quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 20 - As provas das quatro casas


Os olhos esmeralda de Fanindra começaram a brilhar e 
forneceram luz suficiente para que Kishan pudesse pegar nossa 
lanterna. Um metro e meio à nossa frente havia outro tronco de 
árvore que parecia tão sólido quanto o externo - um tronco dentro do 
outro. Entre os dois, subia uma escada em espiral. Ele pegou minha 
mão outra vez antes de começarmos nossa subida. Os degraus tinham 
largura suficiente para que andássemos lado a lado e profundidade 
bastante para que pudéssemos parar e recuperar o fôlego ou mesmo 
dormir, se precisássemos. 

Subimos em um ritmo lento, parando com freqüência para 
descansar. Era difícil dizer quanto já havíamos subido. Depois de 
várias horas, encontramos uma espécie de porta. Era amarelo-
alaranjada e tinha a superfície irregular. Um talo tosco de madeira 
estava no ponto exato em que deveria haver uma maçaneta. 
Encordoei meu arco e encaixei uma flecha enquanto Kishan deixava 
seu chakram na posição de lançamento. Ele se postou de um lado, 
pegou a maçaneta e empurrou a porta lentamente enquanto eu 


deslizava um pé para dentro e esquadrinhava o lugar à procura de 
atacantes. Não havia ninguém à vista. 

Tratava-se de uma sala cheia de prateleiras que tinham sido 
entalhadas nas paredes da árvore. Cobrindo as prateleiras e o chão, 
havia centenas de cabaças, de todos os tipos e tamanhos. Algumas 
eram sólidas, outras, ocas. Muitas tinham belos e elaborados 
desenhos e eram iluminadas por velas que bruxuleavam em seu 
interior. 

Algumas abóboras apresentavam entalhes muito superiores a 
qualquer coisa que eu já tivesse visto no Halloween. Passamos por 
prateleira após prateleira, admirando os desenhos. Algumas eram 
pintadas e envernizadas até cintilarem como pedras preciosas 
entalhadas. Kishan estendeu a mão para tocar uma delas. 

. Espere! Não toque em nada ainda. Esta é uma das provas. 
Precisamos descobrir o que fazer. Espere um segundo enquanto 
consulto as anotações do Sr. Kadam. 


O Sr. Kadam nos fornecera três páginas de informações sobre 
cabaças. Kishan e eu nos sentamos no chão de madeira polida e as 
lemos. 

. Aqui tem muita coisa sobre onde certas cabaças se 
originaram e fatos sobre como marinheiros procuravam sementes de 
determinadas espécies para cultivá-las. Existe uma narrativa 
mitológica sobre barcos feitos de cabaças. Também não acredito que 
se trate disso. 


Kishan riu. 

. E o que me diz desta aqui? Sobre cabaças e fertilidade? 
Quer experimentar, Kells? Estou disposto a fazer o sacrifício, se você 
estiver. 


Li o mito e encarei Kishan de olhos estreitados enquanto ele 
ria. 

. Nos seus sonhos. Essa decididamente eu passo. - Virei a 
página. - Aqui diz que atirar uma cabaça na água evoca monstros e 
serpentes marinhos. Hum, não precisamos de nenhum desses. 
. E quanto a este mito chinês aqui? Diz que um garoto se 
aproximando da idade adulta devia escolher a cabaça que guiaria sua 



vida. Cada uma delas continha algo diferente. Algumas eram 
perigosas; outras, não. Uma inclusive guardava o elixir da juventude 
eterna. Pode ser que tenhamos sorte. Talvez seja melhor escolher logo 
uma. 
. Acho que escolher uma provavelmente é a coisa certa a 
fazer, mas como saber qual delas? 
. Não sei. Precisamos tentar. Eu começo. Mantenha a mira 
no que quer que saia dela. 


Kishan pegou uma cabaça simples em formato de sino. Nada 
aconteceu. Ele a sacudiu, jogou-a para o alto e a bateu contra a 
parede... nada. 

. Vou tentar quebrá-la. 


