quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 8 - A fuga de Sobibor

O velho Sol envolvia-se na narrativa, e seus olhos enchiam-se de água, como
se estivesse revendo cada momento daquele suplício.
— É claro que para nós, os prisioneiros, não havia nada no campo, Calú. Mas,
principalmente, não havia banheiros. Havia latas nos pavilhões trancados e sem
janelas. E, uma vez por dia, passava o nosso carroção para recolher o conteúdo
das latas. O carroção era uma prancha, com quatro toneis pregados pelo fundo. E
a nossa sorte, minha, de Ferenc e de Davi, foi termos conseguido o serviço de
arrastar aquele carroção imundo de pavilhão em pavilhão e deixá-lo, no fim de
cada dia, à frente de uma das saídas do campo...
Solomon Friedman sorriu, relembrando a ideia desesperada que os fez
sobreviver a Kurt Kraut e a Sobibor.
— Aquela foi a nossa oportunidade, Calú. Uma ideia louca, uma invenção
nascida do desespero, mas uma esperança! A possibilidade foi imaginada por
Ferenc Gábor.
Naquela noite inesquecível, no finzinho do verão na Polônia, eu, Ferenc e
Davi Segai não voltaríamos ao nosso pavilhão. Escaparíamos de Sobibor ou
morreríamos tentando. Atrasamos só um pouquinho, de modo que a noite já
tivesse chegado na hora de largar o carroção perto da saída do campo. Num
descuido dos guardas, rapidamente subimos no carroção, enfiamos na cabeça as
meias de seda que Davi Segai havia roubado da lavanderia das famílias dos
oficiais, metemos um canudo na boca e entramos nos tonéis, mergulhando
naquela imundície...
Calú tremia com a descrição. Era inimaginável o que aquele velho tinha
passado antes de chegar ao Brasil e tornar-se seu amigo!
— Ah, Calú, nunca vou me esquecer daquela noite! Respirar pelo canudo,
enfiado dentro daquilo... O que um homem é capaz de fazer pela vida e pela
liberdade! Era impossível resistir à sufocação, ao fedor que nos infeccionava,
que nos fazia desejar a morte... Mas era preciso resistir. No campo, a morte era
certa, mas seria mais rápida ainda se qualquer um de nós não resistisse e tentasse
sair de dentro do tonel. Tínhamos combinado resistir. Se alguém se sentisse
sufocado, deveria lembrar-se do juramento, aguentar e morrer ali mesmo,
afogado naquela lama de fezes, para dar uma chance aos outros de escapar...
Aquilo não era a narrativa de uma aventura. Era o relato de um martírio.
— Esperamos ali dentro por um tempo que nos pareceu a eternidade. Eu não
podia ouvir nada, atolado dentro daquela lama nojenta. Mas pude perceber
quando o carroção começou a mover-se. Sabíamos que o jipe ao qual o carroção
fora atrelado percorreria uma distância não muito longa, até as margens do rio
Bug, que corria ao lado de Sobibor. Os toneis sacudiram quando o jipe parou e o
motorista engatou a ré, de modo a empurrar o carroção em direção ao rio,
dependurando-o sobre a margem. Esse era o método que eles usavam para
livrar-se daquela imundície sem precisar manipular os toneis. Como os tonéis
estavam presos ao carroção, todo o seu conteúdo escorreu para a água. E, junto
com as fezes dos condenados, nós também fomos despejados no rio Bug, fora de
Sobibor!
Nesse ponto, o velho ator parecia um locutor de rádio, anunciando um gol:
— Senti o rio! Aquelas águas frias, de início de setembro, envolvendo meu
corpo como uma bênção! Continuei com a meia enfiada na cabeça e tentei
respirar pelo canudo, o maior tempo possível. Por um momento, desejei morrer
afogado, ali, no frescor da liberdade. Ah, como a liberdade é deliciosa, Calú!
Suportei o mais que pude e, por fim, tirei o rosto para fora da água. O ar da noite
polonesa entrou-me pelos pulmões, puro, como um milagre!
Solomon aspirava fortemente o ar úmido do teatro, revivendo seu
renascimento na Polônia, há décadas.
— Lentamente, nadei por baixo da água, a favor da correnteza, procurando,
instintivamente, a direção da margem oposta. Algo bateu em meu corpo. Uma
mão procurava a minha. Agarrei a mão que se oferecia e nadamos os dois, de
mãos dadas, para a liberdade. Senti o lodo com as mãos. Estava perto da
margem. Procurei permanecer imóvel e contei até quinhentos. Depois,
cuidadosamente, olhei em volta. Estava quase encostado à margem oposta ao
campo. Do outro lado, dava para ver as luzes dos alojamentos dos guardas e as
silhuetas dos inúmeros pavilhões de prisioneiros, de mortos-vivos. De todos que
não conseguiram escapar. De todos que certamente iriam morrer sufocados, não
por suas próprias fezes, mas pelo gás das câmaras que soltavam sua fumaça
venenosa dia e noite...
Solomon Friedman sacudiu-se como se o horror fosse água sobre pêlo de
cachorro.
