segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Capítulo 5 - O Avião

Na manhã seguinte, acordei cheia de energia, sentindo-
me otimista e empolgada com a viagem. Depois de um banho e
de um rápido café da manhã, peguei minha bolsa, abracei
Sarah novamente, pois ela era a única acordada, e corri para a garagem.

Entrei no estacionamento do circo e parei ao lado de

um caminhão de tamanho médio. O veículo tinha um grosso
pára-brisa, rodas muito grandes e portas minúsculas. Atrás da
cabine havia uma carroceria aberta, na qual se via uma
estrutura quadrada de aço com um cortinado de lona cinza.

A rampa estava abaixada na traseira: o Sr. Davis

colocava Ren na jaula. Ren usava uma coleira grossa no
pescoço, firmemente presa a uma longa corrente que tanto o
Sr. Davis quanto Matt seguravam com força. O tigre parecia
muito calmo, apesar do caos que se desenrolava à sua volta. Ele
me olhava, esperando paciente enquanto os homens
preparavam o caminhão. Por fim, tudo ficou pronto e, a um
comando do Sr. Davis, Ren saltou para a caixa de metal.

O Sr. Kadam pegou minha bolsa e passou a alça pelo ombro.


- Srta. Kelsey, prefere ir no caminhão com o

motorista ou me acompanhar no conversível? - perguntou ele.

Olhei para o caminhão de rodas enormes e rapidamente tomei minha decisão.


- Prefiro acompanhar o senhor. Eu jamais trocaria

um conversível por um caminhão desses.

Ele riu, concordando, antes de guardar minha bolsa no

porta-malas do Bentley. Sabendo que era hora de ir, acenei
para o Sr. Davis e para Matt, entrei novamente no conversível e
afivelei o cinto de segurança. Antes que eu me desse conta,
seguíamos pela rodovia interestadual atrás do caminhão.

Era difícil conversar por causa do vento, então eu

simplesmente reclinei a cabeça para trás, apoiando-a no couro
macio, e fiquei admirando a paisagem. Na verdade, seguíamos
devagar - a 90 quilômetros por hora, cerca de 15 quilômetros
abaixo do limite de velocidade daquela estrada. Passantes
curiosos desaceleravam para olhar nosso pequeno comboio. O
trânsito foi se tornando mais pesado perto de Wilsonville, onde
alcançamos os carros que haviam nos ultrapassado mais cedo.

O aeroporto ficava uns 30 quilômetros adiante, numa

pequena estrada que saía da interestadual como a alça de uma
xícara. O caminhão à nossa frente entrou na rua do aeroporto
e então parou em uma rua lateral, atrás de uns hangares
enormes. Vários aviões de carga estavam enfileirados ali, sendo
carregados. O Sr. Kadam abriu caminho entre as pessoas e os
equipamentos até alcançar um avião particular, em cuja lateral
se lia Linhas Aéreas Tigre Voador, exibindo a imagem de um tigre correndo.

Virei-me para o Sr. Kadam, apontei com a cabeça para o avião e disse:


- Tigre Voador, hein?


Ele sorriu.


- É uma longa história, Srta. Kelsey, que vou lhe contar no avião.


Tirando minha bolsa do porta-malas, ele entregou as

chaves a um homem ali perto que imediatamente entrou no carro e o levou dali.

Nós dois ficamos observando enquanto vários

trabalhadores corpulentos erguiam a caixa do tigre com uma
empilhadeira motorizada e habilmente o transferiam para a
jaula ampla e apropriada do avião.

Satisfeitos ao ver o tigre confortavelmente em

segurança, subimos pela escada retrátil da aeronave e entramos.

Fiquei impressionada com a opulência do interior. O

avião era decorado em preto, branco e prateado, o que o fazia
parecer muito moderno. As poltronas de couro preto pareciam
bastante aconchegantes, bem diferentes dos assentos de aviões
comerciais, e reclinavam completamente!