Ele a atirou contra o chão e uma pera saiu rolando dela. Pegou 
a fruta e deu uma mordida antes que eu pudesse avisá-lo de que 
talvez houvesse algo de errado com ela. Quando Kishan finalmente 
prestou atenção em mim, a fruta já estava quase no fim. Ele 
desdenhou de meu aviso e disse que o sabor era bom. A cabaça 
quebrada se dissolveu e desapareceu no chão. 

. Ok, minha vez. 


Peguei uma cabaça redonda pintada com flores, ergui-a acima 
da cabeça e a atirei ao chão. Uma serpente negra e sibilante surgiu 
dos pedaços quebrados e imediatamente se enroscou para dar o bote 
em minha perna. Antes que eu pudesse levantar a mão, ouvi um 
zumbido metálico. O chakram de Kishan cravou-se no piso de 
madeira aos meus pés, decepando a cabeça da serpente. Seu corpo e a 
cabaça partida se dissolveram no chão. 

. Sua vez. Talvez seja uma boa idéia nos ater às cabaças não 
decoradas. 


Ele escolheu uma em forma de garrafa, que apresentou algo 
que parecia 

leite. Adverti Kishan para que não o bebesse, pois podia não 
ser o que parecia. Ele concordou, mas descobrimos que, se não o 
bebêssemos, a cabaça seguinte não se partiria e a quebrada com o 
leite dentro não se dissolveria. Ele bebeu o leite e continuamos. 

Escolhi uma cabaça branca imensa e obtive luar. 


Uma pequena e verrugosa produziu areia. 

Uma alta e estreita criou uma linda canção. 

Uma cabaça cinza e gorda, que parecia um golfinho, jogou 
água do mar na perna de Kishan. 

Minha escolha seguinte foi uma com formato de colher. 
Quando a quebrei, uma névoa negra subiu e veio em minha direção. 
Eu corri, mas ela me seguiu, dirigindo-se para minha boca e meu 
nariz. Não havia nada que Kishan pudesse fazer. Eu a inspirei e 
comecei a tossir. Minha visão nublou. Senti-me tonta e cambaleei. 
Kishan me segurou. 

. Kelsey! Você está pálida! Como se sente? 
. Nada bem. Acho que o conteúdo dessa era doença. 
. Aqui. Deite-se e descanse. Talvez eu consiga encontrar 
uma cura. 


Ele começou a quebrar as cabaças freneticamente enquanto eu 
observava. Estremeci e comecei a suar, um escorpião saiu de dentro 
da próxima e Kishan o esmagou com a bota. Em seguida, encontrou 
uma cabaça com vento, outra com peixe e uma que continha uma 
pequena estrela que brilhava tanto que tivemos que fechar os olhos 
até que a luz diminuísse e ela desaparecesse no chão. 

Todas as vezes em que encontrava um líquido, Kishan corria 
para mim e me fazia provar. Bebi néctar de frutas, água comum e um 
tipo de chocolate quente escuro e amargo. Recusei-me a beber um 
que cheirava a álcool, mas o esfreguei em minha pele para que a 
cabaça desaparecesse. 

As três seguintes continham nuvens, uma tarântula gigante, 
que ele chutou para o canto da sala, e um rubi, que ele guardou no 
bolso. Minha visão, a essa altura, estava escurecendo e Kishan ia 
ficando desesperado. A próxima cabaça que ele escolheu tinha uma 
espécie de pílula. Debatemos se eu devia tomá-la ou não. Eu estava 
tonta e fraca, febril e coberta de suor. Era difícil respirar e meu 
coração estava disparado. Entrei em pânico, certa de que, se não 
encontrássemos algo logo, eu morreria. Mastiguei a pílula e a engoli. 
Tinha gosto de vitamina para crianças e não me fez melhorar. 


Duas outras cabaças continham queijo e um anel. Ele comeu o 
queijo e colocou o anel no dedo. A seguinte tinha um líquido branco. 
Kishan estava nervoso. Até onde sabíamos, podia ser um veneno que 
me mataria imediatamente ou podia ser minha cura ou o elixir da 
eterna juventude. Acenei para que ele se aproximasse. 

