quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 5 - Três vezes destruição

O caminho que Crânio e o Senador tinham de fazer através da pista do
aeroporto até o Tucano que os levaria ao Pantanal passava pelo hangar onde se
via aquele estranho avião rosa-choque à espera do mecânico.
Bojudo como um hipopótamo, lá estava o fantástico C-47, com o prefixo PT-MSB
pintado em preto. Um cargueiro pesadão, que prestava serviço há mais de
cinqüenta anos. E muitas horas de voo o C-47 ainda teria pela frente: a fortuna de
tia Matilde era suficiente para manter o avião sempre novo, como se tivesse sido
construído no mês passado.
— Esse calhambeque aéreo é um animalzinho de estimação para tia Matilde.
É o "xerimbabo" dela, como dizem por aqui — explicou a voz grossa do Senador.
— Sua tia não olha despesas para conservá-lo. Acho até que, aos poucos o avião
foi totalmente reconstruído. É como se fosse novo mesmo. Do jeito que saiu da
fábrica. Com exceção da cor, é claro!
Crânio achou mais graça na gargalhada do que na brincadeira do Senador.
— Não seria mais prático e mais barato trocá-lo por um avião novo? Mais
moderno?
— Claro que seria. Mas ninguém gosta de se desfazer do seu xerimbabo...
Aos poucos, o perfil de tia Matilde ia se tornando mais nítido na mente do
sobrinho. Uma pessoa rara, com quem Crânio gostaria de conviver em uma
temporada de férias mais descontraída do que imaginava que seria aquela. Desta
vez sua preocupação era descobrir uma pista do assassino do professor Elias.
O Senador pareceu adivinhar o pensamento do garoto:
— Andei perguntando por aí e descobri alguém que esteve com o seu
professor. Ele andou pelo Taquari, fotografando tudo o que via. Se você quer
conhecer o Pantanal pelas mesmas trilhas do professor, eu já sei o jeito. É só
usar o mesmo guia que ele empregou, um índio chamado Robson. Está em
Nhecolândia. Mandei passar um rádio para lá dizendo que eu preciso do tal
Robson. Ele estará nos esperando na minha fazendinha.
O Tucano podia não ser tão espalhafatoso quanto o C-47, mas discreto é que
não era. Tinha uma cor amarelo-gema e duas faixas verdes que o decoravam de
ponta a ponta. Crânio embarcou, espantado com o poder daquele fazendeiro
grandalhão. Em pouco mais de uma hora, o Senador seria capaz de descobrir
qualquer coisa e mandar quem quisesse para o lugar que bem entendesse!

