quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 7 - Cemitério de milhares

À medida que os sons do ninhal eram deixados para trás, um fedor nauseante
tomava conta do ar.
— Ah! Vamos voltar daqui!
— Que fedor é este, Robson? Como este paraíso pode feder assim?
— O paraíso só tem perfume, moço novo. Isto é o fedor dos infernos!
Estavam se aproximando de um cemitério de jacarés. De uma obra dos
coureiros. De uma obra do homem branco.
Crânio reconheceu três grandes árvores de jenipapo, formando um triângulo,
ladeadas por palmeiras baixas. Era mais uma das fotos. E estava na seqüência.
Sua teoria maluca começava a confirmar-se!
— Vamos continuar, Robson. Quero ver isto.
O índio de óculos escuros acariciou a água com o remo de um lado só e a
chalana embicou para a terra.
— Pode descer. Garanto que aqui não tem piranha. Crânio pulou na água, que
mal chegava a seus joelhos.
— Cuidado com aquele banco de areia, moço novo. Pode ter arraia. O
espinho dela tem um veneno que faz doer até amanhã.
Não foi preciso avançar mais que alguns metros terra adentro para Crânio
assistir ao espetáculo mais nojento de sua vida. Ossos branqueavam-se ao sol,
misturados às carnes putrefeitas de milhares de jacarés. O cheiro era
insuportável, mas a visão daquela barbaridade era pior. Cada uma das cabeças
daqueles animais, que já habitavam a terra milhões de anos antes de o homem
aparecer, tinha dois buracos. Um da bala que o abatera, e outro do pino de
aroeira que lhe fora cravado a martelo para completar o serviço. Em volta da
chacina, um sem-número de urubus abatidos a tiros completava o absurdo.
— Os coureiros matam os urubus que são atraídos pela carne podre —
explicou o índio. — A revoada deles iria mostrar para todo mundo o lugar onde
os contrabandistas reúnem os jacarés mortos para tirar-lhes o colete e salgá-los...
Aquele matadouro devia estar ali há muito tempo. O rapaz lembrava-se de
uma foto dali feita pelo professor, embora na ocasião Crânio não tivesse
entendido o que poderia ser aquela mancha branca brilhando ao sol, no meio do
mato. Estava na pista certa. E na seqüência certa dos slides.
— Ei! Veja isto. Que coisa mais sem jeito! — Robson apontava para uma
pilha de couros de jacaré ao lado de sacos de sal. — Parece que esses coureiros
tiveram de sair correndo. Até deixaram tudo isso para trás...
Um pouco adiante, meio oculta por folhas de palmeira, havia uma canoa
comprida, uma chalana semelhante àquela em que viajavam. Estava furada e
meio submersa.
— E fugiram a pé. Ou a nado — observou Crânio. — A chalana deles ainda
está aqui.
O ruído de um motor aproximava-se. Mesmo com a visão ofuscada pelo sol,
Crânio pôde ver um Cessna voando baixo, preparando-se para pousar. O avião
sumiu atrás das copas das árvores, a cerca de um quilômetro dali.
— Meu Deus! O que é isso?
Crânio piscou, não acreditando no que descobrira ao erguer a cabeça para
olhar o avião.
Pendurados no alto das árvores, doze corpos balançavam-se ao vento!
A visão de mais aquele horror doeu como um soco no peito, e Crânio recuou,
apavorado, até tropeçar com os calcanhares e cair sobre aquele monte de ossos
fedorentos.
Levantou-se, limpando-se, enojado, e olhou em volta.
— Robson! índio Robson! Onde está você? Nenhuma resposta.
Em pânico, correu em volta das carcaças, atabalhoadamente.
Tudo inútil. O guia desaparecera, como se uma fada maligna estivesse
atuando no Pantanal!
Quase sem pensar, procurando um refúgio como uma criança procuraria o
