quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Capítulo 8 - Um Kara nas sombras da noite


  Depois de pular para fora do carro da polícia, Miguel correu sem forçar
muito. Ele sabia que Andrade jamais poderia alcançá-lo a pé. Mesmo que fosse
mais magro e mais jovem, Andrade nunca seria páreo para um atleta como
Miguel.
  Certamente o policial já deveria ter dado um alerta pelo rádio do carro, e
outras viaturas da polícia logo chegariam para cercar a área, à sua procura. Por
isso era necessário confundir ao máximo a própria pista.
  Ele tinha fugido ladeira abaixo, no sentido contrário à direção do trânsito, para
impedir que Andrade o perseguisse de carro. Entrou em um jardim, atravessou a
lateral da casa até o quintal e pulou o muro de trás, passando para o terreno de
outra casa, que também atravessou. Estava, agora, na rua paralela àquela onde
tinha pulado para fora do carro. Era só correr ladeira acima enquanto a polícia
procurava por ele ladeira abaixo.
  No alto da ladeira, entrou no primeiro ônibus que parou.
Era hora de saída do trabalho, e o ônibus estava lotado de pessoas cansadas,
suadas, ansiosas por chegar em casa a tempo de assistir à novela das oito.
Rapazinho rico, como todos do Colégio Elite, Miguel estava pouco acostumado a
andar de ônibus, mas, misturado àquela multidão de trabalhadores, bem podia
passar por um office-boy voltando para casa. O ônibus era a melhor maneira de
esconder-se da polícia.
  "Chumbinho!", pensava Miguel, espremido no meio daquela gente toda. "Será
que o maldito Andrade disse a verdade? Será que Chumbinho está agora nas
mãos da quadrilha? Eu não fui com a cara do Andrade, nem ele com a minha...
Pra mim, ele faz parte do esquema todo. Na certa ele pertence à quadrilha do tal
cérebro criminoso..."
  O sacolejar do ônibus lembrou a Miguel todos os lances daquele dia, o
terceiro desde que ele havia convocado aquela emergência máxima.
"Tem alguma coisa muito suspeita com o Andrade... Primeiro o modo
desinteressado dele lá na sala do professor Cardoso... Depois o jeito dele tentando
me levar para a delegacia... E o modo como ele se livrou do detetive Rubens,
impedindo que ele entrasse na viatura? É claro que Andrade não ia me levar para
a delegacia... Na certa ele... Talvez eu pudesse confiar no detetive Rubens, mas,
depois que eu fugi, certamente sou um suspeito..."
  Miguel sentia-se cansado e faminto quando desceu do ônibus e procurou um
telefone público. O único que encontrou estava depredado por algum vândalo,
como há tantos em São Paulo. Acabou entrando em uma lanchonete e pediu para
telefonar.
  Procurou na lista o telefone do Chumbinho, pelo sobrenome do garoto. O
sobrenome era meio raro e só havia um na lista.

— Alô? O Chumbinho está?

Do outro lado da linha, a voz da mãe do Chumbinho estava desesperada:

— Meu filho! Meu filho foi sequestrado!

Miguel sentiu o coração apertar-se. Então era verdade!

— Seu filho vai aparecer, senhora. São e salvo. Eu juro!

— Quem está falando?

Mas Miguel já tinha desligado. Em seguida, discou o número de Calú.

— Alô? — era a voz do melhor ator do Colégio Elite.

— Emergência máxima, Kara! Chumbinho desapareceu!

— Mas como...

— Acabei de ligar para a casa dele. Precisamos agir. Não confie em
ninguém, principalmente no detetive gordo e careca, chamado Andrade.

— Tá bom. Onde você está?

— Não importa. Amanhã de manhã me encontre no esconderijo secreto. E o
único lugar seguro para mim agora. Vou passar a noite lá. Telefone para a minha
casa, Calú. Imite a minha voz e diga que eu vou dormir na sua casa esta noite.
Invente que vamos estudar juntos para uma prova, ou qualquer coisa parecida.
Não quero que minha família fique preocupada.

— Certo, Miguel.

— Você já verificou todos os endereços que eu indiquei?

— Já. Alguns não deu pra localizar. Consegui todos os endereços com as
próprias escolas, mas acho que me informaram errado.

— Eu não consegui visitar todos os meus. Tome nota dos que faltam e tente
interrogar os pais desses garotos por telefone. Finja que é um policial... Ei, Calú,
você tem certeza de que é capaz de imitar voz de adulto?

— E claro, Kara!

— Muito bem. Tente descobrir tudo o que puder. Quem sabe não localizamos
alguma pessoa comum a todos os seqüestradores? Se descobrirmos, teremos
encontrado o oferecedor.