. Vou beber. Me ajude. 


Ele ergueu minha cabeça e inclinou a cabaça, o conteúdo 
derramando-se entre meus lábios secos e rachados. O líquido 
escorreu pela minha garganta enquanto eu me esforçava para engolir. 
Imediatamente comecei a sentir a força retornar aos meus membros. 

. Mais. 


Ele segurava a cabaça com firmeza enquanto eu bebia. O sabor 
era delicioso e me deu força suficiente para pegar a cabaça dele. 
Envolvendo a forma arredondada com ambas as mãos, engoli o 
restante do líquido em dois grandes goles. Sentia-me agora mais forte 
do que quando tínhamos chegado ali. 

. Você parece bem melhor, Kells. Como está se sentindo? 


Eu me levantei. 

. Estou me sentindo ótima! Forte. Invencível até. 


Ele soltou um suspiro trêmulo. 

. Ótimo. 


Olhei ao redor com a visão clara. Quase mais do que clara. 

. Ei. O que é aquilo? 


Empurrei algumas cabaças, tirando-as do caminho, e agarrei a 
alça de uma cabaça grande e redonda com uma longa haste no topo. 

. Tem um tigre entalhado no lado externo. Tente esta, 
Kishan. 


Ele a pegou de minhas mãos e a atirou contra o chão. Lá 
dentro havia um papel dobrado. 

. É como um biscoito da sorte! O que ele diz? 
. Diz: O recipiente oculto mostra o caminho. 
. O recipiente oculto? Talvez se refira a uma cabaça oculta. 
. É muito fácil ocultar uma cabaça numa sala cheia de 
cabaças, Kells. 



. É mesmo. Vamos procurar cabaças que estejam fora do 
caminho, no fundo da sala ou enfiadas nos cantos. 


Recolhemos um grupo de cabaças menores. Kishan tinha cerca 
de 10 e eu, 4. Ele abriu seu grupo primeiro e obtivemos arroz, uma 
borboleta, uma pimenta-malagueta, neve, uma pena, um lírio, um 
chumaço de algodão, um camundongo, outra serpente da qual ele se 
livrou - poderia ser inofensiva, mas melhor prevenir que remediar - e 
uma minhoca. 

Desapontados, nos voltamos para o meu grupo. A primeira 
continha linha, a segunda, sons de tambor, a terceira, aroma de 
baunilha e a quarta, que tinha o formato de uma maçã pequena, não 
tinha nada. Esperamos algum tempo e começamos a ficar nervosos, 
pensando que um de nós ia ficar doente outra vez. A cabaça quebrada 
desapareceu como as outras, o que significava que alguma coisa tinha 
acontecido. 

. Será só isso? Está vendo alguma coisa? - perguntei. 
. Não. Espere. Estou ouvindo algo. 


Depois de um minuto, eu disse: 

. E então? O que é? 
. Tem alguma coisa diferente nesta sala, mas não sei dizer o 
que é. Espere. O ar! Ele está se movendo. Consegue sentir? 
. Não. 
. Espere um instante. 


Kishan percorreu lentamente a sala, examinando prateleiras, 
paredes e cabaças. Ele pousou a mão numa das paredes e se 
aproximou dela, esbarrando em cabaças que rolaram e mudaram de 
lugar. 

. Tem ar entrando por aqui. Acho que é uma porta. Me 
ajude a remover estas cabaças. 


Limpamos toda aquela parte da parede, deixando as prateleiras 
nuas. 

. Não consigo mover esta aqui. Está presa. 


Era uma cabaça minúscula, que parecia crescer da parede. 
Puxei e empurrei, mas ela não cedeu. Kishan recuou um passo para 


ter uma visão melhor e começou a rir. Eu ainda estava puxando a 
cabaça pequenina. 

. O que foi? Por que você está rindo? 
. Afaste-se um segundo, Kells. 


Saí do caminho e ele pôs a mão sobre a cabaça. 

. Não sei o que você está tentando provar. Ela não se mexe. 


Kishan girou e empurrou. 

. É uma maçaneta, Kelsey. 


