quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 15 - Na trilha do Pequeno Polegar

Crânio só conseguia ver, de relance, sombras passageiras como flashes
fotográficos cada vez que um dos velhos Taí-pitá passava por uma réstia do luar
que se infiltrava por entre as árvores. Eram sombras medonhas, cobertas por
assustadoras peles de jacaré, com as bocarras escancaradas. Um grupo de
demônios. Um pequeno exército de fantasmas silenciosos, determinados.
Guiavam-se na escuridão, por entre as árvores, como se fosse dia.
A sombra mais velha avançava à frente, como um jovem guerreiro. Robson,
com uma zagaia curta nas mãos, seguia quase colado ao bisavô.
O gênio dos Karas tropeçava, chocava-se contra os ramos mais baixos,
enredava-se nos cipós. Mas sua determinação não diminuía.
"Magri! Me espere. Já estou indo! Já estou indo!"
Um trompaço maior, e uma queda. Ao seu lado, um braço forte ergueu-o.
Sob a fraca luz da lua, a alvura de dois olhos, arregalados pelo ódio e pela
antevisão do sangue de brancos a derramar, fixou-se por um momento naquele
garoto para quem a floresta era uma ameaça e não uma salvação. No meio da
noite era o rosto de um demônio que parecia estar sendo vomitado por um sáurio
infernal.
Pacaman empurrou-o, e Crânio seguiu na trilha daqueles fantasmas de
pesadelo.

* * *

O antigo mas reluzente Cadillac cor-de-rosa entrou na pista do pequeno
aeroporto particular guinchando os pneus e estacionou ao lado do avião. Calu
esfregou os olhos. Era um enorme avião cor-de-rosa! Um par perfeito para o
Cadillac.
O rapaz estranhou a cor e estranhou ver ali, em pleno Pantanal, um C-47,
uma relíquia da 2ª Guerra. A pintura rosa-choque era novinha, como parecia
ser o C-47, tão bem conservado, com seu prefixo PT-MSB pintado em preto.
— Gostou do aviãozinho, meu querido? — sorriu tia Matilde. — Isso sim é que
é avião! Não é como essas latinhas de hoje em dia, que mais parecem
brinquedos. Naquele tempo, sim, é que se faziam máquinas para durar. Você vai
ver lá em cima. Você vai ver do que o meu aviãozinho é capaz! Não é, Pepino?
Só neste momento Calu reparou no piloto. Pepino. Um sobrevivente da
própria guerra, como o avião, e que trazia em cada ruga uma lembrança do
tempo "em que se faziam máquinas para durar". Um ítalo-americano caladão,
sempre de olhos baixos, metido num blusão de couro tão desgastado pelo uso
quanto sua cara.
Embarcaram.
Se a preocupação não fosse tanta, Calu não poderia deixar de rir. Todo o
interior do C-47 estava decorado em rosa, com veludos, cetins, tafetás, cortinas,
móveis antigos, vasos floridos e um fofíssimo diva da cor das flores. Tudo era
cor-de-rosa, tudo era fofo, como o quarto de uma madame do século 19. E a tal
"madame" estava ao seu lado.
Calu sentiu-se em uma sala de visitas da avó de alguém e não a bordo de um
avião que, no passado, devia ter soltado toneladas de bombas na Europa e no
Pacífico.
Ainda não amanhecera quando as hélices começaram a girar.

* * *

Andrade não conseguia impedir que as lágrimas corressem fartas por suas
bochechas. Na escuridão, espremido na casita de bambu, deixou-se consolar por
Chumbinho, como se fosse uma criança grande, gorda e careca.
— Nunca! Eu nunca deveria ter permitido que vocês viessem para cá! Magri!
Minha filhinha! Se o Centurião tocar em um só fio do cabelo de Magri, eu juro...
Ah! eu juro que vou arrancar o fígado daquele canalha, nem que seja a última
coisa que...
Chumbinho apertou fortemente a mão do amigo.
— Controle-se, Andrade, por favor! Você não conhece direito a Magri...
— Eu adoro aquela menina!
— Mas não conhece direito. Pode deixar que ela mesma arranca o fígado do
Centurião. Ele não tem ideia do problema em que se meteu!
— Magri... Crânio! Onde está você, menino? Por que se meteu nesta história
de horror?
Chumbinho abraçou o amigo. Juntos, naquela gaiola escura, os dois estavam
abandonados à própria sorte.

