segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Capítulo 6 - Mumbai

Enquanto sobrevoávamos o oceano, olhei pela janela
em direção à cidade. Acho que eu não esperava ver uma cidade
moderna e fiquei perplexa com as centenas de edifícios altos,
brancos e uniformes que se espalhavam diante de mim.
Enquanto descrevíamos um círculo sobre o amplo aeroporto
em forma de meia-lua, o trem de pouso foi baixado.

A aeronave balançou duas vezes e se estabilizou na

pista. Girei na cadeira para ver como Ren estava. Ele se
encontrava de pé, em expectativa, mas, afora isso, parecia bem.

Senti uma onda de energia enquanto taxiávamos pela pista até pararmos.


- Srta. Kelsey, está pronta para desembarcar? - perguntou o Sr. Kadam.

- Estou. Vou só pegar a bolsa.

Passei-a pelo ombro, saí do avião e desci rapidamente

os degraus até o solo. Inspirando o ar abafado e úmido, fiquei
surpresa ao ver um céu cinzento.

- Sr. Kadam, o tempo não costuma ser quente e

ensolarado na Índia?
- É a estação chuvosa. Quase nunca faz frio aqui,
mas temos chuvas em julho e agosto e, ocasionalmente, um ciclone.

Entreguei-lhe minha bolsa e me afastei para observar

alguns homens tentando deslocar Ren. A operação era muito
diferente da que ocorrera nos Estados Unidos. Dois homens
prenderam longas correntes em sua coleira, enquanto outro
fixava uma rampa na carroceria de um caminhão. Eles
conseguiram tirar com facilidade o tigre do avião, mas de
repente o sujeito mais próximo de Ren puxou a corrente forte
demais. O tigre reagiu depressa. Rugiu, furioso, e, indolente,
golpeou o homem com a pata.

Eu sabia que era perigoso me aproximar, mas alguma

coisa me fez avançar. Pensando apenas no bem-estar de Ren,
fui até o homem assustado, peguei a corrente da sua mão e fiz
sinal para que recuasse. Ele pareceu agradecido por ser
liberado daquela responsabilidade. Falei algumas palavras
tranquilizadoras para o tigre, dei tapinhas em suas costas e o
encorajei a ir comigo até o caminhão.

Ele respondeu imediatamente e andou ao meu lado,

dócil como um cordeiro, arrastando as pesadas correntes pelo
chão. Na rampa, ele parou e esfregou o corpo em minha perna.
Então pulou para o caminhão, virou-se, ficando de frente para
mim, e lambeu meu braço.

Acariciei-lhe o ombro, murmurando com suavidade e acalmando-o enquanto

minha mão deslizava em sua coleira e soltava as pesadas correntes. Ren olhou para
os homens queainda estavam paralisados no mesmo lugar, atônitos, expressou
com um bufo seu desagrado e grunhiu baixinho. Enquanto eu
lhe dava água, ele esfregou a cabeça ao longo do meu braço e manteve
os olhos fixos nos trabalhadores, como se fosse meu
cão de guarda. Os homens começaram a falar muito rápido entre si em hindi.

Fechei a jaula e a tranquei no momento em que o Sr.

Kadam se aproximava dos trabalhadores e falava com eles em
voz baixa. Ele não parecia surpreso com o que acontecera. O
que quer que tenha dito devolveu a confiança a eles, que
recomeçaram a se movimentar pela área, tomando o cuidado
de manter uma boa distância do tigre. Rapidamente
recolheram o equipamento e levaram o avião até um hangar próximo.
Depois que Ren se encontrava em segurança no caminhão, o Sr. Kadam me
apresentou ao motorista, que parecia simpático porém muito jovem, mais jovem
ainda do que eu. Mostrando-me onde minha bolsa fora colocada, o Sr. Kadam
apontou outra bolsa que ele comprara para mim. Era
uma mochila grande preta com vários compartimentos. Ele abriu o zíper de alguns
para me mostrar os itens que colocara ali. O bolso traseiro continha uma boa quantia
da moeda indiana. Em outro bolso havia documentos de viagem para
mim e Ren. Abri um zíper e encontrei uma bússola e um is-
queiro. O principal compartimento da mochila estava
abastecido com barras de cereais, mapas e garrafas de água.

