quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 11 - Já ouvi esse nome...

Ao longe, vindo das avenidas que circundam o Parque do Ibirapuera, o ruído
dos automóveis era só o que se ouvia. O grupo permaneceu mudo após o relato
de Calú, como se esperasse uma continuação.
—Que história! — exclamou Andrade, baixinho.
— Mas o que isso tudo tem a ver com...
Magrí interrompeu o pensamento do detetive:
— Esperem um pouco! Agora sei o que me chamou a atenção no folheto
amarelo que Calú encontrou no cesto de papéis do camarim. Empreste um pouco
o papel, Andrade!
O gordo detetive retirou o papel amarelo amarrotado do bolso e o estendeu
para a menina. Magrí correu os olhos pelo impresso e apontou:
— Vejam! Aqui!
Todos olharam o parágrafo para onde apontava o dedo de Magrí. Entre as
calúnias mais sórdidas, havia uma que dizia:
Os judeus desejam eterna vingança, pois até hoje perseguem velhos
sargentos e tenentes que apenas cumpriam ordens na Segunda Guerra Mundial.
— Estão vendo? "Velhos sargentos e tenentes"... O Anjo da morte era um
tenente! E se ele tivesse sobrevivido ao ataque russo naquela noite, no porão do
armazém? E se o velho Sol soubesse disso? Kurt Kraut tentaria matá-lo, não
tentaria?
— Solomon Friedman não sabia disso, Magrí — lembrou Crânio. — De
acordo com o que Calú nos contou, Kurt Kraut morreu naquela noite. Os russos
informaram que só havia dois sobreviventes: Solomon Friedman e Ferenc Gábor.
Kurt Kraut tinha trocado de identidade com Davi Segai. Se os sobreviventes
fossem Solomon Friedman e Davi Segai, isso quereria dizer que o Anjo da morte
teria sobrevivido, na pele do pintor. Mas pelo jeito só os dois que estavam
amarrados nas traves do porão conseguiram escapar, malferidos pelas granadas
soviéticas. Os dois que estavam de pé, no meio do porão, foram mortos. Quando
a granada caiu, o nazista voou pelos ares, despachado de volta para o inferno que
o gerou!
— E Davi Segai também — lembrou Calú. — Como eu disse, o velho Sol
contou que havia o corpo de um oficial nazista, todo queimado, sobre o fogareiro.
Era o pobre Davi Segai...
Chumbinho meteu seu bedelho na conversa:
— Somente Sol e Gábor sobreviveram, não é? Sol está morto e, se o outro
sobrevivente era o tenente nazista Kurt Kraut, então Ferenc Gábor deve ser Kurt
Kraut!
— Você se esquece de que Sol foi assassinado ontem perene Gábor só deve
chegar ao Brasil hoje, Chumbinho! — lembrou Andrade.
— Ferenc Gábor...Ferenc Gábor... — falou Chumbinho, vasculhando a
memória em busca de uma certa lembrança. — Já ouvi esse nome... Tenho
certeza... eu já... esse nome em algum lugar... Onde terá sido? Acho que foi no
Colégio Elite... Acho que foi no laboratório...
Para Miguel, ser líder dos Karas significava sempre tentar ordenar as
intermináveis discussões:
— Temos somente a história de Sol, narrada de memória por Calú...
— O que há de errado com a minha memória, Miguel?
Não se esqueça que eu sou um ator, acostumado a decorar qualquer tipo de
texto!—
Não estou duvidando da sua memória, Calú. Mas o que você nos
apresentou foi o relato de um dos sobreviventes do porão do armazém, na União
Soviética, no distante ano de 1944. Que tal agora ouvirmos a versão do outro
sobrevivente?
— Ferenc Gábor?
— E quem mais?
Sentindo-se deslocado em um lugar como aquele, Andrade suava, apesar do
ar condicionado que emprestava ao ambiente uma atmosfera européia. Ao lado
de Magrí, no salão ricamente decorado, o gordo detetive tentava passar
despercebido no meio da nata da sociedade paulistana que lotava a sofisticada
galeria de arte.
Depois da reunião no Parque do Ibirapuera, os Karas e Andrade haviam se
separado, combinando reencontrar-se naquela mesma noite, na galeria onde
seria inaugurada a exposição da obra de Davi Segai.
Cobertas de jóias, mulheres de casacos de pele tilintavam suas taças e
trocavam risadinhas com homens elegantemente vestidos, que exibiam suas
prósperas barriguinhas. O coquetel de abertura da exposição da obra de gênio do
grande Davi Segai era apenas um pretexto, uma das ocasiões em que a alta
sociedade comparece mais para ser vista do que para ver.
Miguel pensou que aquele era o público errado para a obra do grande Segai, o
pintor judeu-alemão que eternizara em tela e tinta o sofrimento e a miséria dos
esquecidos, dos marginalizados, dos massacrados. Aquelas pessoas elegantes
sequer podiam imaginar o que fosse miséria, o que fosse fome, o que fosse o
Holocausto, o que quer que fosse. Pessoas como aquelas é que provocavam a
miséria, a fome, a marginalização, o holocausto dos esquecidos.
Iluminadas por fortíssimos refletores, cerca de trinta telas destacavam-se,
artisticamente organizadas sobre uma larga plataforma coberta por tapetes
persas tão caros quanto as telas. Ali estava parte do talento enfezado de Davi
Segai.
Ali estavam as massas escuras, os protestos sombrios à humana, a denúncia
desesperada do suplício de milhões que pereceram nas câmaras de gás do
regime político mais demente da História. Era impossível permanecer tranqüilo
enquanto se via um daqueles quadros. Eles faziam pensar, faziam pulsar mais
forte os corações, faziam os rostos corarem de vergonha.
Os cinco Karas e o detetive Andrade tinham conseguido convites para a
inauguração com um tio de Magrí, um especialista em arte. Mas, por mais
fantásticos que fossem, os quadros de Davi Segai não conseguiam afastar da
mente daquelas seis pessoas o assassinato de Solomon Friedman. Dentro em
pouco, conheceriam o outro sobrevivente do campo de extermínio de Sobibor. O
companheiro de Solomon Friedman que o ator nunca mais vira, desde aquela
noite fatídica na União Soviética.
Um murmúrio mais concentrado anunciou a chegada do principal convidado
da noite.

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