* * *

Em Otília, balançando-se nas águas calmas do rio Taquari, havia nada menos
que dez voadeiras, todas iguais, à espera do Senador e de Miguel. Mais de
quarenta homens, com armas modernas, mochilas e um aparelhamento portátil
de rádio.
— Vamos subir o rio, devagar — comandou o Senador. — Todo mundo de
olho nas margens. Procurem por qualquer marca ou objeto que possa ter sido
deixado por alguém, como um sinal. Nada deve ser desprezado.
De pé, na proa, a figura imensa do Senador parecia desequilibrar a primeira
lancha. Miguel ocupou a proa da voadeira seguinte, e o homem que estava no
leme manobrou-a para a esquerda, de modo que, lado a lado, as duas
embarcações liderassem a expedição.
Dez motores de 25 Hp roncaram ao mesmo tempo. O líder dos Karas estava
em ação. Havia uma esperança.
"Chumbinho... Andrade... Magri... Eu vou encontrar as suas pistas, minha
querida Pequeno Polegar... Eu vou salvar você, meu amor..."
Na primeira curva, porém, duas outras voadeiras, atravessadas no rio,
impediam a passagem da expedição. Na proa da primeira, um homem de bigode
sorria.

* * *

O Centurião empurrou-a brutalmente para dentro da barraca. Magri rolou,
chocando-se com a armação e fazendo balançar o lampião a gás pendurado em
um dos ferros.
— Que bela chica! Fuiste um regalo que los cielos me han entregáo. Creo que
los dioses están preocupados com la solitud dei Centurión...
O bandido pegou uma corda de náilon e abaixou-se ao lado da garota.
Habilmente amarrou-lhe as mãos às costas.
— Para que no penses em fugir. De nada adiantaria, verdad? Adonde iria una
chiquita como tu, no meio de Ia noche, en ei Pantanal? Tienes miedo de Ias
cobras, chiquita? No Ias tiemas. El Centurión está acá, para proteger-te...
Como se fosse capaz de um carinho, a mão amarela de sarro de cigarro do
Centurião tocou a face delicada de Magrí...

* * *

— Bom dia, Senador! Saindo para pescar?
Ainda estava escuro, mas as primeiras luzes do dia já podiam ser percebidas.
Era como se a luz tivesse cheiro, ao amanhecer. Para Miguel, as sensações
confundiam-se. Tudo parecia impregnado do perfume de Magrí.
— Bom dia, tenente — respondeu o Senador. — Parece um bom dia para
pescar. Acho que vai dar para pegar peixe grande hoje...
O rio sobe para um lado só, não é, Senador? Por isso acho que vamos para o
mesmo lado...
— O rio é público, tenente...
As duas chalanas manobraram e juntaram-se ao grupo, uma de cada lado.
Mais dez homens. Todos fortemente armados.
O Senador não parecia muito feliz com aquela companhia.

* * *

O C-47 voava alto.
— Como vamos localizar Miguel desta altura, tia Matilde?
— Não se preocupe, meu querido. O importante é que eles, lá debaixo, não
nos localizem. O que haveria de pensar o Senador se visse meu aviãozinho
sobrevoando o rio o tempo todo? Nada disso. Temos um aparelhinho aqui que vai
resolver o problema.
Tia Matilde abaixou-se e fez correr uma tampa no chão do aparelho. Uma
vigia de vidro blindado mostrava o Pantanal na glória do amanhecer. Encaixada
na borda da abertura, uma aparelhagem sofisticada, unindo máquina fotográfica
e luneta eletrônica.
A tia de Crânio colou um olho à luneta e ajustou o aparelho.
— Veja, meu querido. É como se estivéssemos a apenas cem metros de
altura.
Calu ocupou o lugar da tia. A luneta estava focalizada sobre o rio Taquari,
sobre um grupo de lanchas. Era quase possível reconhecer os ocupantes.
— Viu? Nós podemos seguir até uma mosca! Mas eles, lá embaixo, nem vão
desconfiar. É um brinquedo adorável, do tempo da guerra.
— Puxa! já existiam aparelhos como este na 2ª Guerra?
— 2ª Guerra? Que nada! Esse aparelhinho é da guerra do Vietnã!