- Sr. Kadam, por que incluiu uma bússola e um isqueiro na bolsa?


Ele sorriu e deu de ombros, fechando os bolsos da

mochila e colocando-a no banco da frente.

- Nunca se sabe o que pode vir a ser útil ao longo da

viagem. Eu só queria ter certeza de que estivesse totalmente
preparada, Srta. Kelsey. Aí também tem um dicionário híndi-
inglês. Dei instruções ao motorista, mas ele não fala inglês
muito bem. Preciso me despedir da senhorita agora.

Ele sorriu e apertou meu ombro.


De repente me senti vulnerável. A perspectiva de seguir

viagem sem o Sr. Kadam me deixou ansiosa. Bem, estou por
minha própria conta. Hora de agir como adulta. Tentei me
acalmar, mas o medo do desconhecido estava me corroendo
por dentro e abrindo um buraco no meu estômago.

- Tem certeza de que não pode mudar seus planos e

seguir viagem conosco? - perguntei, em tom suplicante.

- Infelizmente, não posso acompanhá-la em sua

jornada. - Ele sorriu, tranquilizador. - Não se preocupe, Srta. Kelsey. A senhorita
é mais do que capaz de cuidar do tigre e planejei cada detalhe da viagem. Vai dar tudo certo.

Dirigi-lhe um sorriso amarelo e ele pegou minha mão,

envolvendo-a com as suas por um momento, e disse:

- Confie em mim, Srta. Kelsey. Vai ficar tudo bem.


Com um brilho nos olhos e uma piscadela, ele se foi.

Olhei para Ren.

- Bem, garoto, acho que agora somos só nós dois.


Impaciente por começar e terminar logo a viagem, o motorista chamou da cabine do caminhão.


- Nós vamos?

- Sim, vamos - respondi com um suspiro.

Quando subi no caminhão, o motorista pisou no

acelerador e não tirou mais o pé daquele pedal. Deixou o
aeroporto em disparada e em menos de dois minutos serpenteava em meio
ao trânsito a uma velocidade assustadora.
Agarrei-me à porta e à alça de apoio à minha frente. No entanto, ele não era
o único motorista insano. Todos na estrada pareciam pensar que 130 quilômetros
por hora em uma cidade apinhada, com centenas de pedestres, não era veloz o bastante.
Multidões vestidas em cores vibrantes passavam em
todas as direções pela minha janela.

Veículos de tudo quanto era tipo enchiam as ruas -

ônibus, automóveis compactos e um tipo de carro minúsculo e
quadrado, sem portas e com três rodas, passavam em
disparada. Os quadrados deviam ser os táxis locais, porque
havia centenas deles. Também havia incontáveis motos,
bicicletas e pedestres. Vi até mesmo animais puxando carroças
cheias de pessoas e mercadorias.

Achei que devíamos seguir no lado esquerdo da pista,

mas parecia não haver nenhum padrão distinto ou mesmo
listras brancas para marcar as faixas. Havia poucos sinais e
placas de trânsito. Os veículos simplesmente dobravam à
esquerda ou à direita onde quer que houvesse uma saída, e às
vezes até onde não havia. Numa ocasião, um carro veio em
nossa direção e só desviou no último segundo. O motorista ria
de mim a cada vez que eu arquejava de medo.

Aos poucos fui me acostumando o suficiente para

começar a apreciar os lugares por que passávamos e, com
interesse, vi incontáveis mercados multicoloridos e camelôs
vendendo artigos variados. Comerciantes anunciavam
marionetes, jóias, tapetes, souvenirs, temperos, castanhas e
todos os tipos de frutas, legumes e verduras em pequenas
vendas ou em veículos parados na rua.