Uma comissária de bordo muito bonita, com cabelos

pretos e longos, nos apontou os lugares e se apresentou:

- Meu nome é Nilima. Por favor, sente-se, Srta.

Kelsey - disse ela, com um sotaque parecido com o do Sr. Kadam.
- Você também é indiana?

Nilima assentiu e sorriu para mim enquanto afofava

um travesseiro atrás da minha cabeça. Em seguida, ela me
trouxe um cobertor e várias revistas. O Sr. Kadam ocupou a
espaçosa poltrona diante da minha. Ele afivelou logo o cinto de
segurança, dispensando o travesseiro e o cobertor.

Eu viajara de avião umas poucas vezes antes, de férias

com minha família. Durante o voo propriamente dito, em geral
eu ficava bastante tranquila, mas decolagens e aterrissagens
me deixavam tensa e ansiosa. O som das turbinas era o que
mais me incomodava - o rugido ameaçador quando ganhavam
vida - e a sensação de ser empurrada contra a cadeira
enquanto o avião se descolava do chão sempre me deixava
enjoada. As aterrissagens não eram mais divertidas, mas em
geral eu estava tão ansiosa para saltar do avião que esse
momento passava rapidinho.

O luxo do avião e do belo conversível me fizeram

refletir sobre o empregador do Sr. Kadam. Deve ser alguém
muito rico e poderoso na Índia. Tentei pensar em quem
poderia ser, mas não consegui formular nenhum palpite.

Talvez seja um daqueles atores de Bollywood. Quanto

dinheiro será que eles ganham? Não, não pode ser isso. O Sr.
Kadam trabalha para ele há muito tempo, então o homem deve ser velho.

O avião ganhara velocidade e decolara enquanto eu

ponderava sobre o misterioso empregador do Sr. Kadam. E eu
nem percebera! Olhei pela janela e observei o rio Colúmbia ir
ficando cada vez menor até atravessarmos a camada de nuvens
e eu não conseguir mais ver terra firme.

Cerca de uma hora e meia depois, já tendo lido uma

revista inteira e terminado o sudoku e as palavras cruzadas das
últimas páginas, deixei de lado a revista e olhei para o Sr. Kadam.
Eu não queria incomodá-lo, mas tinha toneladas de perguntas.

Pigarreei. Ele respondeu sorrindo para mim acima da

revista de atualidades. Naturalmente, a primeira coisa que me
saiu pela boca foi a pergunta que menos me interessava.

- Então, Sr. Kadam, me fale sobre as Linhas Aéreas Tigre Voador.


Ele fechou a revista antes de pousá-la na mesa.


- Humm... por onde começar? Meu empregador era

o proprietário e eu o administrador de uma empresa de carga
aérea chamada Linhas Aéreas de Fretamento e Carga Tigre
Voador, ou, encurtando, Linhas Aéreas Tigre Voador. Era a
maior empresa de charter transatlântico nas décadas de 1940
e 1950. Voávamos para quase todos os continentes do mundo.
- De onde veio o nome Tigre Voador?

Ele mudou ligeiramente de posição na cadeira.


- Além de possuir certa afeição por tigres, meu

empregador achava interessante o fato de que alguns dos
primeiros pilotos haviam conduzido aviões "tigres" durante a
Segunda Guerra Mundial. Talvez você se lembre de que eram
pintados como tubarões-tigres a fim de parecerem ferozes na
batalha. Mas, no fim da década de 1980, meu empregador
resolveu vender a empresa. E manteve só um avião, este, para uso pessoal.
- Qual é o nome do seu empregador? Eu vou conhecê-lo?

Seus olhos brilharam.


- Com toda a certeza. Ele se apresentará quando

você pousar na índia. E vai gostar de conversar com você. - Ele
desviou o olhar para os fundos do avião por um momento.
Sorrindo com uma expressão encorajadora, ele olhou para
mim e acrescentou: - Mais perguntas?
- Então o senhor é uma espécie de vice-presidente para ele?

O cavalheiro indiano achou graça.