Ele riu e abriu a seção da parede que agora era obviamente 
uma porta. Do outro lado, encontramos mais degraus que levavam a 
um nível mais alto no interior da árvore. 

Ele estendeu a mão. 

. Vamos? 


Após algumas horas de subida, Kishan pediu que fizéssemos 
uma pausa. 

. Vamos parar e comer alguma coisa, Kells. Não consigo 
acompanhá-la. Eu me pergunto quanto tempo o efeito de sua bebida 
energética especial vai durar. 


Parei uns 10 passos à frente dele e esperei que me alcançasse. 

. Agora você sabe como me sinto tentando acompanhar o 
ritmo de vocês, tigres, o tempo todo. 


Ele grunhiu e tirou a mochila dos ombros. Então nos 
acomodamos confortavelmente num degrau amplo. Ele abriu o zíper 
da mochila, tirou o Fruto Dourado e o girou entre as mãos. Depois de 
pensar por um momento, sorriu e falou em sua língua nativa. Uma 
grande travessa tremeluziu e se materializou. O vapor que subia dos 
vegetais tinha um aroma familiar. Franzi o nariz. 

. Curry? Argh. Minha vez. 


Pedi batata gratinada, tênder com calda de cereja, vagem com 
amêndoas e pães com manteiga e mel. Quando meu jantar surgiu, 
Kishan olhou meu prato. 

. Que tal dividirmos? 
. Não, obrigada. Não sou fã de curry. 


Ele terminou rapidamente sua refeição e ficou tentando me 
fazer olhar para monstros imaginários para que pudesse roubar 


bocados do meu prato. Terminei dando metade de minha comida 
para ele. 

Mais uma hora subindo degraus e o efeito do meu energético 
se esgotou. Eu me senti exausta. Kishan me deixou descansar 
enquanto procurava a casa seguinte. Quando voltou, eu estava 
escrevendo no diário. 

. Encontrei a próxima porta, Kells. Venha. Talvez seja 
melhor descansar lá. Os empoeirados degraus circulares no interior 
do tronco da árvore do mundo nos levaram a um chalé coberto com 
hera espessa e flores. Lá de dentro, ouvia-se o tilintar de risadas. 
. Tem gente lá dentro - sussurrei. - Vamos ter cuidado. 


Ele assentiu e desamarrou o chakram preso ao cinto enquanto 
eu encaixava uma flecha no arco. 

. Pronta? 
. Pronta - sussurrei. 


Ele abriu a porta cuidadosamente e fomos recebidos pelas 
mulheres mais lindas que eu já tinha visto. Elas ignoraram nossas 
armas e nos deram boas-vindas à sua casa. 

Uma jovem belíssima, com cabelos castanhos compridos e 
ondulados, olhos verdes, pele cor de marfim e lábios cor de cereja, 
vestida num cintilante vestido rosa pálido, pegou o braço de Kishan. 

. Pobrezinhos. Devem estar cansados depois dessa viagem. 
Entrem. Vocês podem tomar um banho e descansar. 
. Um banho me parece ótimo - disse Kishan, extasiado. 


Ela não prestou a menor atenção em mim. Seus olhos estavam 
presos aos de Kishan. Ela acariciou-lhe o braço, sussurrando algo 
sobre travesseiros macios, água quente e refrescos. Outra mulher se 
juntou à primeira. Era loura, tinha olhos azuis e usava um vestido 
prata com brilhos. 

. Isso, venha - chamou ela. - Você encontrará conforto aqui. 
Por favor, siga-nos. 


Elas já levavam Kishan dali quando protestei. Kishan se virou e 
um homem se aproximou. Louro e de olhos azuis, com quase dois 
metros de altura, exibindo o tórax nu, bronzeado e musculoso, dirigiu 
toda sua atenção a mim. 


. Olá. Bem-vinda ao nosso humilde lar. Minhas irmãs e eu 
raramente temos visitas. Adoraríamos que vocês ficassem conosco 
algum tempo. 


Ele sorriu para mim e eu corei intensamente. 

. É... é muita generosidade sua - gaguejei. 


