quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 9 - À espera da morte

Ferenc Gábor esperava a morte com altivez. As cordas que o atavam a uma
das traves do porão cortavam-lhe os pulsos e o seu rosto sangrava, meio
arrebentado pela coronha do fuzil que o abatera. Ele tinha resistido como um
tigre. Morreria como um homem.
Solomon Friedman estava consciente, mas sua cabeça girava e doía
violentamente por causa das pancadas que recebera. Mantinha os olhos abertos,
forçando-se a permanecer atento, lutando contra o desmaio, procurando resistir
ao próprio fim, que agora era certo. Não estava disposto a facilitar a tarefa do
Anjo da morte.
Davi Segai tremia. De frio, não de medo.
Depois de oito meses no campo de extermínio de seres humanos de Sobibor,
os três amigos eram sombras de gente. Mas se sentiam vitoriosos. Ninguém tinha
feito mais do que eles.
Kurt Kraut andava de um lado para o outro, batendo o tacão das botas no chão
de pedra. Sua boca se retorcia saboreando a sessão de sadismo que preparava
os três judeus que tinham ousado fugir de sua fúria. E ele haveria de
descobrir quem agia em Sobibor preparando a fuga de prisioneiros. Ah, isso ele
descobriria! E, ao desmascarar a conspiração, ele haveria de merecer a Cruz de
Ferro. Quem sabe o próprio Führer não o chamaria para entregar a medalha?
Ah, era felicidade demais!
Atiçou o fogareiro de ferro com um fole e colocou uma comprida torquês
sobre o fogo. Quando o aço ficou rubro, pegou a torquês com um trapo para
proteger suas mãos e aproximou-se dos prisioneiros. Arrancaria a verdade deles
antes de matá-los. Ninguém jamais resistira a uma sessão de torturas nas mãos
de Kurt Kraut, o Anjo da morte...
As garras rubras da torquês aproximaram-se do rosto de Ferenc Gábor.
— Abra a boca, judeu! Fale! Quem ajudou vocês na fuga? Abra a boca para
falar ou eu a abro para arrancar sua maldita língua com isto!
A torquês incandescente quase tocava o rosto de Ferenc Gábor. Queimava,
mesmo a uma certa distância. O jovem fechou os olhos e fingiu amolecer o
corpo amarrado à trave, esperando que o alemão se aproximasse um pouco mais
e agarrasse a sua nuca para arrombar-lhe a boca com a torquês. Quando sentiu o
alemão junto de si, reuniu todas as poucas forças que lhe restavam e desferiu
uma joelhada violenta entre as pernas do odiado carrasco.
— Ach! — berrou Kurt Kraut, dobrando-se de dor.
Deixou cair a torquês e rolou pelo cimento, praguejando, esgoelando-se em
palavrões. Solomon Friedman contorceu-se, tentando livrar-se das cordas. Era
impossível. Mas Ferenc Gábor tinha agido bem. Agora, enfurecido, Kurt Kraut
sacaria de sua Luger e os mataria rapidamente, livrando-os de mais sofrimento.
O Anjo da morte levantou-se, vermelho de ódio. Seus olhos claros como gelo
soltavam faíscas. Rugiu como uma fera e sacou a arma. Estendeu o braço e
encaixou a ponta do cano da Luger entre os olhos de Ferenc Gábor.
— Maldito judeu! Eu vou...
Nesse momento, a porta do porão abriu-se e um soldado entrou esbaforido, a
farda em desalinho, ofegante.
— Leutnantl Os russos! Os russos tomaram Pulmo! Estão se aproximando
daqui! Estamos cercados!
Kurt Kraut respirou fundo. Cercados! Eles formavam apenas um pequeno
destacamento. Não havia como romper o cerco. Pensou rapidamente. Sobre um
barril, estavam três pastas que trouxera consigo. Eram os documentos sobre os
três prisioneiros. Rapidamente, sua mente sórdida imaginou uma maneira de
escapar.
— Soldado! Como soube disso?
— Eu estava de sentinela na colina. Um soldado chegou de motocicleta. Tinha
sido baleado mais de uma vez.
Estava fugindo de Pulmo. Fomos derrotados lá! Os russos...
— Onde está esse soldado?
— Morreu, Leutnant...
— Você já falou com os outros?
— Não, Leutnant, corri logo até aqui.
Kurt Kraut viu que seu plano poderia dar certo. Mas, para isso, tinha de agir
rapidamente. Ergueu a Luger e atirou. Um orifício negro abriu-se no meio da
testa do pobre soldado, que caiu sem um ruído, com a surpresa estampada no
rosto.