- Digamos que ele é um homem muito rico que confia totalmente em

mim para cuidar de seus assuntos profissionais.
- Ah, então o senhor é o Sr. Smithers e ele é o Sr. Burns.

Ele arqueou uma sobrancelha.


- Não entendi.


Corei e agitei a mão no ar.


- Deixe para lá. São personagens dos Simpsons. Provavelmente o senhor nunca viu a série.

- Infelizmente não, Srta. Kelsey.

O Sr. Kadam parecia ligeiramente desconfortável ou

nervoso quando falava sobre seu patrão, mas gostava de falar
de aviões, então eu o incentivei a continuar. Mudando de
posição na cadeira, tirei os sapatos, cruzei as pernas e perguntei:

- Que tipo de carga vocês transportavam?


Ele relaxou visivelmente.


- Ao longo dos anos, a empresa transportou uma

coleção e tanto de cargas interessantes. Por exemplo,
ganhamos o contrato para carregar a famosa baleia assassina
do Aquatic World, assim como a tocha da Estátua da Liberdade.
Na maior parte do tempo, porém, a carga era bastante comum.
Levamos coisas como enlatados, produtos têxteis e embalagens.
Uma variedade e tanto, de fato.

- Como é que se coloca uma baleia em um avião?

- Uma nadadeira de cada vez, Srta. Kelsey. Uma nadadeira de cada vez.

O rosto do Sr. Kadam continuou sério. Eu ri com

vontade. Enxugando uma lágrima no canto do olho, indaguei:

- Então o senhor administrava a empresa?

- Sim. Passei muito tempo desenvolvendo as Linhas
Aéreas Tigre Voador. Gosto muito de aviação. - Ele fez um
gesto, indicando a aeronave. - Estamos voando aqui no
chamado MD-11, um McDonnell Douglas. Trata-se de um
modelo de grande autonomia, o que é necessário quando se
cruza o oceano. O interior é espaçoso e confortável, como deve
ter notado. Ele tem duas turbinas sob as asas e uma terceira
atrás, na base do estabilizador vertical.
- Humm, parece... poderoso.

Ele se inclinou um pouco para a frente e falou, entusiasmado:


- Embora este avião seja de um modelo mais antigo,

ainda proporciona uma viagem muito rápida.

Ele havia se empolgado muito durante sua exposição

técnica. A única coisa que gravei de todas aquelas explicações
é que aquele era um avião muito bom e que aparentemente tinha três turbinas.

Ele deve ter percebido que eu não tinha a menor ideia

do que ele estava falando, pois olhou para o meu rosto
perplexo e deu uma risadinha.

- Talvez devêssemos falar sobre outro assunto. Quer

conhecer alguns mitos da minha terra sobre os tigres?

Assenti com empolgação, incentivando-o a continuar.

Joguei minhas pernas para o lado, sobre a poltrona. Então
puxei o cobertor até o queixo e me recostei no travesseiro.

A entonação do Sr. Kadam mudou quando ele entrou

no modo de contador de histórias. Seu sotaque indiano ficou
mais pronunciado; as palavras, mais melódicas. Eu gostava de
ouvir a cadência de sua voz.

- O tigre é considerado o grande protetor da selva.

Vários mitos indianos atribuem grandes poderes ao animal. Ele
combate bravamente imensos dragões, mas também ajuda
camponeses. Uma de suas tarefas é deslocar nuvens de chuva
com a cauda, pondo fim à seca que aflige aldeões humildes.
- Gosto muito de mitologia. As pessoas na Índia
ainda acreditam nesses mitos sobre tigres?
- Sim, principalmente nas zonas rurais. Mas em
todas as partes do país você vai encontrar quem acredite,
mesmo entre aqueles que se consideram parte do mundo
moderno. Você sabia que alguns afirmam que o ronronar de
um tigre acaba com os pesadelos?
- O Sr. Davis disse que os tigres não ronronam. Ele
contou que grandes felinos que rosnam e rugem não podem
ronronar, mas eu juro que às vezes Ren ronrona.
- Ah, você está certa. A ciência moderna diz que o
tigre não pode produzir o som que identificamos como
ronronar. Vários dos grandes felinos emitem um som vibrante,
mas não é exatamente a mesma coisa que o ronronar de um
gato doméstico. Ainda assim, existem alguns mitos indianos
que falam do ronronar do tigre. Diz-se também que o corpo de
um tigre tem propriedades curativas únicas. Este é um dos motivos por que regularmente são caçados e mortos, e seus
corpos, mutilados ou vendidos em partes.