* * *

— Mais devagar — pediu Miguel ao homem do leme. — O que é aquilo?
O homem manobrou a lancha e aproximou-se ainda mais da margem. O
líder dos Karas pulou rapidamente para terra e correu em direção a algo que só
ele percebera. Algo vermelho, balançando ao sabor da brisa.
— Senador! Encontrei! é o lenço de Magri!

* * *

O C-47 voava em círculos e o sol projetava para dentro o reflexo rosa-choque
da fuselagem. Tinham muito tempo. Lá embaixo, a expedição arrastava-se pelo
rio.
— Bebe alguma coisa, meu querido?
Tia Matilde abriu a geladeira cor-de-rosa. Calu acertou a limonada que ela
lhe oferecia. Para si mesma serviu-se de uma farta dose de whisky, com muito
gelo.—
Ah, esse calor do Pantanal! Já estava desacostumada ao calor brasileiro...
— A senhora é americana, não é?
— Nada! Sou brasileira da gema, meu querido. Vivi muito tempo nos Estados
Unidos, quando estava casada com Vitório. Pobre Vitório! Me deixou à maior
rede de restaurantes de comida italiana. Uma herança de macarrão! O melhor
macarrão do mundo! Ah, ah! É graças a essa macarronada toda que eu pude
voltar para o Brasil e criar gado aqui neste paraíso de sonhos. Agora, Nova
Iorque só de visita!
Calu deixou a tia falar de suas saudades e de seu sucesso como fazendeira no
Pantanal. Aos poucos, embalada pelo whisky, tia Matilde lembrou-se do sobrinho
desaparecido.
— Pobre menino! Eu estava tão contente em recebê-lo... Só o vi
desmaiadinho, coitado...
— Desmaiado?! Como assim?
— Bem, meu querido, eu não queria contar. Mas, naquele dia, meu sobrinho
foi confundido com algum traficante de cocaína e acabou ferido. Levemente,
mas precisou ficar no hospital, enquanto eu saía em um desses jatinhos modernos
em busca do meu mecânico, porque este valente C-47 cismou de encrencar. E,
na minha ausência, o Senador foi mais esperto...
Tia Matilde entornou o fim do copo de whisky e continuou.
— A responsabilidade pelo desaparecimento do meu sobrinho é do Senador.
Ah, isso é! Levou Crânio para a fazenda dele e, depois disso, só ouvimos falar
dele nas últimas palavras do pobre piloto comido pelas piranhas...
O Senador tivera Crânio nas mãos. Depois, fora a vez de Calu. Agora era
Miguel quem estava em seu poder. Calu teve vontade de dizer que a
responsabilidade por tudo de ruim que estava acontecendo no Pantanal era
daquele grandalhão. Mas de que adiantava falar? Aquela era a hora de agir...
Tia Matilde recostou-se na ampla poltrona cor-de-rosa.
— Por isso fiz questão de organizar eu mesma as buscas do meu sobrinho.
Aqui, a polícia é muito desaparelhada, meu querido. Tive de botar todos os meus
empregados, todos os meus amigos, nessa procura. Ninguém deu um passo sem
minha ordem. Mas, até agora, nada... Coitado do meu menino! Coitadinho...
O cansaço de uma semana de buscas, a noite mal dormida e o whisky, àquela
hora da manhã, fizeram seu efeito. Tia Matilde soltou o copo no chão acarpetado
do avião e adormeceu.