— Certo. E quais os pais que faltam?

— Tome nota.

— Pode falar. Estou anotando.

Miguel ditou a relação para Calú e despediu-se:

— Reunião amanhã às oito. Todo os Karas!

— Amanhã às oito, Miguel.

  Miguel desligou o telefone. Nada mais havia a fazer naquela noite. Dali em
diante, ele teria de estabelecer o seu quartel-general no esconderijo secreto e
prosseguir a investigação usando os outros Karas que ainda não eram conhecidos
pela polícia.
  Ainda na lanchonete, tomou um suco de laranja e comeu um sanduíche. Fez
o próximo percurso utilizando três ônibus diferentes e, quando chegou ao Elite o
colégio estava às escuras
  Miguel pulou o muro do pátio silenciosamente, para não atrair a atenção dos
vigias da noite. Era lua cheia, e o luar iluminava fracamente as quadras. O garoto
esgueirou-se junto ao muro, como uma sombra.
  Perto dos vestiários, dois vigias conversavam preguiçosamente.
Miguel pegou uma pedrinha e jogou-a violentamente contra a tabela de
basquete que havia do outro lado do pátio.

— Você ouviu isso? — perguntou um dos vigias.

— Ouvi. Não é nada.

— O barulho veio de lá. Vamos verificar. Não temos nada pra fazer
mesmo...

  Enquanto os dois se afastavam, Miguel saltou, agarrando-se no beiral do
telhado dos vestiários. Ele sabia que as portas ficavam trancadas à noite e tinha
de entrar no esconderijo secreto de outra maneira.
  Caminhou sobre o telhado como um gato, afastou duas telhas e espremeu-se
por entre as ripas e os sarrafos que sustentavam o telhado. Do lado de dentro,
recolocou as telhas no lugar.
  Estava sozinho, no esconderijo secreto dos Karas, fracamente iluminado pelo
luar que atravessava as poucas telhas de vidro.
  Desceu pelo alçapão do quartinho das vassouras e, no escuro, procurou uma
das privadas para urinar. Escolheu justamente aquela onde havia uma
mensagem malcheirosa da qual ele gostaria muito de tomar conhecimento. Mas
o vestiário estava escuro, pois não seria possível acender a luz sem chamar a
atenção dos vigias. E a mensagem continuou ali, sem que Miguel a percebesse.
  Abriu só um pouquinho uma torneira, para evitar o barulho, e lavou os
arranhões que tinha sofrido ao saltar para longe do carro e de Andrade.
Subiu de novo para o esconderijo e ajeitou-se para dormir.
  A lua veio espiar pelas telhas de vidro. Cansado, Miguel pensou ver o rosto
sorridente do Chumbinho naquele disco de prata.
  "Chumbinho... Tudo minha culpa! Se eu não tivesse aceitado a intromissão
daquele garoto... Ele é tão pequeno... Eu aceitei, só por brincadeira. Agora o
coitado está nas mãos da quadrilha! Pobre Chumbinho... Eu não devia... Mas eu
vou salvá-lo... Eu vou..."
  Adormeceu, iluminado pela lua.

* * *

  Calú telefonou primeiro para a casa de Miguel e saiu-se muito bem. Era tão
bom ator que a própria mãe do amigo acreditou piamente que estava falando
com o filho.
  Depois começou a ligar para as casas dos meninos desaparecidos que Miguel
não pudera visitar. Em cada chamada, fazia uma voz diferente, perguntava tudo
o que queria e prometia ligar de novo. Foi estranho: quatro dos telefones estavam
errados. As famílias procuradas não moravam naqueles endereços.
  Tinha terminado o último telefonema quando a polícia chegou.

* * *

  Suado, com o rosto vermelho, o detetive saltou do carro e correu para a casa.

— É a polícia. Abram! —ordenou o detetive esmurrando valentemente a
porta.

  Um segundo carro, de sirene ligada, estacionou atrás do primeiro, cantando
os pneus. Um policial mais jovem correu também para a casa. Os olhares dos
detetives cruzaram-se, e, se olhar fosse metralhadora, os dois estariam mortos na
hora. Um criado de gordas bochechas e óculos de grossas lentes abriu a porta:

— Pois não? O que desejam?

— Esta é a casa de um rapaz chamado Calú? — perguntou o policial mais
velho.

— E um outro garoto, chamado Miguel? Está aí também? — ajuntou o outro.

O criado parecia um pouco assustado com a ansiedade dos policiais:

— S... s... sim... Só que os dois saíram...

— Para onde foram?

— Não disseram. Mas devem voltar logo, eu acho...

— Vou esperar no carro.

— Eu também vou.

O criado fechou a porta. Em vez de estar assustado, ele sorria.

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