Ele inclinou-se para trás na poltrona, relaxando.


- No islamismo, acredita-se que Alá irá enviar um

tigre para defender e proteger aqueles que o seguirem
fielmente, mas também enviará um tigre para punir aqueles
que considera traidores.
- Acho que se eu fosse muçulmana fugiria de tigres, só por garantia.

Ele riu.


- Sim, muito sábio da sua parte. Confesso que

absorvi parte do fascínio que meu empregador tem por tigres e
estudei numerosos textos sobre a mitologia dos tigres indianos, em particular.

Ele deixou a voz morrer por um momento, perdido em

pensamentos, os olhos vidrados. O dedo indicador esfregava
um ponto na gola aberta e percebi que ele usava um pequeno
pingente em forma de cunha numa corrente que estava
parcialmente escondida sob a camisa.

Quando sua atenção se voltou outra vez para mim, ele

baixou a mão para o colo e prosseguiu:

- Os tigres também são um símbolo de poder e

imortalidade. Diz-se que podem derrotar o mal por vários
meios. São chamados doadores de vida, sentinelas, guardiões e defensores.

Estiquei as pernas e acomodei melhor a cabeça no travesseiro.


- Existe algum tipo de lenda com tigres do tipo "donzela em perigo"?


Ele pensou um pouco.


- Ah, sim. Na verdade, uma das minhas histórias

favoritas é sobre um tigre branco que cria asas e salva a
princesa que o ama de um destino cruel. Levando-a nas costas,
eles abrem mão de suas formas corpóreas e se tornam uma
única risca branca subindo para o céu, finalmente juntando-se
às estrelas da Via Láctea. Juntos, eles passam a eternidade
vigiando e protegendo as pessoas na Terra.

Bocejei, sonolenta.


- Isso é muito bonito. Acho que é a minha preferida também.


Sua voz suave e melódica havia me relaxado. Apesar de

meus esforços para ficar acordada e ouvir, eu estava caindo no sono.

Ele continuou, sem se abalar:


- Em Nagaland, o povo acredita que tigres e homens

são irmãos. De acordo com uma lenda, a Mãe Terra era a mãe
do tigre e também do homem. Houve um tempo em que os dois
irmãos eram felizes, amavam um ao outro e viviam em
harmonia. Mas surgiu uma hostilidade entre eles por causa de
uma mulher, e Irmão Tigre e Irmão Homem se enfrentaram
com tamanha violência que a Mãe Terra não pôde mais tolerar
aquela discórdia e teve que mandar os dois para longe.
- Está explicado - brinquei.

O Sr. Kadam sorriu e continou:


- Irmão Tigre e Irmão Homem deixaram a casa da

Mãe Terra e emergiram de uma passagem escura e muito
profunda, saindo no interior da terra, no que diziam ser uma
toca de pangolim. Vivendo juntos dentro da terra, os dois
irmãos ainda lutavam todos os dias, até que por fim decidiram
que seria melhor viverem separados. Irmão Tigre foi para o sul
caçar na selva e Irmão Homem foi para o norte, cultivar o solo
no vale. Se ficassem longe um do outro, então ambos estariam
felizes. Mas, se um ultrapassasse os limites do território do
outro, a luta recomeçava. Muito tempo depois, a lenda
permanece viva. Se os descendentes do Irmão Homem deixam
a selva em paz, Irmão Tigre também nos deixa em paz. Ainda
assim, o tigre é nosso parente e dizem que, se você fitar os
olhos de um tigre por bastante tempo, poderá reconhecer um espírito semelhante.

