eu só conseguia
pensar em Daphne e em suas palavras afiadas.
Eu deveria estar estudando os números do relatório financeiro que
tinha na minha frente. Em vez disso, estudava o meu pai. Por acaso ele
havia me sabotado? Havia me criado de forma que eu não tivesse
qualquer noção do que significava um relacionamento amoroso? Já havia
reparado no modo como tratava minha mãe. Havia afeto entre eles, senão
paixão. Não seria isso o bastante? Não teria que ser esse o meu objetivo?
Olhava para o nada, perdido em pensamentos. Talvez, na cabeça dele,
buscar algo além disso faria com que eu tivesse muita dificuldade em enfrentar
a Seleção. Ou talvez eu ficasse decepcionado por não encontrar
algo que mudasse a minha vida. Então era melhor mesmo eu nunca mencionar
que essa era minha única esperança.
Por outro lado, talvez não fossem esses seus planos. As pessoas são o
que elas são. Meu pai era rígido, era como uma espada afiada pela pressão
de governar um país que sobrevivia a guerras e ataques rebeldes constantes.
Minha mãe era como um cobertor, compassiva devido à infância
carente e sempre buscando proteger e reconfortar.
Eu sabia que, no fundo, era mais parecido com ela do que com ele.
Não que isso me incomodasse, mas incomodava meu pai.
Assim, talvez o seu plano fosse mesmo fazer de mim uma pessoa incapaz
de expressar os sentimentos, parte do processo para me endurecer.
Você é burro demais para reconhecer o amor a dois palmos do nariz.
— Acorde, Maxon.
Virei rápido a cabeça na direção da voz do meu pai.
— Sim, senhor?
Sua expressão era de cansaço.
— Quantas vezes preciso dizer? A Seleção consiste em uma escolha
sólida e racional. Não é mais uma oportunidade para você ficar sonhando
acordado.
Um engravatado entrou na sala e entregou uma carta para o meu pai.
Eu ajeitava uma pilha de folhas batendo-as contra a mesa.
— Sim, senhor.
Ele leu a carta enquanto eu o observava.
Talvez.
Não.
No final das contas, não. Ele queria fazer de mim um homem, não
uma máquina.
Bufando, ele amassou o papel e o atirou no lixo.
— Malditos rebeldes.

***

Passei a maior parte da manhã seguinte trabalhando em meus aposentos,
longe de olhares curiosos. Eu me sentia muito mais produtivo
quando ficava sozinho. E se não conseguisse ser produtivo, ao menos não
havia quem me castigasse. Suspeitei que aquilo não duraria o dia inteiro
diante do chamado que recebi.
— O senhor me chamou? — perguntei ao cruzar a porta do gabinete
de meu pai.
— Aí está você — ele disse com os olhos arregalados. Esfregou as
mãos e continuou:
— Amanhã é o grande dia.
Tomei fôlego.
— Sim. Precisamos repassar o formato do noticiário?
— Não, não — ele apoiou a mão nas minhas costas, fazendo com que
me endireitasse imediatamente, e me conduziu em frente. — Será
bastante simples: introdução, um papo rápido com Gavril e depois transmitimos
os nomes e os rostos das moças.
Concordei com a cabeça.
— Parece... fácil.
Quando nos aproximamos da escrivaninha, ele pôs a mão sobre uma
grossa pilha de pastas.
— Aqui estão elas.
Olhei para baixo. Encarei a pilha. Engoli em seco.
— Agora, mais ou menos umas vinte e cinco entre elas possuem qualidades
evidentemente perfeitas para uma nova princesa. Famílias excelentes,
laços valiosos com outros países. Algumas são apenas
exuberantes.
Estranhamente, ele me deu uma cotovelada brincalhona no peito, e
me afastei para o lado. Nada daquilo era brincadeira.
— Infelizmente, nem todas as províncias tinham algo digno de nota a
oferecer. Então, para que as coisas parecessem mais aleatórias, incluímos
essas regiões para dar um pouco mais de diversidade à Seleção. Você verá
que temos até algumas Cinco no pacote. Nada abaixo disso, porém. Precisamos
ter alguns parâmetros.
Repeti mentalmente suas palavras. Todo esse tempo eu pensei que a
escolha seria feita pelo acaso ou então pelo destino... E era apenas o meu
pai.
Ele correu o polegar pela pilha com tanta força que as bordas das pastas
se curvaram para cima.
— Quer dar uma espiada? — propôs.
Olhei novamente para a pilha. Nomes, fotos e qualidades. Todos os
detalhes essenciais estavam ali. Ainda assim, eu sabia que o formulário não
dizia o que as fazia rir ou pôr para fora seus segredos mais obscuros. Ali
estava uma compilação de atributos, não de pessoas. E, com base naquelas
estatísticas, eram minhas únicas opções.
— Foi você quem as escolheu? — perguntei, desviando o olhar da papelada
e encarando-o.
— Sim.
— Todas elas?
— Basicamente — disse com um sorriso. — Como falei, há algumas
aí apenas pelo espetáculo, mas acho que você tem uma leva bastante
promissora. Bem melhor do que a minha.
— Seu pai também escolheu as suas opções?
— Algumas delas, mas naquela época a coisa era diferente. Por que
pergunta?
Puxei pela memória.
— Então era isso que você queria dizer, não é? Quando falou que a
Seleção consumiu anos de trabalho da sua parte?
— Bem, precisávamos garantir que certas garotas teriam a idade adequada,
e tínhamos várias opções em certas províncias. Em todo caso,
confie em mim, você vai amá-las.
— Vou?
Amá-las? Como se ele se importasse. Como se aquilo não fosse apenas
mais uma maneira de a coroa, o palácio e ele próprio prevalecerem.
De repente, seu comentário infeliz sobre Daphne ser um desperdício
fez sentido. Para ele, não importava se eu era próximo de Daphne por ela
ser encantadora ou uma boa companhia; para ele, ela era a França. Não
era sequer um ser humano. E como meu pai já tinha o que precisava da
França, Daphne era inútil aos seus olhos. Ainda assim, se ela tivesse se
mostrado valiosa, estou certo de que ele jogaria fora toda aquela amada
tradição para obter seus fins. Mas como isso não aconteceu, ele quis
manter todo o processo em suas mãos.
Ele soltou um suspiro.
— Que cara é essa? Pensei que você fosse ficar entusiasmado. Não
quer nem dar uma olhadinha?
Endireitei o paletó e respondi:
— Como você disse, não é hora de ficar sonhando acordado. Verei as
garotas junto com todos os demais. Com a sua licença, preciso terminar
de ler seu projeto de emenda.
Parti sem esperar sua aprovação, mas tinha certeza de que minha resposta
era justificativa suficiente para que me deixasse sair.
Talvez não fosse exatamente uma sabotagem, mas com certeza parecia
uma armadilha. Encontrar uma garota de quem eu gostasse de verdade
entre as dúzias que ele escolheu a dedo? Qual era a chance de isso
acontecer?
32/96
Tentei me acalmar. Afinal, ele escolhera a minha mãe, e ela é uma
mulher maravilhosa, linda e inteligente. Mas isso aconteceu aparentemente
sem tanta interferência. Mas as coisas eram diferentes agora, segundo
ele.
Entre as palavras de Daphne, as intromissões do meu pai e meus
próprios medos, cada vez maiores, passei a lamentar a Seleção como
nunca.

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