quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 14 - Ninguém escapa do grandalhão

Miguel olhou mais uma vez para o relógio. Seis horas! Àquela altura, Calu já
deveria ter voltado ao hotel para que os dois fossem à igreja encontrar-se com
Mike Sierrabrava. O que teria acontecido com o ator dos Karas?
O telefone do quarto tocou. Era da portaria do hotel.
— Tem um recado aqui para o senhor Miguel...
— Um recado? Já vou aí!
O rapaz nem se preocupou em disfarçar a ansiedade. Em um minuto estava
na portaria, com o bilhete nas mãos.
A letra de Magri! O Código Vermelho!
"Fombermombers caisptufterraisdombers nomber rinisomber. Sinisgaism
Penterquenternomber Pomberlentergaisr".
Miguel traduziu na hora. Era só substituir "ais" por "a", "enter" por "e", "inis"
por "i", "omber" por "o" e "ufter" por "u"...
"Tenho de procurar ajuda" — pensou o garoto. — "Andrade disse que a
polícia do mundo inteiro está atrás do ouro da Máfia. Será que devo procurar a
polícia?"
Miguel não era de confiar nos adultos, e muito menos na polícia. Se o crime
organizado estava agindo com tanta força no Pantanal, não seria de esperar que
houvesse bandidos infiltrados dentro da própria polícia?
E agora? O que poderia fazer o líder dos Karas? Como procurar, sozinho, seus
três amigos por todo o Pantanal?
Sentado na poltrona semidestruída do saguão do hotelzinho, Miguel ouvia
vagamente uma música sertaneja que vinha do radinho da portaria. Em seguida,
o locutor anunciou alguém muito importante que estava nos estúdios para uma
entrevista. Aos poucos, Miguel começou a interessar-se por aquilo que ouvia.
— Interesses externos estão destruindo o paraíso onde vivemos — declarava
uma voz mais grave e mais bonita que a do locutor. — O Pantanal está sendo
destruído para garantir o fantástico enriquecimento de uns poucos que, fora de
nosso país, controlam o comércio de peles de jacaré, de contrabando de carros
roubados e de drogas!
— Mas o que estão fazendo as autoridades, Senador, para combater essa
situação? — perguntou o repórter.
— Este não é um problema apenas das autoridades. É um problema de todo o
povo pantaneiro. É um problema de todo o Brasil. É um problema de todo o
mundo — respondeu a voz grossa. — Precisamos estar unidos nesta hora porque
um crime maior está dirigindo sua ganância sobre o Pantanal. Estou colocando
meu poder, meu dinheiro e minha influência nesta luta. Peço a confiança da
população. Qualquer informação pode nos ajudar nesta cruzada contra a
destruição e contra o crime. Ou o Pantanal volta a ser o paraíso que a natureza
criou, ou eu morro junto com ele!
Ali estava alguém que falava a mesma língua de Miguel. Alguém que pedia
confiança. Alguém que poderia ajudá-lo!
O líder dos Karas conseguiu o número do telefone da estação de rádio e
discou.

* * *

— Alô?... Quem?... Um estudante de São Paulo quer falar com o Senador?...
Sim) ele ainda está no estúdio... Um momentinho...
A voz grossa e envolvente não se fez esperar. Miguel resolveu falar pouco.
— Senador? Ouvi sua entrevista. Tenho informações sobre o Ente...
A voz trovejou do outro lado.
— Quem?! O Ente? Onde você está? No hotel? Chego aí em um minuto!