* * *

O Tucano amarelo voava baixo sobre o Pantanal, em direção ao aeroporto
particular da "fazendinha" do Senador.
— Minhas terras ficam bem próximas da Fazenda Rosa-Pink, a sede do
reinado de tia Matilde. Ah, são terras que não acabam mais! Sua tia está sempre
comprando novas fazendas e aumentando sempre mais as terras da Rosa-Pink.
Certa vez alguém perguntou a ela se pretendia comprar todo o Pantanal. Sabe o
que ela respondeu? Que não queria todas as terras, só as do vizinho!
A gargalhada do Senador sobrepôs-se ao ronco do avião. Aos poucos a alegria
foi morrendo, e o grandalhão ficou sério, olhando fixamente pela vigia.
— Olhe para baixo, Crânio. Veja o paraíso. Aqui a natureza se protegeu
cercada pela cordilheira dos Andes, a leste, e pelas serras de Mato Grosso, a
oeste. Você vai conhecer a mais linda reserva natural do mundo. Mas, se você
olhar direito, é capaz de chorar. A estupidez, a miséria e a ganância estão
acabando com o Pantanal. Ou talvez só a ganância, porque a miséria é resultado
da ganância. E a estupidez é sua única explicação.
A fala daquele homem estava emocionada. Cada frase dele era um discurso.
— Imagine se você visitasse o mais completo museu do mundo e notasse o
desaparecimento de uma tela de Van Gogh, descobrisse um quadro de
Modigliani todo furado com a brasa de cigarros e um Picasso cortado a gilete...
Fez uma pausa, para deixar fazer efeito a horripilante comparação.
— Veja os índios, por exemplo. Você os encontra. Mas serão eles ainda
índios? Será que podemos chamar índios esses seres sem espaço para caçar
como sempre fizeram seus antepassados? Essas pessoas que já trocaram seus
nomes tribais por Terezinha e Sebastião? Esses homens e mulheres cada vez mais
atraídos pelas bugigangas dos homens brancos? Cada vez mais contaminados
pelas doenças que estamos trazendo para cá? Este é o nosso Van Gogh. Está
desaparecendo.
Crânio propôs uma esperança:
— Alguma coisa ainda pode ser feita, Senador. O governo pode proteger as
terras indígenas. Pode garantir que cada tribo viva em paz, sem a invasão dos
brancos. Os índios também são brasileiros. Merecem a proteção do governo.
O Senador olhou para o rapaz com carinho. Mas com aquele carinho de
adulto, que age como se os jovens não entendessem nada do mundo e das
pessoas.
— É fácil falar. A identidade cultural de um povo depende de sua atividade
econômica. Nossos índios conhecem muito bem a agricultura e cuidam muito
bem de suas roças há séculos. Para competir com os agricultores brancos, eles
precisam de tratores, de transporte, de mercado para seus produtos. Mas, para
continuar como índios, eles precisam caçar, pescar e colher o que a natureza
oferece. Sem a atividade do "achá-matá-cumê", como eles próprios dizem, eles
não serão mais índios. Mas, para isso, são necessárias grandes extensões de
floresta virgem. Perseguindo a caça, o índio anda o dia inteiro, percorre
quilômetros de mata. Mas como o governo irá reservar quilômetros de mata para
uma tribo de duzentos ou trezentos indivíduos apenas, quando há milhares de
outros brasileiros sem terra, sem ter onde trabalhar, sem ter como se sustentar?
Crânio não estava tão mal informado quanto o Senador parecia julgar.
— A verdade, Senador, é que no final das contas a terra acaba sendo tomada
do índio por algum grande fazendeiro, que derruba a mata, planta capim e deixa
algumas reses pastando, sem dar sequer empregos para esses brasileiros sem
terra.
O Senador sorriu, como se não achasse graça no assunto.
— É isso mesmo, Crânio. O problema do índio faz parte do grande problema
que é a concentração de terras nas mãos de poucos. E o resultado é a miséria da
maioria. Ai, como pode funcionar um país em que quando se nasce todas as
terras já pertencem a alguém?
Por um momento somente o ronco dos motores do tucano respondeu à
pergunta do fazendeiro grandalhão, que culpava os fazendeiros pela miséria do
Brasil.
— A miséria... Você sabe, Crânio, que atualmente um lavrador brasileiro
consome um décimo das proteínas que consumia um escravo cem anos atrás?
É... antes os fazendeiros cuidavam melhor dos seus escravos do que os
fazendeiros da atualidade cuidam dos trabalhadores livres...
Crânio ficou imaginando que tipo de liberdade era essa.
— O que espanta — continuou o Senador — é notar a que ponto chegou a
chamada "civilização": no mesmo lugar em que um camponês passa
necessidades, é subnutrido, doente e desdentado, os índios vivem fortes e
saudáveis. Dá pra entender?
