quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 7 - Sorria... você ainda está vivo

Calú adorava ouvir o velho Solomon Friedman. Feliz, falador, cheio de
vaidade, como se fosse eternamente jovem, como se São Paulo fosse sua
distante Hungria.
— Por que você está sempre sorrindo, Sol? — perguntara Calú, certa vez.
— Porque ainda estou vivo!
Uma tarde, depois de um exercício de interpretação especialmente exaustivo,
Solomon Friedman sentara-se ao lado do seu discípulo predileto no imenso vazio
da platéia.
— Neste exercício, Calú, você tem de imaginar o personagem como se ele
não soubesse o que está se passando. Ou como se ele fingisse não saber. É como
o povo europeu, no meu tempo... Naqueles dias, ninguém falava, ninguém
comentava, ninguém queria confessar a si mesmo que adivinhava o inferno que
se escondia por trás dos desfiles espetaculares e dos discursos fanáticos de Hitler!
Aos poucos, o velho Sol pareceu esquecer-se do exercício de teatro e
concentrou-se somente em suas recordações:
— Ah, Calú! O teatro! Quando a Hungria foi ocupada pelos nazistas eu
percebi que não adiantava mais ficar lutando pelo teatro. Eu já era um ator de
prestígio, apesar de muito moço, e, à noite, depois de cada espetáculo, me
juntava aos poucos conspiradores, àqueles que adivinhavam o horror que
mergulharia toda a Europa no caos e destruiria boa parte do meu povo.
Imprimíamos folhetos clandestinos, tentávamos despertar a consciência dos
húngaros e do resto do mundo para as barbaridades que estavam sendo
cometidas pelos nazistas. Mas éramos muito poucos, Calú, não podíamos confiar
em ninguém...
Solomon Friedman contava tudo aquilo para o seu aluno predileto com uma
ponta de orgulho.
— Eu era um ator judeu-húngaro muito conhecido, que lutara com enormes
dificuldades para fazer teatro devido ao tremendo preconceito racial que sempre
existiu na Europa. Ah, ah! Mas acho que o meu talento estava acima de qualquer
preconceito, Calú! O pessoal tinha de me engolir! E como engoliam bem, meu
menino! Como aplaudiam!
O velho Sol ria-se, ria-se, como se ensaiasse uma comédia.
— Preconceito racial... Nunca consegui entender direito a divisão das pessoas
em raças. O que são raças, Calú? Você sabe o que são raças?
Não esperou o aluno responder:
— O que determina uma raça? A cor da pele? O tamanho da orelha? Não,
Calú, não é possível dividir as pessoas em grupos que apresentem pequenas
diferenças... Senão, por que não falar da raça dos gordos, ou dos chatos, ou dos
presunçosos? O que há, Calú, são povos. São diferenças culturais entre grupos de
pessoas. Mas hoje parece que até isso já está perdendo a importância. Todo
mundo conhece todo mundo. Aqui no Brasil, neste fantástico país que me
acolheu, come-se quibe em uma pastelaria de japoneses! Serve-se feijoada em
cantinas italianas! Minha mãe, judia da gema, fazia o melhor Eisbein de toda a
Europa oriental! Imagine: uma judia que cozinhava carne de porco! Todas as
culturas podem conviver de mãos dadas, Calú! Só que isso é apenas a força da
razão. Naqueles dias, na Europa, o que valia era a razão da força. Da força dos
nazistas, da força da Gestapo...
Suspirou fundo e olhou Calú bem dentro dos olhos:
— Já ouviu falar da Gestapo, a polícia secreta de Hitler? É claro que sim, não
é? Eu sabia que não conseguiria escapar da Gestapo por muito tempo. E acabei
preso. Jogaram-me numa carroçaria de caminhão, amarrado como um maço de
vagens. Foi nessa noite que eu conheci dois outros "maços de vagens" jogados ao
meu lado. Dois homens que dividiriam comigo os piores momentos de minha
vida no campo de concentração de Sobibor, na Polônia... Um pedaço do imenso
inferno que Hitler espalhou em forma de campos de extermínio!
Solomon rabiscou, no verso de um programa de teatro, um rústico mapa da
Polônia. A leste, perto da fronteira com a União Soviética, desenhou um pontinho
acalcando o lápis, como se quisesse borrar aquela nódoa da História.
— Aqui ficava Sobibor. Agora você já sabe o endereço do inferno, Calú. Foi
para lá que fomos, eu e os dois outros "maços de vagens", junto com milhares de
outros infelizes. Esses dois amigos eram Ferenc Gábor, um judeu-alemão valente
e briguento como ele só, e Davi Segai, o grande pintor também judeu-alemão. O
grande Davi Segai! Sabe quem foi Davi Segai, Calú? O maior pintor
expressionista do mundo! O único que conseguiu criar seu próprio estilo no
expressionismo, como Salvador Dali criou no surrealismo! Um gênio, um pintor
maravilhoso a quem ninguém dava atenção, a quem ninguém valorizava. Como
Van Gogh, só depois de morto ele veio a fazer sucesso...