Kishan fechou a cara para o rapaz, mas as garotas jogaram seu 
charme piscando os longos cílios e o distraíram novamente. 

. Kishan, não acho que... 


Outro homem surgiu de trás de uma cortina. Este era ainda 
mais bonito que o primeiro. Tinha cabelos e olhos castanhos e fiquei 
fascinada por sua boca. Ele fez cara de triste e disse: 

. Tem certeza de que não podem ficar conosco? Nem um 
pouquinho? Adoraríamos ter companhia. - Ele suspirou 
dramaticamente. - A única coisa que temos para nos manter 
ocupados é nossa coleção de livros. 
. Vocês têm uma coleção de livros? 
. Sim. - Ele sorriu e me ofereceu o braço. - Posso mostrá-la 
a você? 


Kishan havia saído com as mulheres e resolvi olhar a coleção 
de livros. 

Racionalizei que, se os rapazes tentassem alguma coisa, eu 
poderia atingi-los com raios. 

Eles de fato tinham uma coleção de livros, que contava com 
muitos dos títulos que eu amava. Na verdade, observando mais de 
perto, descobri que eu conhecia todos. Eles me ofereceram petiscos. 

. Aqui, prove uma dessas tortas. São incríveis. Nossas irmãs 
são excelentes cozinheiras. 
. Não, obrigada. Kishan e eu acabamos de comer. 
. Ah, então talvez você queira se refrescar... 
. Vocês têm um banheiro? 
. Temos. Fica atrás daquela cortina ali. Também tem um 
chuveiro. Puxe o ramo comprido e a água cairá das folhas da árvore. 
Vamos providenciar refrescos e um lugar confortável para você 
descansar. 
. Obrigada. 



Estávamos obviamente na Casa das Sereias. O banheiro era de 
verdade, felizmente, e aproveitei a oportunidade para tomar um 
banho e trocar de roupa. Quando saí do banho, encontrei um longo 
vestido dourado pendurado para mim. Era semelhante aos vestidos 
que as duas mulheres usavam. Minhas roupas estavam rasgadas e 
ensangüentadas, então vesti o traje dourado e pendurei minhas 
roupas de fada para ver se elas iriam limpá-las mesmo na árvore do 
mundo. 

Em silêncio, li as notas do Sr. Kadam sobre sereias. Passei os 
olhos pelas sereias da Odisséia e pela história de Jasão e os 
Argonautas. Eu já conhecia essas narrativas, mas ele também havia 
incluído informações sobre ninfas do mar e tritões, os equivalentes 
masculinos das sereias. 

Essas pessoas provavelmente estavam mais para ninfas das 
árvores do que para ninfas da água. Elas mantinham a beleza até 
morrerem. Podiam flutuar. Passar por pequenos buracos. Hum, essa é 
nova. Vida extremamente longa... às vezes invisíveis... momentos 
especiais são meio-dia e meia-noite. A meia-noite deve estar se 
aproximando. Elas podiam ser perigosas, causar loucura, síncope, 
letargia e paixão obsessiva. 

Uma batida suave na porta me arrancou do meu estudo. 

-Oi? 

. Está pronta para sair, senhorita? 
. Quase. 


Olhei rapidamente o restante das anotações e guardei os 
papéis na mochila. Os dois homens postavam-se diante da porta e me 
fitavam como um par de cobras observando o ninho de um pássaro. 

. Com licença. 


Passei rapidamente entre eles, caminhei até o outro lado da 
sala e me sentei no que parecia um pufe gigante coberto por uma pele 
macia. Os homens me imitaram, sentando-se um de cada lado. 

Um deles cutucou meu ombro. 

. Você está muito tensa. Deite-se e relaxe. Esse assento se 
amolda ao seu corpo. 



Eles não aceitariam não como resposta. O de cabelos escuros 
me empurrou para trás delicada mas insistentemente. 

. Sim, é confortável. Obrigada. Onde está Kishan? 
. Quem é Kishan? 
. O homem com quem cheguei. 
. Não percebi que havia um homem. 
. Seria impossível perceber qualquer coisa depois que você 
entrou - disse o outro homem. 
. Isso mesmo. Concordo. Você é linda demais - afirmou o 
irmão. 