Minhas pálpebras se fechavam contra a minha vontade.

Eu queria perguntar o que era um pangolim, mas minha boca
não se movia e minhas pálpebras pesavam muito. Fiz um
último esforço de permanecer desperta mudando de posição
na cadeira, forçando os olhos a se abrirem.

O Sr. Kadam me olhava, pensativo.


- Um tigre branco é uma espécie muito especial. Ele

é irremediavelmente atraído para uma pessoa, uma mulher,
que tem grande apego às próprias convicções. Essa mulher terá
grande força interior, a sabedoria para discernir o bem do mal
e o poder para superar muitos obstáculos. Ela, que é chamada a
caminhar com tigres...

Mergulhei no sono.


Quando acordei, a poltrona diante da minha estava

vazia. Eu me aprumei e olhei à volta, mas não vi o Sr. Kadam
em parte aguma. Desafivelei o cinto de segurança e saí à
procura do banheiro.

Abrindo uma porta de correr, entrei em um banheiro

surpreendentemente grande, em nada semelhante aos
minúsculos banheiros de um avião comum. As luzes eram
embutidas nas paredes e iluminavam suavemente os itens
especiais do ambiente. Era decorado em tons de cobre, creme e
ferrugem, que me agradavam mais do que o aspecto moderno
e austero da cabine do avião.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi o

chuveiro. Abri a porta de vidro para espiar lá dentro. Os belos
azulejos ferrugem e creme eram dispostos em um lindo
padrão. Havia dispensers com xampu, condicionador e
sabonete líquido. Um simples aperto ligava e desligava a ducha
de cobre. Um grosso tapete creme cobria o belo piso de ladrilhos.

De um lado, viam-se dois nichos verticais engastados

na parede, repletos de macias toalhas brancas, penduradas em
um suporte de cobre. Outro amplo compartimento exibia um
roupão macio e sedoso, totalmente forrado, que parecia de
caxemira. Logo abaixo dele, outro pequeno nicho guardava um
par de pantufas de caxemira.

Uma pia funda, no formato de um retângulo estreito,

tinha uma torneira de cobre e, de um lado, um dispenser com
sabonete líquido, do outro, um com hidratante de lavanda.

Saí do banheiro e fui para minha poltrona confortável.

O Sr. Kadam havia voltado e Nilima, a comissária de bordo, nos
serviu um almoço com um aroma delicioso. Ela havia armado
uma mesa entre nós e disposto dois pratos.

Nilima ergueu as tampas sobre nossos pratos e anunciou:


- Hoje o almoço é linguado com crosta de avelã,

aspargos na manteiga, purê de batata com alho e torta de limão
para sobremesa. O que gostariam de beber?

- Água com limão - respondi.

- O mesmo para mim - disse o Sr. Kadam.

Desfrutamos o almoço juntos. O Sr. Kadam me fez

muitas perguntas sobre o Oregon. Ele parecia ter uma sede
insaciável de aprender fatos novos e me perguntou sobre tudo,
de esportes e política (assuntos que não domino) à flora e à fauna do estado.

Conversamos sobre o ensino médio, minha experiência

no circo e minha cidade natal: as migrações de salmões, as
fazendas de árvores de Natal, os mercados de produtores e os
arbustos de amora que, de tão comuns, eram considerados erva
daninha. Era fácil conversar com ele, pois era um bom ouvinte
e me deixava à vontade. O pensamento de que ele seria um avô
maravilhoso cruzou a minha mente. Não tive a chance de
conhecer nenhum dos meus. Eles morreram antes de eu nascer,
assim como minha outra avó.

Depois de terminarmos o almoço, Nilima voltou para

tirar os pratos e eu a observei recolher a mesa. Quando ela
apertou um botão, um motorzinho soou. A mesa retangular
sem pernas inclinou-se para cima até se nivelar com a parede
e então deslizou, embutindo-se no revestimento da parede.
Nilima nos instruiu a afivelar os cintos pois logo chegaríamos a Nova York.