Todos pareciam vender alguma coisa. Outdoors

exibiam anúncios de consultas de tarô, quiromancia, tatuagens
exóticas, piercing e pintura corporal com hena. A cidade
inteira era um panorama turístico vibrante, enlouquecido e
apressado, com pessoas de todas os tipos e classes sociais.
Parecia não haver um só centímetro quadrado desocupado na cidade.

Depois de uma angustiante travessia pelas ruas

agitadas, chegamos à auto-estrada. Finalmente pude relaxar
um pouco. Não porque o motorista seguisse mais devagar - na
verdade, ele havia até acelerado -, mas porque o tráfego tinha
diminuído bem. Tentei seguir em um mapa o trajeto que
percorríamos, mas a falta de placas na estrada dificultava a
tarefa. Uma coisa que notei, porém, foi que o motorista perdeu
uma saída para outra rodovia, a que nos levaria à reserva dos tigres.

- Por ali, à esquerda! - gritei, apontando.


Ele deu de ombros e agitou a mão, rejeitando minha

sugestão. Peguei o dicionário e tentei encontrar como dizer
esquerda ou caminho errado. Finalmente encontrei as palavras
kharãbi rãha, que significavam estrada errada ou caminho
incorreto. Ele apontou a estrada à frente com o indicador e disse:

- Estrada mais rápida.


Desisti e deixei-o fazer o que queria. Afinal, era o país

dele. Achei que saberia mais sobre as estradas do que eu.

Depois de seguir por cerca de três horas, paramos em

uma minúscula cidade chamada Ramkola. Chamá-la de cidade
era superestimar o tamanho do lugar, pois ele contava apenas
com um mercado, um posto de gasolina e cinco casas. Ficava
nos limites de uma floresta, onde avistei uma placa.

SANTUÁRIO DA VIDA SELVAGEM YAWAL


PAKSIZAALAA YAWAL


4 KM


O motorista saltou do caminhão e começou a encher o

tanque de combustível. Ele apontou para o mercado do outro
lado da rua e disse:

- Coma. Comida boa.


Peguei a mochila e fui até a carroceria do caminhão

dar uma olhada em Ren. Ele estava esparramado no chão da
jaula. Abriu os olhos e bocejou quando me aproximei, mas manteve-se inerte.

Caminhei até o mercado e abri a porta descascada, que

rangeu. Uma sineta tocou, anunciando minha presença.

Uma indiana vestida com um sári tradicional surgiu da

sala nos fundos e sorriu para mim.

- Namaste. Quer comida? Comer alguma coisa?

- Ah! Você fala inglês? Sim, eu gostaria muito de almoçar.
- Você senta ali. Eu preparo.

Embora fosse almoço para mim, provavelmente era

jantar para eles, pois o sol já ia se pondo. Ela fez sinal para que
eu me dirigisse a uma mesinha com duas cadeiras arrumada
perto da janela e então desapareceu. O estabelecimento era
uma sala pequena e retangular que continha vários produtos
de armazém, souvenirs do santuário de vida selvagem ali perto
e artigos práticos, como fósforos e ferramentas.

Uma música indiana tocava baixinho ao fundo.

Reconheci os sons de uma cítara e o tilintar de sinos, mas não
consegui identificar os outros instrumentos. Olhei para a porta
por onde a mulher passara e ouvi o retinir de panelas na
cozinha. Parecia que a loja era a frente de uma construção
maior e que a família morava em uma casa anexa nos fundos.

Em pouquíssimo tempo, a mulher retornou,

equilibrando quatro tigelas de comida. Uma garota a seguia,
trazendo ainda mais comida. O aroma era exótico e condimentado.

- Por favor, coma e desfrute - disse a mulher.


Em seguida, desapareceu nos fundos, e a garota

começou a arrumar prateleiras na loja enquanto eu comia. Eles
não haviam me trazido nenhum talher, então peguei um pouco
de cada prato com os dedos, lembrando de usar a mão direita,
conforme a tradição indiana. Ainda bem que o Sr. Kadam mencionou isso no avião.