Um deles começou a acariciar meu braço enquanto o outro 
massageava meus ombros. 

Eles indicaram uma mesa à nossa frente repleta de guloseimas. 

. Quer experimentar uma fruta cristalizada? É deliciosa. 
. Não. Obrigada. Ainda não estou com fome. 


O homem que massageava meus ombros começou a beijar 
minha nuca. 

. Você tem uma pele muito delicada. 


Tentei me sentar, mas ele me pressionou de volta no pufe. 

. Relaxe. Estamos aqui para satisfazer você. 


O outro me entregou uma taça alta com um líquido vermelho 
e borbulhante. 

. Que tal um suco de amora espumante? 


Então ele pegou minha outra mão e começou a beijar meus 
dedos. Uma penumbra toldou minha visão. Fechei os olhos por um 
momento e meus sentidos se concentraram nos lábios beijando meu 
pescoço e nas mãos quentes que massageavam meus ombros. O 
prazer enredou-se pelo meu pescoço e eu, ávida, queria mais. Um dos 
homens beijou minha boca. Aquilo não parecia certo. Alguma coisa 
estava errada. 

. Não - murmurei fracamente e tentei afastá-los. 


Mas eles não me davam trégua. Alguma coisa arranhava o 
fundo da minha mente. Algo a que eu tentava me agarrar. Algo que 
me ajudaria a me concentrar. A massagem nos ombros estava tão 
boa... Ele passou para o pescoço, movendo o polegar em pequenos 


círculos. Foi quando aquilo de que eu estava tentando me lembrar 
emergiu em minha consciência. 

Ren. Ele havia massageado meu pescoço daquela maneira. 
Visualizei seu rosto. A princípio, ele me apareceu fora de foco, mas 
comecei a listar mentalmente tudo aquilo que eu amava nele e a 
imagem se tornou mais nítida. Pensei em seu cabelo, nos olhos, em 
como ele segurava minha mão o tempo todo. Pensei nele com a 
cabeça deitada sobre meu colo enquanto eu lia para ele, em seu 
ciúme, sua paixão por panquecas de manteiga de amendoim e no fato 
de ele ter escolhido sorvete de pêssego com creme porque fazia com 
que se lembrasse de mim. Em minha mente, eu o ouvi dizer: "Mein 
tumse mohabbat karta hoon, iadala." 

. Mujhe tumse pyarhai, Ren - sussurrei. 


Alguma coisa estalou em minha cabeça e eu me sentei 
abruptamente. Os homens fizeram beicinho enquanto tentavam me 
puxar de volta. Então começaram a cantar em voz suave. Minha visão 
foi começando a perder o foco outra vez, então cantarolei a canção 
que Ren escreveu para mim e recitei um de seus poemas. Levantei-
me. Os homens agora insistiam que eu comesse alguma coisa ou 
bebesse um suco. Recusei. Eles me levaram até uma cama macia. Eu 
me mantive firme enquanto eles me puxavam, imploravam e me 
bajulavam. Elogiaram meus cabelos, meus olhos e meu lindo vestido e 
choraram, dizendo que eu fora sua única visitante em milênios e que 
só queriam passar algum tempo em minha companhia. 

Recusando outra vez, insisti que precisávamos retomar nossa 
jornada. Eles teimaram, pegaram minha mão e me puxaram na 
direção da cama. Afastei-me deles e agarrei meu arco. Rapidamente, 
ajustei a corda e encaixei uma flecha, então a apontei para o peito 
masculino mais próximo, amea- çando-os. Os dois homens recuaram 
e um deles ergueu a mão, num gesto de derrota. Eles se comunicaram 
silenciosamente e então sacudiram a cabeça, com tristeza. 

. Poderíamos fazê-la feliz. Você esqueceria todos os seus 
problemas. Nós iríamos lhe dar amor. 


Sacudi a cabeça. 

. Eu amo outro. 