colo da mãe, Crânio correu para a chalana.
— O que é isto?
Alguém havia furado a chalana e o barco afundava lentamente!
O coração de Crânio batia descompassadamente. Doze homens haviam sido
assassinados ali e pendurados nas árvores, como acontecera com o coureiro lá
perto da fazenda do Senador. Como se tudo estivesse fotografado em sua mente,
o rapaz lembrou-se de ter visto bocas negras, escancaradas, em cada um
daqueles cadáveres. Suas bocas deveriam estar atochadas de terra com formigas
carnívoras...
Os Formigas-paradas!
E agora? Como poderia Robson ter desaparecido assim, como se o Pantanal o
tragasse?
Não podia agir sob pânico nem com raiva toldando-lhe os sentidos. Contou
pausadamente até seu coração voltar ao ritmo normal. Lembrou-se da seqüência
das fotos do professor. Elas vinham sendo feitas a bordo de um barco até o
cemitério de jacarés. Depois passaram a ser feitas em terra, no meio de árvores.
O local dos três slides desaparecidos estava próximo!
Pensou também no avião que acabara de ver. Certamente haveria uma
fazenda por ali. Haveria gente. Um lugar onde ele poderia buscar abrigo e
auxílio.
Olhou cuidadosamente à volta. Nada à vista. Só a beleza do Pantanal, com
aquela nódoa branca das ossadas. Correu, procurando o refúgio da mata. Meteuse
por entre as árvores, tentando orientar-se na direção onde vira o Cessna. Aos
poucos, o fedor do cemitério dos jacarés foi diminuindo e substituído por um
perfume forte de jenipapos maduros.
O canto selvagem dos pássaros, quase ausente no local da chacina de homens
e jacarés, voltou ao normal. Em meio àquela algaravia, Crânio ouviu o som
distante de um motor, certamente do Cessna, que se mantinha ligado. É! Parece
que ele estava no caminho certo.
O aeroporto não estaria tão longe como ele estava calculando. Em um quarto
de hora, avistou um descampado. Aproximou-se com cautela. O Cessna girava
seus motores na extremidade de uma pista de terra. Não havia nenhuma casa.
Apenas um grupo de barracas de lona.
Um grupo de homens descarregava caixas e recarregava o avião com pilhas
de peles de jacaré amarradas.
Contrabandistas! Coureiros! Onde viera ele buscar refúgio?
Um homem moreno e magro desembarcara. Parecia ser o chefe e, mesmo
àquela distância, dava para Crânio entender uma fala autoritária, rústica,
espanholada.
— El Ente... quiere saber porque Ia demora... Está muy nerbioso... El Ente no
perdona...
E Crânio compreendeu tudo. As três fotos roubadas eram daquele aeroporto
clandestino! O professor Elias o descobrira. E por isso fora assassinado! Ele
precisava fugir. Recuou silenciosamente e enfiou-se entre as árvores. Ás suas
costas, o motor do Cessna foi desligado.
Crânio sentiu-se confuso. Sem o ruído do avião para orientá-lo, todas as
árvores pareciam iguais, todos os caminhos pareciam o mesmo. Andou sem
rumo, procurando apenas livrar distância do perigo. O medo ocupou-lhe todos os
sentidos e o rapaz correu, chocando-se nos galhos baixos, arranhando-se,
desorientando-se cada vez mais.
Tropeçou numa raiz saliente e caiu, de cara na terra.
— Inferno!
Tinha corrido como um idiota, fazendo um círculo! Um ruído leve, atrás de si.
Crânio saltou, como se uma pintada lhe tivesse bafejado a nuca.
Era pior do que uma pintada. O cano de uma Browning de quinze tiros estava
apontado para ele. Atrás do cano, um rosto muito magro, moreno, mostrava um
sorriso desdentado com hálito imundo.
— Buenas tardes, muchacho...