— Parece que bastaria ensinar os brancos a viver como os índios, em
comunhão com a natureza, e ensinar aos índios as coisas boas da civilização dos
brancos.
O Senador pousou a mão nos cabelos do garoto como um pai.
— E todo mundo viveria de mãos dadas, não é? Você tem toda a razão. Todas
as razões do seu coração de menino. Mas o que você está propondo é impossível.
É lindo, mas é impossível. O nosso sistema exige que um lavrador produza muito,
cada vez mais, sem preservar a natureza. O que nós chamamos "progresso" não
existe nas sociedades indígenas. Eles não precisam de progresso. Vivem do
mesmo modo há gerações, utilizando os mesmos conhecimentos dos seus
antepassados. Qualquer "progresso" desorganizaria seu modo de vida. Não existe
progresso com ordem, por mais que escrevam isso em todas as bandeiras.
Progredir significa desorganizar tudo o que está em ordem, propondo um novo
tipo de organização. Levar o progresso ao índio é o mesmo que destruí-lo.
Significa quebrar o equilíbrio harmonioso do índio com a natureza. Significa
matá-lo.
Crânio sentia-se confuso. Aquilo tudo era demais para ele. Como aceitar que
o progresso pudesse ser mau?
— Ah, Crânio, o progresso! — suspirou o Senador. — Quem pode deter essa
praga que chamam progresso? Aqui no Pantanal, o índio já está deixando de
fazer parte do meio que ele controlava há gerações sem alterá-lo em nada. Hoje,
o índio pantaneiro mata jacarés para comprar radinho de pilha e óculos escuros.
Em troca de uma paga ridícula, dizima a natureza para plantar o capim que
engordará o gado das grandes fazendas. E o pagamento servirá, por exemplo,
para comprar açúcar refinado. Nossos índios já esqueceram que foram eles
mesmos que descobriram as folhas de stevia, um adoçante trezentas vezes mais
doce que o açúcar dos brancos. Nossos índios estão desaparecendo e sendo
levados a contribuir para o próprio fim...
O Tucano voava baixo e Crânio olhou ansioso as cores do Pantanal, como se
fosse possível ajudar os últimos índios antes que eles desaparecessem.
— Esta beleza está acabando, Crânio. É o quadro de Modigliani furado com
brasa de cigarro. A derrubada e a queimada das árvores vão levar o Pantanal à
extinção em algumas décadas. Já não há lugar para pássaros, capivaras, onças e
quatis. Derruba-se a natureza, queima-se a natureza, para criar pastagens.
Depois, quando os arbustos novos começam a aparecer, mostrando o esforço de
recuperação do Pantanal, os biocidas são pulverizados periodicamente para
matar esses arbustos e manter "limpas" as pastagens... O vento leva esses
venenos para todos os lados, envenenando e matando animais e vegetação. Aqui,
o povo chama esses produtos químicos de "mata-mato". Só que isso está matando
muito mais do que o povo pode suspeitar...
Sacudiu a cabeça violentamente, como que espantando um pesadelo.
— Ah, o progresso! Ah, a civilização! Você não se sente orgulhoso de tudo
isso? Mas deixe só eu falar do nosso Picasso, o quadro cortado a gilete deste
museu. Você verá essa barbaridade no Pantanal. Em nenhum lugar do mundo, o
equilíbrio da natureza é tão perfeito e tão fantástico como aqui. Esse equilíbrio
depende de uma corrente onde um elo apóia o outro. Tanto no entrelaçamento da
vida quanto no entrelaçamento da morte. Aqui, a morte é vida. Cada ser que
desaparece ressurge garantindo a sobrevivência de outro. Mas há pessoas que
acham muito elegante andar com sapatos e bolsas feitos de couro de jacaré.
Para satisfazer essa vaidade, dois milhões de jacarés são mortos todos os anos
por aqui. E o jacaré é responsável por não haver esquistossomose no Pantanal,
você sabia? Ele é também o elo da corrente que mantém a população de
piranhas em equilíbrio. Sem eles, as piranhas estão se reproduzindo aos milhões e
dizimando os peixes menores. Neste museu, no lugar da tela de Picasso, daqui a
pouco estará um quadro cinza e negro, retratando um pântano nojento, povoado
somente pelas piranhas... E todos que aqui vêm parecem felizes em participar
desse festim de destruição. Ao longo da rodovia Transpantaneira divertem-se
atirando em pássaros só pelo prazer de vê-los cair. Boiando nos corixos, nos
pequeninos rios, o que se encontra são latas de cerveja e frascos plásticos...
Um tripulante apareceu pedindo que atassem os cintos de segurança. O
Tucano preparava-se para pousar. O Senador recostou-se na poltrona.
— Aqui tudo depende do modo de olhar o Pantanal, Crânio. Você pode
conhecer o paraíso, mas o inferno está próximo, está bem aí, para quem quiser
ver...