A descida foi tão suave quanto a decolagem. Enquanto

reabastecíamos para a viagem até Mumbai, fui ver Ren.

Depois de me certificar de que ele tinha comida e

bebida suficientes, sentei-me no chão perto de sua jaula. Ele se
aproximou e deixou-se cair bem ao meu lado. Suas costas
estavam estiradas ao longo do comprimento da jaula, com o
pelo listrado projetando-se pelas grades e fazendo cócegas em
minhas pernas, e sua cabeça estava perto da minha mão.

Ri para ele, inclinei-me para acariciar o pelo de suas

costas e recontei algumas das lendas de tigres que ouvira do Sr.
Kadam. Sua cauda ficava chicoteando de um lado para outro,
saindo e entrando pelas grades da jaula.

O tempo passou depressa e o avião logo estava pronto

para decolar novamente. O Sr. Kadam já afivelava o cinto. Dei
tapinhas no dorso de Ren e voltei para minha poltrona também.

Decolamos e o Sr. Kadam me advertiu de que esse seria

um voo longo, de cerca de 16 horas, e que perderíamos um dia
no calendário. Depois de atingirmos a altitude de cruzeiro, ele
sugeriu que eu assistisse a um filme. Nilima me entregou uma
lista de todos os filmes disponíveis e escolhi o mais longo deles: ...E o vento levou.

Ela se dirigiu à área do bar, pressionou um botão na

parede e uma grande tela branca deslizou, saindo da lateral do
bar. Minha poltrona girou com facilidade, ficando de frente
para a tela, e até reclinou-se, oferecendo um descanso para os
pés. Então me acomodei e passei algumas horas na companhia de Scarlett e Rhett.

Quando finalmente cheguei ao "Afinal, amanhã será

outro dia", fiquei de pé e me espreguicei. Olhei pela janela e
descobri que já estava escuro. Eu tinha a sensação de que eram
apenas cinco da tarde, mas calculei que deviam ser umas nove
da noite no fuso horário em que nos encontrávamos.

Nilima surgiu, apressada, retornou a tela de cinema à

posição anterior e então começou a pôr a mesa novamente.
- Muito obrigada por essas refeições deliciosas e
pelo serviço maravilhoso - agradeci a ela.
- Isso mesmo. Obrigado, Nilima - disse o Sr. Kadam,
piscando para ela, que inclinou a cabeça ligeiramente e saiu.

Mais uma vez partilhei um agradável jantar com o Sr.

Kadam. Dessa vez conversamos sobre o seu país. Ele me contou
muitos fatos interessantes e descreveu lugares fascinantes na
índia. Imaginei se teria tempo de conhecer tantas atrações. Ele
falou de antigos guerreiros, poderosas fortalezas, invasores
asiáticos e batalhas horríveis. Enquanto ele falava, eu tinha a
sensação de que estava vendo e presenciando tudo aquilo.

Nilima nos serviu peito de frango recheado com

abobrinha grelhada e uma salada. Eu me sentia bem comendo
mais legumes e verduras, até que ela trouxe petits gateaux de sobremesa.

Suspirei.


- Por que tudo que faz mal é sempre tão gostoso?


O Sr. Kadam riu.


- Você se sentiria melhor se dividíssemos um?

- Com certeza.

Cortei meu petit gâteau ao meio e passei a sua parte para um prato limpo.


Lambi a calda quente e espessa da colher. Que vida boa.

Muito boa. Eu poderia me acostumar a isso.

Nas horas que se seguiram conversamos sobre nossos

livros favoritos. Ele gostava de clássicos, como eu, e nos
divertimos muito revisitando personagens memoráveis:
Hamlet, Capitão Ahab, Dr. Frankenstein, Robinson Crusoé, Jean
Valjean, Iago, Hester Prynne e o Sr. Darcy. EÍe também me
apresentou a alguns personagens indianos que pareciam
interessantes, como Arjuna e Shakuntala, ou ainda Gengi, da literatura japonesa.