. Você nos teria estimado com o tempo. Possuímos a 
habilidade de tirar todos os pensamentos e substituí-los apenas por 
sentimentos de paixão e prazer. 
. Aposto que sim - repliquei, com sarcasmo. 
. Somos solitários. Nossa última companheira morreu há 
vários séculos. Nós a amávamos. 
. Sim, nós a amávamos muito - confirmou o outro. - Ela 
nunca soube o que era sofrimento nem por um só dia de sua vida 
conosco. 
. Mas somos imortais e a vida dela passou rápido demais. 
. Sim. Precisamos encontrar uma substituta. 
. Sinto muito, garotos, mas eu não quero isso. Não tenho o 
menor interesse em ser sua - engoli em seco - escrava do amor. E, 
além disso, não desejo esquecer coisa alguma. 


Eles me estudaram por um longo momento. 

. Que seja então. Você está livre para ir. 
. E quanto a Kishan? 
. Ele deve fazer sua própria escolha. 


Com isso, eles se transformaram numa fina coluna de fumaça, 
entraram num nó da parede da árvore e desapareceram. Voltei ao 
banheiro para pegar minhas roupas de fada e fiquei encantada ao ver 
que elas haviam sido limpas e consertadas. 

Apanhando a mochila, voltei à sala. Em vez do quarto sedutor, 
encontrei agora uma sala simples e vazia, com uma porta. Eu a abri, 
saí da casa e acabei de volta na escada circular que espiralava no 
interior do tronco da árvore do mundo. A porta se fechou atrás de 
mim. Estava sozinha. 

Tornei a vestir a calça e a camisa que as fadas haviam tecido 
para nós e me perguntei quando ou se Kishan sairia dali. Seria muito 
melhor dormir naquela cama macia do que nos degraus duros de 
madeira. Mas, por outro lado, se eu tivesse ficado naquela cama, creio 
que não conseguiria dormir muito. 

Agradeci mentalmente a Ren por me salvar das ninfas das 
árvores e dos homens-sereias ou o que quer que fossem. 


Completamente exausta, me enrasquei no saco de dormir e adormeci. 
No meio da noite, Kishan cutucou meu ombro. 

-Ei. 

Apoiei-me no cotovelo e bocejei. 

. Kishan? Você ficou muito tempo lá. 
. É. Não foi exatamente fácil me livrar daquelas mulheres. 
. Sei o que quer dizer. Precisei ameaçar atirar naqueles 
caras para eles me deixarem em paz. Na verdade estou surpresa que 
tenha conseguido sair. Como foi que eliminou a influência delas sobre 
sua mente? 
. Mais tarde eu falo sobre isso. Estou cansado, Kells. 
. Está bem. Aqui, pegue minha colcha. Não vou sugerir que 
a gente divida o saco de dormir. Chega de homens por hoje. 
. Entendo perfeitamente. Obrigado. Boa noite, Kells. 


Depois de acordar, comer e arrumar nossas coisas, 
continuamos subindo os degraus da árvore do mundo. Uma luz 
brilhante cintilava adiante. Surgiu um buraco no tronco e passamos 
para o lado de fora. Era bom ver a luz do sol, mas os degraus agora 
não eram mais cercados. Agarrei-me ao tronco, recusando-me a olhar 
para baixo. 

Kishan, por outro lado, estava fascinado pela altura em que 
nos encontrávamos. Ele não conseguia ver o chão, apesar de sua 
excepcional visão de tigre. Galhos gigantescos se estendiam da árvore. 
Eram tão grandes que poderíamos ter caminhado por um deles lado a 
lado sem perigo de cair. Kishan corria ao longo de alguns deles, de 
tempos em tempos, para explorar. Eu me mantive o mais próximo 
possível do tronco. 

Depois de várias horas em nosso ritmo lento, parei diante de 
um buraco escuro que levava de volta ao interior do tronco. Esperei 
Kishan voltar de sua última exploração para entrarmos juntos ali. Essa 
parte do tronco era mais escura e úmida. A água gotejava lá dentro, 
caindo de algum ponto no alto. As paredes mudaram de lisas para 
lascadas e descascadas. Nossas vozes produziam eco. Parecia haver 
uma grande fenda na árvore, como se ela tivesse sido escavada. 