* * *

Aquele homem ocupava boa parte do quarto de Miguel. Falava afavelmente.
Sua voz era mais impressionante ao vivo do que pelo rádio.
— Acalme-se, garotão. Nós vamos ajudá-lo. E você vai nos ajudar, se tiver
alguma pista sobre o Ente...
— É uma longa história, Senador. Lá em São Paulo, um professor de
matemática, do colégio onde eu estudo, foi assassinado há quase duas semanas...
— Professor Elias, não é?
— Sim. É ele. Como sabe?
— Sabemos de muita coisa, garotão. Mas fale você primeiro.
— Um colega nosso inventou uma ligação maluca entre o assassinato desse
professor e o Pantanal. Decidiu vir para cá, sozinho, para provar sua teoria.
— Meu Deus! — exclamou o Senador. — Não me diga que esse colega é o
Crânio!
— Sim! É o Crânio! O senhor o conhece? Onde está ele?
— Estamos vasculhando todo o Pantanal atrás do seu amigo Crânio, garotão...
Tentar localizar Crânio tinha sido o motivo da viagem de Andrade e os Karas
para o Pantanal. Agora, a isso se somava a captura de Andrade, Magri e
Chumbinho. E ainda havia Calu, que não voltara ao hotel. O líder dos Karas
resolveu não falar de Calu para o Senador, nem do seu plano de entregar o amigo
disfarçado nas mãos do Mike Sierrabrava e segui-lo depois para descobrir o covil
do terrível Ente. De nada adiantaria vasculhar a cidadezinha em busca de um
Kara como Calu, que, até indícios em contrário, sabia se virar sozinho. Calu era
um ator de grande talento e o rapaz mais bonito do Colégio Elite. Mas não era de
posar como um filhinho de papai. Em ação era um gato selvagem.
— Ainda não encontramos Crânio, mas não vamos desistir, garotão —
prometeu o Senador. — Confie em mim. Não sou um simples fazendeiro. Estou
no comando da única organização que pode ajudá-lo neste momento.
O grandalhão transmitia segurança. Inspirava tranqüilidade. Era alguém que
se encontra com alívio num momento difícil como aquele. Miguel tinha de
colocar-se nas mãos do Senador. Era preciso arrancar seus amigos das garras do
super criminoso que chamavam de O Ente.
— Parece que o Ente apanhou o detetive Andrade, Magri e Chumbinho,
Senador. Eles desceram o rio Taquari, em um barco, até a vila de São Francisco,
para descobrir como estão indo as investigações sobre a morte do piloto Bezerra
e o desaparecimento de Crânio. E, agora, alguém entregou este bilhete no hotel.
Foi escrito por Magri. Veja.
O Senador não entendeu coisa nenhuma.
— Está em código, Senador. Uma brincadeira que inventamos no colégio.
Achamos que a brincadeira poderia servir, em circunstâncias como estas...
Naturalmente Miguel não revelaria a existência dos Karas como um grupo
organizado. Era melhor fazerem-se passar por uma turminha de estudantes
inocentes.
— Mas o que está escrito aí?
— "Fomos capturados no rio. Sigam Pequeno Polegar."
— Que história é essa de Pequeno Polegar? Como vamos...
— É fácil, Senador. O Pequeno Polegar, para não se perder na floresta, foi
espalhando pedrinhas coloridas pelo caminho. Magri deve ter pensado em algo
assim. Deve ter deixado pistas para serem seguidas. O Senador suspirou,
desanimado.
— Histórias de crianças! Pode até ser fácil seguir a pista. O problema é
descobrir onde essa pista começa!
— Eles foram capturados no rio Taquari, Senador — argumentou Miguel. —
Isso deve ter acontecido, na ida ou na volta, em algum ponto entre a vila de São
Francisco e Otília, de onde o barco partiu e para onde deveria voltar.
— De Otília a São Francisco? São mais de 70 quilômetros de rio...
— É nossa única chance, Senador... O grandalhão levantou-se, decidido.
— Certo! Vou organizar uma expedição e vamos encontrar seus amigos. É
melhor você passar a noite no meu casarão. Sairemos lá pelas três da manhã.
Devemos chegar antes do amanhecer em Otília. Vamos vasculhar as margens
do Taquari, começando de madrugada!