* * *

O Tucano pousara em uma pista aberta há pouco tempo, um rasgão na mata,
feito a trator, como uma estrada que vem de nenhum lugar e vai para lugar
algum.
Como a dar as boas-vindas ao seu parente amarelo, um bando de tucanos
passou voando, inclinados para a frente pelo peso dos bicos.
À distância de um grito do pequeno aeroporto, a casa da fazenda espalhava-se
por uma imensa clareira. O movimento de empregados era intenso, como seria
de se esperar de uma fazenda de um grandalhão com uma voz como aquela. Era
a perfeita imagem de qualquer latifúndio brasileiro. Tudo parecia muito normal.
Somente um detalhe não escapou a Crânio: entre os empregados não havia uma
mulher.
— O tal guia ainda não apareceu, garotão — o Senador deixara Crânio na
varanda da casa da fazenda e agora voltava com a informação. — Mas não deve
demorar. Estará aqui amanhã de manhã, quando você acordar.
Em lugar de cães e gatos, uma meia dúzia de saguis e um macaco-prego
eram os animais de estimação naquela fazenda. Formavam um grupo amigável
e barulhento, sempre à roda do visitante e à espera de alguma fruta ou algum
carinho. O mais animado era Cabo Malandro, o macaco-prego, que gostou do
colo de Crânio. Tinha o tamanho de um bebê e uma curiosidade equivalente.
Cutucava os bolsos do garoto como se ali fosse um armazém de amendoins.
Estava úmido, abafado. O calor era forte, apesar de já haver escurecido há
mais de uma hora. Crânio cocou a cabeça do macaquinho, que se enrolou de
prazer.
O rapaz sentia-se mole. Havia comido um pacu recheado, e o Senador o
havia feito experimentar um cálice de licor de pequi. Agora, o cansaço daquele
dia de surpresas começava a abatê-lo.
— Você deve estar exausto — observou o Senador. — O seu dia não foi fácil.
Bem, o meu também não foi. Acho que o certo é terminá-lo por aqui. Amanhã
será um dia melhor. Sem aviões, sem cachorros ferozes e sem sustos. Você vai
adorar o Pantanal.
— Será que ainda resta alguma coisa para se ver no museu do Pantanal?
— Resta muito, garotão. Muito! Esqueça o que eu lhe disse no avião.
Deslumbre-se! O guia que irá com você é um dos melhores. Será fácil encontrar
a pista que você está procurando.
— Pista? Que pista, Senador?
— Eu disse "pista"? É um modo de dizer "seguir a trilha". Não é isso o que
você pretende? Seguir a trilha do seu professor?
Antes que Crânio pudesse responder, um ruído de gente veio da escuridão. Os
dois estavam na varanda da casa, e demorou um pouco até que as vozes se
transformassem em um grupo de empregados sob a luz de lampiões.
Carregavam um corpo imóvel.
— Veja, Senador. Nós...
Pareceram desconcertados ao notar que o Senador não estava sozinho. Depois
de um momento de hesitação, um deles falou:
— Acabamos de encontrar. Este nunca mais vai matar jacarés.
O corpo foi colocado no chão da varanda, aos pés do Senador. Era um
homem magro, mal vestido. De sua boca aberta, atochada com terra, saíam
formigas enormes, carnívoras, que se espalhavam pelo rosto e entravam pelas
narinas.
Cabo Malandro veio espiar de perto, assustado.
O empregado explicou, com o olhar inseguro, pulando de Crânio para o
Senador, como se temesse falar algo que não devia:
— O infeliz estava à beira do Taquari, pendurado numa árvore como um
papagaio. Acho... acho que foram os Formigas-paradas...
O Senador interrompeu, autoritário:
— Esqueçam essa bobagem de espíritos malignos. Não há nada de espiritual
num assassinato. Isso foi feito por gente! Lavem o corpo e tirem essa sujeira da
boca dele. Amanhã vamos levá-lo para Nhecolândia.
Enquanto os homens desapareciam na escuridão, levando o cadáver, o olhar
de Crânio procurou o Senador, pedindo uma explicação.
— É um "coureiro", garotão. Um desses que vivem nos corixos, pelas
madrugadas, matando jacarés.
— Mas como ele foi morto? Por quê? E por que as formigas?
O Senador sorriu tristemente. Olhou para a escuridão como se procurasse
uma ameaça à espreita nas sombras.
— Isso é besteira! O povo ignorante fala dos Formigas-paradas,
assombrações que atacam os coureiros solitários. Mas ninguém ainda viu
nenhum desses fantasmas. Besteira!

* * *

Antes de deitar-se, Crânio examinou a caixa de slides, amassada porque
estava na malinha com que ele havia golpeado o cão negro, farejador de
cocaína. Tudo em ordem. Ele haveria de encontrar o lugar onde tinham sido
fotografados os slides roubados,
— Formigas-paradas... Assombrações... Quem mataria um homem e depois
lhe encheria a boca com um bolo de terra e formigas? Parece um aviso, ou uma
espécie de vingança macabra!
O sono avançava depressa e Crânio adormeceu pensando naquele enorme
fazendeiro que o trouxera a um lugar como aquele, onde vivia aparentemente
sem família, sem mulher e sem filhos, e onde só trabalhavam homens. Uma
fazenda de solteirões? Em pleno Pantanal?

13 comentários:

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!