— Já estava muito escuro. Não dava para ver qual dos dois estava a meu lado.
Mas, em seguida, senti o outro companheiro. Abracei os dois. Já não importava
quem era quem. Eu só pensava, o tempo todo: "Ainda estamos vivos! Ainda
estamos vivos!" Ficamos os três ali, dentro da água, abraçados, mudos, esperando
que o rio limpasse completamente nossos corpos e os trapos que nos cobriam.
Aos poucos, para nós só havia o perfume da noite, das folhas molhadas, da
liberdade. Nós nos sentíamos limpos, felizes, tínhamos vontade de gritar, de
chorar, de comemorar. .. Mas era preciso continuar calados.
O velho Sol aproximou-se do rosto de Calú, como se segredasse.
— Saímos silenciosamente do rio. Era o fim do verão na Polônia. Mas as
noites de fim de verão por aqueles lados não são como as daqui. Estávamos
gelados e havia ainda muito a fazer, antes de nos preocuparmos com o frio, ou
com qualquer outra ideia que não fosse fugir, fugir, viver e continuar lutando
contra aquela maldição que se abatera sobre o mundo...
Calú pensou que o público brasileiro estava perdendo um dos maiores
desempenhos dramáticos de Solomon Friedman.
— O problema, Calú, eram nossos macacões ordinários e em trapos. Aquilo
seria a morte se qualquer pessoa nos visse. Arrastamo-nos rapidamente pelo
bosque que circundava o campo, procurando instintivamente a direção norte. Foi
uma caminhada às cegas, na noite escura como breu. Silenciosa. Desesperada!
Em pouco tempo havia luz.
Havia uma casa. Havia um varal com roupas estendidas, acabadas de lavar.
Vestimos o que dava para vestir, enterramos os macacões e nos colocamos a andar,
sem descanso, sempre para o norte, seguindo o rio Bug em direção a Brest
Litóvsk, cidade russa na fronteira com a Polônia...
O velho lembrou-se de algo que cortou o entusiasmo da fuga bem-sucedida:
— Pobre Davi! Ao fugir, ele embrulhara do melhor modo possível uma série
de desenhos que fizera no campo de extermínio. Ele sabia como seria importante
salvá-los. Ali estava o retrato da degradação, da injustiça, da barbárie, da
loucura! Mas infelizmente a arte do grande Davi Segai estava perdida. O pacote,
molhado pelas águas do rio Bug, emporcalhado pelas imundícies do tonel, se
tornara imprestável. Que perda, Calú! Que perda!
— Como vocês conseguiram, Sol? Como percorrer toda aquela distância, sem
comida, sem nada?
— Comemos o que pudemos roubar ou encontrar no bosque. Dormimos
muito pouco, escondidos como bichos. Levamos um tempo interminável, quase
sem trocar qualquer palavra, andando para o norte. Guiamo-nos pelo sol e pelas
estrelas. Nem sei quantos dias caminhamos até encontrar a fronteira soviética.
Mas não havia mais fronteiras. Tudo era alemão. Os soviéticos já avançavam
esmagadoramente contra os nazistas, mas isso nós não sabíamos. Rodeamos
Brest-Litóvsk e tomamos o rumo leste, na esperança de chegar aonde estavam as
tropas soviéticas. Só que não podíamos saber até onde tinham penetrado os
exércitos conquistadores. Nosso pânico aumentava sempre que continuávamos e
só encontrávamos uniformes verdes com a suástica. Só nazistas, só nazistas...
Parecia que o mundo todo já havia caído nas mãos de Hitler...
— Mas vocês estavam fora do alcance do Anjo da morte. Isso era o que
importava, não é?
— Nossa fuga provocou um verdadeiro acesso de fúria no nosso carrasco e
carcereiro. Kurt Kraut não podia admitir que três prisioneiros escapassem de
suas garras, assim, sem mais nem menos. Com um pequeno destacamento, saiu
em nosso encalço como um cão farejador. Estávamos escondidos no porão de
um armazém de camponeses russos, entre as cidades de Pulmo e Sack, perto dos
lagos, dentro do território soviético em poder dos nazistas. E o Anjo da morte nos
encontrou...
Solomon Friedman sorriu:
— Não fomos fuzilados imediatamente, como seria de esperar. Kurt Kraut
nos manteve amarrados nas traves do porão do armazém e ordenou que seus
soldados o deixassem sozinho conosco. Ele tinha certeza de haver, no campo,
uma conspiração que nos ajudara a fugir e estava disposto a arrancar confissões
de nós três. Ele haveria de nos torturar até que implorássemos pela morte! O
canalha estava certo de conseguir confissões fabulosas que haveriam de
credenciá-lo a receber a Cruz de Ferro, a maior condecoração nazista, das mãos
do próprio Hitler...
— Fim do verão de 44? — relembrou Calú, um excelente aluno de História.
— Nesses meses, os soviéticos já contra-atacavam, vindos do leste. Esmagaram
a resistência alemã e avançaram sobre Varsóvia...
— Certo, Calú. É por isso que estou aqui, forte e saudável, falando com você!
Justamente naquela noite as tropas soviéticas avançavam sobre aquela região...

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