quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 10 - E o pintor não sobreviveu

Um estrondo sacudiu todo o armazém.
Solomon Friedman abriu os olhos, percebendo que aquilo era muito mais do
que o disparo de uma pistola.
Uma claridade vermelha iluminava todo o porão e fazia tremer o armazém.
Explosões ensurdecedoras ocupavam tudo.
— São as granadas russas! — berrou Ferenc Gábor, com a alegria da
vingança. — Você vai morrer junto com a gente, cachorro nazista!
Num décimo de segundo, o porão encheu-se de chamas, como se a terra se
abrisse e o porão fosse tragado para as profundezas do inferno!
Solomon sentiu o corpo sacudir-se ao mesmo tempo que outra granada
explodia no porão. Suas pernas bambearam e a maior promessa do teatro
europeu da década de 40 não viu mais nada.
— Ah, Calú! E como é que eu estou aqui? Tive sorte! Tive sorte, meu menino,
tive muita sorte! Fui ferido por uma granada russa e perdi os sentidos. Fiquei em
choque, à beira do estado de coma durante vários dias. Mas felizmente nenhum
estilhaço tinha atingido qualquer ponto vital...
— E os outros, Sol? O carrasco nazista sobreviveu fazendo-se passar por Davi
Segai?
— Foi o que me apavorou, logo que consegui sair do estado de choque
causado pelos ferimentos. Kurt Kraut tinha tatuado o número de Davi Segai em
seu próprio braço e tinha obrigado Segai a vestir a farda das SS. O Anjo da morte
sabia que só poderia ter esperanças de escapar ao julgamento da História se os
russos pensassem que o cadáver encontrado era o dele, Kurt Kraut. O plano era
perfeito, naquele instante desesperador: o Anjo da morte nos mataria e cairia nos
braços dos russos, dizendo-se Davi Segai, um fugitivo de Sobibor que escapara
por um triz da morte durante o ataque dos russos. Ele só não apertou o gatilho da
Luger porque naquele momento a granada russa explodiu dentro do porão...
Calú seguia a narrativa como se assistisse a um filme.
Só que a emoção era maior.
— No momento da explosão, não pude ver nada.
Custei a me recuperar, mas, logo que abri os olhos e tomei consciência de
mim mesmo, minha única preocupação foi tentar desmascarar o canalha. Se eu
sobrevivera, o Anjo da morte também poderia ter sobrevivido à granada. Kurt
Kraut poderia estar solto, na pele do meu amigo Davi Segai. Até seus
companheiros de farda, que poderiam reconhecê-lo, ele enviara para a morte
naquela noite. Restava somente eu sobre a Terra para desmascarar o Anjo da
morte!
— E os russos? O que informaram eles?
— Os russos me disseram que só haviam encontrado dois cadáveres: um
oficial SS, caído sobre o fogareiro, todo queimado e ferido pela explosão da
granada, e um soldado nazista. O soldado era o pobre Fritz, que o Anjo da morte
assassinara covardemente. O outro, com a farda de oficial das SS, eu sabia que
era Davi Segai. Mas os russos falaram em dois ou três sobreviventes. Aí eu me
alarmei: no caso de dois sobreviventes, o outro poderia ser Gábor ou Kurt Kraut;
no caso de três, isso significava que os dois haviam sobrevivido! Eu tinha sido
enviado para um hospital distante, e as informações que eu conseguia obter eram
imprecisas demais. Ah, a burocracia soviética!
Mas, se os russos podiam dizer quem havia morrido, por que não informavam
quem sobrevivera?
— Os russos não sabiam me dizer quem era o outro ou os outros dois
sobreviventes, mas insistiam que Kurt Kraut estava morto, pois o cadáver
encontrado vestia uma farda SS. Eu tentei mostrar a eles que aquele não era o
carrasco nazista, que eu o vira obrigar Davi Segai a vestir a farda.
Que procurassem pelo homem que se fazia passar por Davi Segai, que
desmascarassem o Anjo da morte, que...
— Mas eles não ligavam para o que você dizia?
— Depois de muita insistência, consegui que a burocracia russa se abrisse um
pouquinho: para meu alívio, não havia registros de qualquer sobrevivente que se
dissesse chamar Davi Segai. Encontraram anotações daquela noite que
mostravam apenas dois nomes de sobreviventes: Solomon Friedman e Ferenc
Gábor. O nome de Ferenc Gábor estava inclusive anotado duas vezes. Isso
significava que o maldito Kurt Kraut morrera com a explosão! As granadas
russas tinham feito justiça e riscado da face da Terra o terrível Anjo da morte.
Deveriam então ser três e não dois os cadáveres encontrados no porão: o soldado
Fritz, Kurt Kraut, vestindo os trapos de Davi Segai, e o próprio Davi Segai, com a
farda de Kurt Kraut.
Solomon Friedman abriu os braços, num gesto de conformismo:
— A granada havia matado também Davi Segai, um dos maiores pintores do
século XX... Pobre homem! Morreu vestindo a vergonhosa farda dos assassinos
do seu povo... todo queimado... como um mártir!
— E Ferenc Gábor? Você o encontrou?
— Não... Nunca mais o encontrei. Mas tenho notícias dele. É ele quem cuida
da memória de Davi Segai.
Ferenc Gábor, desde o fim da guerra, é o curador da memória artística do
maior pintor expressionista do mundo! O teatro é uma profissão maravilhosa,
Calú. Só não presta para se ganhar dinheiro. Como é que um ator como eu vai
conseguir dinheiro para viajar para a Europa em busca de um antigo
companheiro de campo de concentração nazista?
— Quer dizer que, com a explosão, só morreram Kurt Kraut e Davi Segai?
— Sim, Calú, Davi Segai morreu naquela noite. Só a sua arte sobreviveu ao
Holocausto. Sobreviverá para sempre, como a mais perfeita testemunha do mais
hediondo crime da Humanidade. Depois de morto, Davi Segai foi descoberto
pelo mundo. Hoje ele é considerado o maior pintor expressionista da primeira
metade do século.
Muitas de suas telas apareceram depois da guerra.
Quem possui uma delas, Calú, possui uma fortuna! Segai viveu pouco, mas
deve ter produzido muito em seu pouco tempo de vida. Eu tenho acompanhado
pela imprensa o sucesso que o meu companheiro de campo de extermínio fez
depois de morto. E eu me orgulho tanto dele, Calú, tanto...
— Você viveu muito tempo na União Soviética?
— Na verdade, Calú, não era possível alguém como eu viver muito tempo na
União Soviética. Eu era um sobrevivente do inferno, mas parece que os russos
me achavam um incômodo, quase como se fosse melhor que eu não tivesse
escapado. Eu era um estrangeiro.
Era um judeu. E o preconceito contra os judeus continuava. A paz chegou,
mas o pesadelo do Shoah, o Holocausto, continuou pairando sobre toda a Europa,
sobre todo o mundo...
Solomon Friedman levantou-se, como se fosse o fim do espetáculo...
— Era preciso encontrar uma nova pátria, Calú. E a nova pátria que eu
descobri foi esta, foi este Brasil. Aqui voltei a ser ator, aqui voltei a respirar, aqui
voltei a ser um homem! Agora, Calú, eu sou brasileiro! Ah, e que orgulho eu
tenho de ser brasileiro! Como é bom estar vivo, Calú!
Como é bom ser brasileiro! Aqui, numa terra que eu nem sabia direito onde
ficava antes da guerra, reencontrei a mim mesmo, reconstruí minha arte. Como
é bom estar vivo, Calú! Sorria, meu menino! Sorria comigo!

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