* * *

O sofisticado aparelhamento de rádio estava sintonizado em um programa
sertanejo. Magrí estranhou que, entre uma música e outra, entre um anúncio e
outro, o locutor viesse com uma fala que parecia totalmente deslocada:
— Atenção, pessoal! O Taquari tá cheio de piranhas!
O Centurião soltou uma gargalhada que encheu toda a barraca com seu hálito
fétido.
— Ah, essos coureiros se defendem! Sabes o que oiste? Es um código. El
locutor está avisando a sus cumpadres que la policia anda por ei Taquari. Acá es
asi. Todos sabem se defender, chiquita!
Pegou uma garrafa de pinga em uma sacola.
— Pero devemos olvidar los problemas dei Pantanal por ahora, chiquita.
Haremos una fiesta! Una fiestita antesl Ah, ah!
Colou o gargalo à boca, tomando um grande gole e deixando a cachaça
escorrer pelo queixo. Olhos vermelhos, arrotou e estendeu a garrafa para a
menina.
— Quieres um golito? Bebes, chiquita?

* * *

Coruja não pia ao amanhecer. Isso Chumbinho sabia. E não precisou de muito
tempo para entender o que a "coruja" queria dizer com aqueles piados.
— Um longo, um curto, um longo... um curto, um longo... um curto, um
longo, um curto... um curto, um longo... três curtos! Karas! Mas quem será que...
Na escuridão da casita, Andrade não entendeu o que estava acontecendo.
— O que você está falando, Chumbinho? Ficou maluco?
— Fique quieto, Andrade! Deixe eu ouvir a coruja!
— Coruja!? Mas...
— Quieto! Espere... um longo, um curto, um longo, um curto... um curto, um
longo, um curto... um curto, um longo... um longo, um curto... dois curtos... três
longos... Crânio!! Crânio está vivo!
— Chumbinho, você está delirando?
— Andrade, Crânio está vivo! Está lá fora! Esses pios de coruja estão em
Código Morse!
— Morse? Como eu não percebi?
— Lá estão os piados de novo. Ouça! Um longo... um curto... um longo, um
curto... quatro curtos... três longos...
No fim da mensagem, Andrade traduziu:
— "Tenho gente comigo. Vamos libertar vocês..." Chumbinho abraçou, feliz,
o amigo detetive.
— Crânio! E a gente que pretendia salvá-lo. Agora ele é que aparece para nos
libertar!

* * *

Magrí teve de se conter para não chorar de alegria.
Um novo código sobrepunha-se ao código dos bandidos, do programa de
rádio. E foi como um coro de anjos. A coruja piava em Morse! Crânio estava
vivo! E viera libertá-la!
Não estava em condições de responder, mas nem precisava. Ouviu o pio de
outra "coruja". Era Chumbinho. Crânio estava sendo informado de tudo o que
acontecia no acampamento dos bandidos.
Resolveu usar todo o charme de que era capaz.
— Vai beber sozinho, Centurião? Não estou convidada para a festa?
O bandido olhou divertido para a menina.
— La fiesta? Pero tu eres la fiesta! Ah, ah, ah!
— Mas como vou participar, amarrada assim?
— Amarrada asi, estoy más tranqüilo...
Magri exibiu um daqueles seus sorrisos de derreter bronze.
— Só que, desamarrada, posso fazer coisas que vão deixar você de boca
aberta...
O Centurião arreganhou a boca, exibindo seus cacos de dentes. Sacou a faca e
aproximou-se de Magri. Nesse instante, o moderno aparelhamento de rádio
interrompeu automaticamente a programação sertaneja e passou a emitir uma
mensagem.
— Alô, alô... Chamando Centurião... O Ente, chamando Centurião... É
urgente... responda ao chamado... Capito?... Urgentíssimo,..
O Centurião guardou novamente a faca e ajoelhou-se ao lado do aparelho de
rádio.
— Um segundito, chiquita. Nuestra fiesta começará em um segundo, no
más...
Passou a chave do aparelho para a posição de transmitir, e falou:
— Alô... Centurión hablando... Estoy en Ia escuta...

* * *

— Veja, Senador! Outro pedaço da blusa de Magri!
Miguel seguia à frente apressado, mas com todos os sentidos ligados em busca
de cada marca que a única menina dos Karas havia deixado para guiá-lo.
Duas ordens, do Senador e do tenente de bigode, faziam aqueles homens
avançarem em silêncio, carregando suas armas e o rádio de campanha.
"Já estou chegando, Magri! Minha querida! Meu Pequeno Polegar! Me
espere. Já estou chegando!"

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