* * *

Rapazes da idade de Crânio já eram adultos no Pantanal. Por isso Crânio foi
tratado como um adulto. Como um adulto inimigo. Como um inimigo perigoso,
que deve ser amarrado aos trancos e conduzido a pontapés.
— Já está bem amarradinho, Centurião — declarou um dos bandidos que
cercavam Crânio.
O líder, sorridente, bafejou de novo aquele hálito dos infernos.
— Muchacho... Que quieres acá? Como te llamas? Crânio manteve a cabeça
altivamente levantada e olhou para o Centurião como num desafio. Não disse
uma palavra, porém.
— No hablas? Quieres morir calado?
— Ele não é daqui, Centurião. É um garoto muito bem tratado para ser daqui.
— Quien eres, muchacho? A mi no me gusta matar alguno sin saber su
nombre...
— Pode deixar, Centurião — ofereceu-se um sujeito pequeno como um
menino, com uma faca que brilhava ao sol. — Eu faço o serviço.
— No... El muchacho es muy arrumadito. Puede ter qualquiera de
importância por detrás. Devemos preguntar ai Ente. El Ente sabrá o que hacer.
Levem ei muchacho para la casita!

* * *

O rosto e as mãos de Crânio sangravam, depois de ter sido arrastado com
brutalidade por entre galhos e espinhos de volta ao aeroporto dos contrabandistas.
Do Cessna, os bandidos descarregavam pesadas caixas com inscrições em
inglês. Crânio pensou que eram videocassetes, whisky e outros artigos de
contrabando, até que um dos bandidos tropeçou, deixando cair uma caixa. A
caixa se abriu, esparramando um grande número de saquinhos plásticos cheios
de pó branco.
Cocaína!
Crânio não baixou a cabeça, esperando o pior destino nas mãos daqueles
criminosos. Viesse o que viesse. Ele um Kara!
Sem uma palavra, Crânio foi arrastado para "la casita”. Era uma choupana
coberta com folhas de palmeira secas e gradeada com bambus em toda a volta.
Apesar do material simples, era uma construção sólida, uma prisão perfeita.
O jovem prisioneiro foi desamarrado e jogado dentro da casita. A entrada foi
tapada com uma prancha de bambus grossos e trançados, e acorrentada, para
completar a segurança. O teto era baixo demais, impedindo que o prisioneiro
ficasse de pé.
— Acorda, piloto! — gozou o bandido que acorrentara a entrada. — Um
companheiro para você!
O homem estirado no fundo da casita não demonstrou sinal de vida. O
contrabandista foi embora, rindo, e Crânio rastejou até o prisioneiro. Devia ter
uns trinta anos e seus braços estavam cobertos de picadas de injeção.
Um viciado em heroína!
O prisioneiro não abriu os olhos, mas Crânio percebeu um leve movimento
em seus lábios. Aproximou-se e encostou o ouvido em sua boca.
— Meu nome é Bezerra... ainda estou vivo... ainda estou vivo...

* * *

A noite caiu sem que alguém trouxesse comida ou água para os prisioneiros.
Crânio não comia desde o "quebra-torto" daquela manhã e a sede era torturante
sob aquele calor infernal.
Os sons do Pantanal eram muito diferentes, à noite.
Não havia ninguém para identificá-los para o garoto, e todos lhe pareceram
assustadores. Talvez aquele pio que lhe gelava a espinha fosse de uma coruja, ou
talvez aquele som rouco fosse o esturro de uma onça, ou talvez... E se uma cobra
se esgueirasse por entre os bambus durante a noite?
Sentado ou deitado sobre a terra quente, Crânio não sabia o que esperar. Tirou
a gaita do bolso da jaqueta e soprou-a baixinho, tentando afastar o medo. Suas
mãos estavam esfoladas e arranhadas. Começavam a latejar. A infecção
começava a instalar-se.
Aos poucos, a fome, a sede, a escuridão e a companhia patética daquele
pobre homem adormecido foram amolecendo seu ânimo, e o sono chegou, em
meio à saudade de casa e de seus queridos companheiros.
— Tia Matilde... acho que nunca vou conhecer você... Miguel... Calu...
Chumbinho... Magri... meu amor... onde estão vocês, Karas? Por que me
deixaram sozinho?

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