O Anjo da morte recolocou a Luger no coldre e arrastou o cadáver para trás
de alguns sacos de trigo que estavam empilhados no fundo escuro do porão.
Ajeitou a farda negra de tenente das SS e tirou um apito do bolso.
Um silvo longo ecoou para fora da casa. Em pouco tempo, os soldados do seu
destacamento irromperam pela porta, metralhadoras nas mãos, esperando salvar
seu tenente de algum apuro criado pelos prisioneiros.
Tudo parecia sob controle, e os soldados empertigaram-se.
— Achtungl — comandou Kurt Kraut.
— A postos, Leutnant!— prontificou-se o sargento.
Kurt Kraut falou rapidamente, com sua voz metálica, autoritária, sem admitir
perguntas ou indecisões:
— Sargento! Acabo de saber pelo rádio que os russos estão se aproximando
pelo sul. Nossas tropas reuniram-se em Pulmo e estamos preparados para
contra-atacar! Vão todos imediatamente para Pulmo! Levem o caminhão e o
jipe. Reúnam-se às nossas tropas. Não saiam da estrada. Vão direto para Pulmo!
— Devemos chamar o Fritz, que está de sentinela na colina?
— Não! — cortou Kurt Kraut. — Eu fico aqui, porque ainda tenho de
transmitir uma mensagem para Sobibor, informando a situação. Podem deixar
que eu liquido estes judeus. Depois, eu e Fritz seguiremos na motocicleta atrás de
vocês. Rápido! Façam o que eu mandei!
— Jawohl, Leutnant! Heil Hitler!
O sargento e os soldados bateram os calcanhares, ergueram os braços na
saudação nazista e desapareceram.
Logo em seguida, ouviram-se os motores do jipe e do caminhão sendo
ligados. Em pouco tempo, o ruído dos veículos desapareceu na distância.
Kurt Kraut tinha mandado seus próprios comandados em direção à morte.
Solomon Friedman recordava todo aquele tormento como se narrasse o
enredo de um filme:
— Ah, Calú! Eu assisti a tudo aquilo! Só não podia imaginar o que estava se
passando no cérebro doentio de Kurt Kraut. Ele foi até os barris e começou a
examinar as três pastas de documentos...
O Anjo da morte folheou os documentos apressadamente. De vez em quando
voltava os olhos para os três prisioneiros amarrados às traves, como se estivesse
em dúvida. Pareceu escolher uma das pastas, separou-a e abriu sua maleta.
Tirou de dentro um estilete que servia para tatuar os números nos antebraços dos
prisioneiros, uma pena e um tinteiro.
Sentou-se num caixote, arregaçou a manga esquerda do uniforme negro e
começou a trabalhar, cuidadosamente, olhando de vez em quando para alguma
anotação em um dos documentos da pasta escolhida.
Terminou seu trabalho e começou a tirar a farda e as botas. Estava de
camiseta, meias e cuecas quando se dirigiu aos prisioneiros, com a Luger
engatilhada na mão direita. Pareceu hesitar entre Gábor e Segai, mas por fim
decidiu-se e, com a outra mão, soltou as cordas que prendiam Davi Segai.
Estendeu a arma e colou o cano à fronte de Solomon, falando para Segai:
— Não tente nada, judeu! Senão, eu estouro os miolos do seu companheiro!
Tire a roupa! Vamos! Toda a roupa!
Segai parecia furioso, disposto a atirar-se contra o alemão. Mas não queria ser
o responsável pelo disparo que acabaria com a vida do seu amigo. Lentamente
fez o que Kurt Kraut lhe ordenava.
— Agora, vista a minha farda! Imediatamente! Vamos!
Com nojo, com mais nojo do que sentira ao mergulhar no tonel de fezes, Davi
Segai vestiu a farda, calçou as botas e voltou-se para o alemão.
Com o cano da Luger apoiado na cabeça de Solomon Friedman, o nazista
enfiou as calças de Segai com a outra mão. Com calma, enfiou cada braço na
camisa surrada do prisioneiro. Temendo pela vida do companheiro, Davi Segai
não se mexeu.
Lentamente, o Anjo da morte ergueu o braço e fez uma cuidadosa pontaria,
visando o ponto onde quase se uniam as sobrancelhas do pintor judeu-alemão...
Para não presenciar aquele horror, Solomon Friedman desviou o rosto e
fechou os olhos, apertando as pálpebras.

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