O velho Sol já havia mostrado a Calú um álbum com reproduções de quadros
de Davi Segai. Eram telas sombrias, dramáticas, revoltadas, em que o mundo
parecia protestar — em forma de tintas pesadas, de tons escuros, de traços fortes
— contra todos os horrores.
— Aquele caminhão rodou horas seguidas. Tantas que nem pude calcular.
Chegamos a uma estação de trem e lá mesmo fomos metidos em uma sala para
receber nossos números, um depois do outro. Veja, Calú!
O velho ator arregaçou a manga da camisa e mostrou o antebraço esquerdo.
Na pele clara, tatuados em azul, havia vários algarismos. O velho Sol tapou parte
deles com a mão direita e mostrou apenas os quatro últimos: 4444.
— Aí está, Calú: quatro-quatro-quatro-quatro! Parece uma gargalhada, não é?
Ah-ah-ah-ah! Quá-quá-quá-quá! Ferenc Gábor foi o primeiro a receber este
"enfeite". Depois foi a minha vez e, por fim, a vez de Davi Segai. Gábor tinha de
ser o primeiro! Era o primeiro em tudo, o mais valente, o mais ousado, o menos
acomodado dos homens. Ficamos unidos por nossos números, um depois do
outro! Como numa corrente...
Solomon Friedman tomou fôlego, parou de rir, e continuou o relato:
— Fomos atirados em um vagão de carga, como gado, e viajamos acho que
por mais de um dia, sem comida, sem água, sem qualquer lugar onde
pudéssemos fazer nossas necessidades... E a principal necessidade de todos,
naquele vagão, era que o nazismo nunca tivesse existido... Mas até aquela viagem
pareceria um passeio se fosse comparada com o que conhecemos depois que
chegamos a Sobibor. É difícil imaginar que aquilo tenha realmente existido, que
tanta degradação, tanta impiedade possam ter sido criadas por membros da
espécie humana! Os velhos, as crianças e os mais fracos eram imediatamente
levados para as câmaras de gás. Somente quem podia trabalhar, quem ainda
tinha forças, permanecia vivo. Naturalmente só enquanto as forças durassem...
Depois de algum tempo, ninguém pensava mais no sofrimento, na fome, na
degradação.
Só importava continuar vivo. Pessoas doentes, desidratadas, à beira da
inanição, forçavam-se a trabalhar, procurando parecer saudáveis, para adiar a
morte mais um pouco... só mais um pouco...
A maravilhosa voz do grande ator, com um leve sotaque, grave e envolvente,
fazia com que aquela descrição parecesse ainda mais dramática. Mas não era a
dramaticidade do teatro. Era o drama da verdade. Da triste verdade.
— A política dos nazistas para os campos de extermínio era começar
arrancando, de dentro de cada um de nós, tudo aquilo que nos diferenciava de
animais enjaulados. Era preciso quebrar nossos princípios morais, arrasar com
nossos conceitos de decência, para que, em pouco tempo, estivéssemos seminus,
enlouquecidos, lutando uns com os outros na disputa de um pedaço de pão
embolorado... Mas Ferenc, Davi e eu decidimos resistir. Só sobreviveríamos
enquanto nos mantivéssemos como homens, enquanto pensássemos com a
mesma moral que defendíamos antes da guerra, enquanto agíssemos com a
mesma decência que fazia de nós seres civilizados... Não largamos um do outro,
desde que chegamos ao campo. Éramos jovens e fortes e juramos resistir,
resistir sempre, até conseguir escapar daquele inferno. Mas... escapar de
Sobibor? Escapar do sádico Kurt Kraut? Do Todesengel? Do Anjo da morte? Do
sinistro tenente que mandava embalsamar a cabeça das crianças judias que
matava? Escapar das próprias garras de Satanás? Era um sonho impossível, mas
era a única maneira de permanecermos vivos...
Solomon Friedman transmitia força, transmitia confiança a quem estivesse ao
alcance de sua voz, de sua simpatia. Era alguém que estivera no inferno, mas de
lá conseguira escapar, trazendo uma mensagem de fé, de esperança, dizendo a
quem quisesse ouvir que é possível viver, é possível ser feliz!
— Eu me lembro muito bem, Calú... 1944, o verão quase já terminara na
Polônia. A guerra também já estava no fim. A contra-ofensiva soviética já
começara, e os aliados já haviam desembarcado na Itália. Mas nós não sabíamos
de nada disso. Ninguém sabia de nada lá dentro de Sobibor, cercados por
camadas de arame eletrificado, guardados por cães ferozes e por homens que
agiam como cães hidrófobos. Eu, Ferenc e Davi já estávamos havia oito meses
em Sobibor. Já éramos quase só pele e osso. Mas estávamos vivos, porque ainda
resistíamos ao tremendo trabalho que nos destinaram. Durante dezoito horas por
dia, arrastávamos um carroção por todo o campo. Sabe o que o carroção
carregava? Você não vai acreditar, Calú! Você não vai acreditar!

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