Reconheci o arroz basmati, o pão naan e o frango

tandoori, mas os outros três pratos eu nunca vira antes. Olhei
para a garota, inclinei a cabeça e perguntei:

- Você fala inglês?


Ela fez que sim com a cabeça e se aproximou. Gesticulando com os dedos, ela disse:


- Um pouquinho de inglês.


Apontei para uma massa triangular recheada com legumes condimentados.


- Como se chama isto?

- Isto sarnosa.
- E este aqui e este outro?

Ela apontou um deles e em seguida o outro:


- Rasmalai e baigan bartha.


A menina sorriu timidamente e se afastou, voltando ao trabalho nas prateleiras.


Rasmalai eram bolas de queijo de cabra mergulhadas

em um molho cremoso e adocicado, e baigan bharta era um
prato de berinjela com ervilha, cebola e tomate. Estava tudo
muito bom, mas era muita comida. Quando terminei, a mulher
me trouxe um milk-shake feito com manga, iogurte e leite de cabra.

Agradeci, beberiquei o milk-shake e deixei meus olhos

correrem para o cenário lá fora. Não havia muito o que ver:
somente o posto de gasolina e dois homens de pé ao lado do
caminhão conversando. Um deles era um rapaz muito bonito
vestido de branco. Estava de frente para o mercado e falava
com outro homem que se encontrava de costas para mim. O
segundo homem era mais velho e lembrava o Sr. Kadam. Eles
pareciam estar discutindo. Quanto mais eu os observava, mais
convencida ficava de que era o Sr. Kadam, mas ele discutia
acaloradamente com o rapaz, e eu não podia sequer imaginar
o Sr. Kadam se alterando daquela maneira.

Que estranho, pensei e tentei captar algumas palavras

pela janela aberta. O homem mais velho disse nahi mahodaya
várias vezes, e o rapaz repetia avashyak ou algo parecido.

Folheei meu dicionário de hindi e encontrei nahi mahodaya

com facilidade. Significava de jeito nenhum ou não, senhor.
Avashyak era mais difícil, pois eu tinha que deduzir como
soletrar, mas acabei encontrando. Essa palavra significava
necessário ou essencial, alguma coisa que precisa ser ou deve acontecer.

Fui até a janela para ter uma visão melhor. Nesse

momento, o rapaz de branco ergueu os olhos e me flagrou
observando os dois da janela. Ele imediatamente interrompeu a
conversa e saiu do meu campo de visão, dando a volta no
caminhão. Constrangida por ter sido apanhada, mas bastante
curiosa, percorri o labirinto de prateleiras até a porta. Eu
precisava saber se o homem mais velho era o Sr. Kadam ou não.

Segurando a maçaneta frouxa, girei-a e abri a porta.

Ela gemeu nas dobradiças enferrujadas. Atravessei a rua de
terra e fui até o caminhão, mas ainda assim não encontrei
ninguém. Circulando o veículo, parei junto à carroceria e vi
Ren me observando, alerta, de sua jaula. Os dois homens e o
motorista haviam desaparecido. Espiei na cabine. Não havia ninguém ali.

Confusa, mas lembrando que ainda não havia pago a

conta, tornei a atravessar a rua e voltei ao mercado. A garota já
havia recolhido meus pratos. Peguei algumas cédulas na mochila e perguntei:

- Quanto?

- Cem rupias.

O Sr. Kadam havia me ensinado a fazer a conversão do

dinheiro dividindo o total por quarenta. Rapidamente calculei
que ela estava me pedindo o equivalente a 2 dólares e 50
centavos. Sorri comigo mesma, pensando em meu pai, que
adorava matemática, e na tabuada de divisão que ele costu-
mava me fazer recitar quando eu era pequena. Dei-lhe 200
rupias e ela me dirigiu um sorriso radiante.

Agradecendo, disse-lhe que a comida estava deliciosa. Peguei a mochila, abri a porta e saí.


O caminhão havia desaparecido.


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