* * *

Era noite fechada quando Calu voltou para o hotel.
Ainda estava a uns cem passos quando o que viu gelou-lhe o sangue nas veias:
Miguel saía do hotel ao lado de um homem muito grande que lhe segurava o
braço. Os dois entraram num Opala, que arrancou velozmente, levantando a
poeira das ruas esburacadas de Nhecolândia.
O Senador! O grandalhão tinha perdido um peixe, mas logo em seguida tinha
agarrado outro nas malhas de sua rede! E Andrade? E Magri? E Chumbinho? Já
deveriam estar de volta. O que teria acontecido com eles?
Qualquer um perderia a cabeça naquele momento. Mas pânico não era a
palavra que poderia definir um Kara em ação. Calu controlou a ansiedade e
procurou raciocinar. Não podia subir para o quarto. Certamente os bandidos
estavam de tocaia.
O ruído de motor fez com que ele se escondesse rapidamente. Um
espalhafatoso e antigo Cadillac rosa-choque encostava em frente ao hotel. O
empregado da portaria apareceu, pressuroso, cheio de sorrisos, e abriu a porta do
automóvel.
— Tia Matilde! Que honra receber a senhora em nosso hotel!
Uma mulher alta e magra, vestida de cor-de-rosa, aceitou a mão que o
empregado lhe estendia para ajudá-la a sair do carro. Deveria ter uns sessenta
anos, mas a ajuda era inútil, pois a mulher parecia em melhor forma física do
que o empregado.
— Esta espelunca é a única disponível, não é? Tem algum apartamento
decente?
— Para a senhora, temos o melhor!
— Ah, ah! não se envergonhe, meu querido. Eu não sou de luxos. Sou tia
Matilde, faço parte do Pantanal! Não se esqueça!
Mesmo de longe dava para perceber a pele de seu rosto esticada por boas
operações plásticas. Tia Matilde fazia questão de manter como nova sua velha
pele, como mantinha novo o velho Cadillac.
Tia Matilde! A tia de Crânio. Era isso! Uma fazendeira riquíssima e poderosa.
Ela poderia ajudá-lo. Talvez fosse a única pessoa, em todo o Pantanal, que
poderia ajudar Calu naquele momento.

* * *

Uma janela estava entreaberta. Calu espiou. Era um quarto vazio. Saltou
rapidamente a janela, fechou-a por dentro e foi até a porta. Abriu uma fresta
mínima.
Tia Matilde surgia no começo do corredor e estendia uma gorjeta para o
empregado que carregara sua valise cor-de-rosa.
Calu contou mentalmente 30 segundos, para dar tempo de o empregado
afastar-se. Atravessou o corredor e bateu levemente na porta do melhor
apartamento daquele hotelzinho.
Empurrou a porta logo que ouviu a chave girar do outro lado e entrou, sem
pedir licença.
— Por favor, tia Matilde! Não grite. Não se assuste. Sou amigo de Crânio!
Sentada na cama, tia Matilde ouviu atentamente. Tinha passado a última
semana empregando todo o seu poder para descobrir o sobrinho desaparecido.
Estava informada de tudo. Sabia da morte de Bezerra e de suas últimas palavras.
Só não tinha nenhuma pista de Crânio.
— Ele está vivo, tia Matilde. Acredite! Crânio está vivo, em algum lugar do
Pantanal!
Tia Matilde voltou-se para o rapaz e beijou-o carinhosamente no rosto.
— Nós vamos encontrá-lo, meu querido!
— É claro, tia Matilde. Posso chamá-la de tia?
— Per que não? Todos chamam...
— Há um caminho a seguir, tia Matilde. Esse caminho é o do Senador.
Precisamos descobrir o que ele pretende fazer com Miguel. Tenho certeza que
todas as respostas estão com o Senador. Através dele chegaremos ao Crânio.
Acho que através dele teremos respostas a todas as nossas perguntas...
Tia Matilde levantou-se. Parecia disposta como nunca. Era aquela mulher
cuja alegria e excentricidade tinham feito fama no Pantanal.
— É isso, meu querido. Vamos à luta! Para que serve o dinheiro?
Pediu uma linha à portaria e pôs-se a dar ordens por telefone.

* * *

Uma hora depois, um telefonema trouxe as informações que os dois
esperavam. Miguel estava "hospedado" no casarão do Senador e uma expedição
deveria subir o rio Taquari naquela madrugada. Miguel iria junto.
Calu entendeu o poder que tinha aquela grande fazendeira. Ninguém nem
coisa alguma eram mistérios para tia Matilde. A mulher tinha seus jeitos de
conseguir o que queria. Todos os jeitos que o dinheiro pode comprar.
— O que faremos, tia Matilde?
— Vamos seguir essa expedição, meu querido. Não vamos perder o seu
amigo de vista. Nem o Senador...
— Segui-los? Mas como?
— Pelo ar, meu querido. Meu aviãozinho está aqui, em Nhecolândia. Vamos
voar atrás deles!

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