Reprimindo um bocejo, me levantei para dar outra

olhada em Ren. Estendi a mão por entre as grades para
acariciar-lhe a cabeça e coçar atrás de sua orelha.

O Sr. Kadam me observava e disse:


- Srta. Kelsey, não tem medo deste tigre? Não acha que ele possa machucá-la?

- Eu acho que ele pode me machucar, mas sei que
não vai fazer isso. É difícil explicar, mas eu me sinto em segurança com ele, quase
como se fosse um amigo e não um animal selvagem.

O Sr. Kadam não pareceu alarmado, apenas curioso. Ele falou baixinho com Nilima por um momento.


Ela se aproximou de mim e perguntou:


- Está pronta para dormir um pouco, senhorita?


Assenti e ela me mostrou onde minha bolsa havia sido guardada. Eu a

apanhei e segui para o banheiro. Não fiquei lá muito tempo, mas nesse meio-tempo
ela havia se ocupado bastante.

Agora havia uma cortina dividindo a cabine e ela

armara um sofá-cama que se transformou em um leito
confortável com lençóis de cetim e travesseiros altos e macios.
O avião estava escuro e ela me disse que o Sr. Kadam estaria do
outro lado da cortina se eu precisasse de alguma coisa.

Fui dar uma rápida olhada na jaula do tigre. Ele me

olhava, sonolento, a cabeça apoiada nas patas.

- Boa noite, Ren. Vejo você na Índia, amanhã.


Cansada demais para ler, enfiei-me debaixo das

cobertas macias e sedosas, e me deixei ninar pelo zumbido das turbinas.

O cheiro de bacon me despertou. Espiei pelo canto e vi

o Sr. Kadam sentado, lendo o jornal, com um copo de suco de
maçã na mesa diante dele. Seu cabelo estava levemente
molhado e ele já estava vestido para o dia.

- É melhor se aprontar, Srta. Kelsey. Chegaremos logo.


Peguei minha bolsa e segui para o luxuoso banheiro.

Tomei um banho rápido, lavando os cabelos com o delicioso
xampu com cheiro de rosas. Quando terminei, enrolei o cabelo
com a toalha grossa e vesti o roupão de caxemira. Soltei um
profundo suspiro e me deixei desfrutar do tecido macio por
um momento enquanto decidia o que vestir. Escolhi uma blusa
vermelha e calça jeans e escovei o cabelo, prendendo-o em um
rabo de cavalo amarrado com uma fita vermelha. Voltando
apressada até o Sr. Kadam, afundei na poltrona de couro
enquanto Nilima me trazia um prato de ovos, bacon e torradas.

Comi os ovos, belisquei uma torrada e bebi um pouco

de suco de laranja, mas resolvi guardar o bacon para Ren.
Enquanto Nilima desfazia a cama e a mesa do café da manhã,
fui até a jaula com o petisco. Querendo tentá-lo, estendi um
pedaço pela grade. Ele se aproximou, mordeu a extremidade da
tira de bacon muito delicadamente, puxou-a da minha mão e
então a engoliu de uma só vez.

- Nossa, Ren, você precisa mastigar. Espere aí, os

tigres mastigam? Bem, pelo menos coma mais devagar.

Estendi os outros três pedaços, um por um. Ele engoliu

os três e enfiou a língua pelas grades para lamber meus dedos.

Ri em silêncio e fui lavar as mãos. Então recolhi todos

os meus pertences e guardei a bolsa no compartimento acima
da cabeça. Eu acabara de fazer isso quando o Sr. Kadam se
aproximou, apontou para a janela e disse:
- Srta. Kelsey, bem-vinda à Índia.

Um comentário:

  1. Eu já li esse livro umas 4 vezes na biblioteca da escola, mas toda vez que eu leio é como se eu estivesse lendo pela primeira vez!
    Todos os livros da coleção são incríveis e eu amei ler cada um deles!

    ResponderExcluir

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!