. É como se essa parte da árvore estivesse morta - eu disse -, 
como se tivesse sido danificada. 
. Verdade. A madeira sob nossos pés está apodrecendo. 
Mantenha-se o mais perto possível da parede do tronco. 


Mais alguns minutos se passaram e os degraus cessaram sob 
um buraco negro grande o suficiente para que passássemos por ele 
rastejando. 

. Não tem mais nenhum lugar para ir. Devemos entrar? 
. Vai ser bem apertado. 
. Então me deixe ir primeiro, dar uma olhada - eu me 
ofereci. - Se estiver bloqueado à frente, não tem necessidade de você 
passar por aqui. Eu volto e tentamos encontrar outro caminho para o 
topo. 


Ele concordou e trocou a lanterna pela mochila. Kishan me 
levantou e eu me enfiei no buraco, engatinhando até a passagem 
começar a se estreitar e se tornar mais alta. Naquele ponto, a única 
maneira de prosseguir era ficar de pé e andar de lado, espremida. Em 
seguida, a passagem tornou-se mais baixa e mais uma vez me pus de 
joelhos. 

A passagem parecia de rocha. Uma grande pedra bloqueava a 
metade superior da passagem. Eu me deitei de bruços, me espremi 
por baixo dela e descobri que a passagem se abria numa grande 
caverna. Parecia que eu havia percorrido uns 30 metros, mas 
provavelmente não chegava nem a 10. Imaginei que Kishan passaria 
ali por muito pouco. 

. Tente vir - gritei. 


Enquanto esperava por ele, percebi que o piso parecia 
esponjoso. Provavelmente madeira apodrecendo. As paredes eram 
cobertas por algo que parecia uma crosta de mostarda escura. Ouvi 
uma ave batendo as asas lá em cima e um grito suave. Ah, deve haver 
um ninho ali. Os sons ricocheteavam dentro da árvore, tornando-se 
progressivamente mais altos e mais violentos. 

. Kishan? Depressa! 


Ergui a lanterna, apavorada. Não conseguia ver nada, mas o ar 
certamente estava se movendo. Parecia que bandos de aves estavam 


batendo uns contra os outros na escuridão. Alguma coisa roçou em 
meu braço e voou de repente. Se era uma ave, era das grandes. 

. Kishan! 
. Estou quase aí. 


Eu podia ouvi-lo deslizando de barriga. Estava quase me 
alcançando. 

Alguma coisa bateu as asas, vindo em minha direção. Talvez 
sejam mariposas gigantes. Desliguei a lanterna para deter as criaturas 
voadoras e ouvi Kishan se aproximar. 

Primeiro a mochila e depois sua cabeça emergiram. Acima de 
mim, algo grande me assustou, batendo as asas freneticamente. 
Garras pontudas, semelhantes a ganchos, envolveram meus ombros e 
os seguraram. Eu gritei. Elas apertaram e, com um violento bater de 
asas e um grito alto e agudo, fui erguida no ar. 

Kishan rastejou rapidamente para fora do buraco e agarrou 
minha perna, mas a criatura era forte e me arrancou de suas mãos. Eu 
o ouvi gritar: 

. Kelsey! 


Gritei de volta e minha voz ecoou nas paredes. Eu estava bem 
no alto, mas ainda podia distingui-lo vagamente lá embaixo. A 
criatura logo foi cercada por outras de sua espécie e eu me vi 
envolvida numa massa tremulante e ruidosa de corpos quentes. Às 
vezes, sentia pelo roçar minha pele, outras vezes uma membrana 
coriácea e, de quando em quando, garras afiadas. 

A criatura desacelerou, pairou e então me soltou. Antes que eu 
pudesse gritar, aterrissei de costas com um ruído surdo. Apontei a 
lanterna, que de alguma forma eu conseguira manter na mão durante 
o súbito vôo. Temendo ver onde estava, mas determinada a descobrir, 
apertei o botão e olhei. 

A princípio, não consegui saber para onde estava olhando. 
Tudo que eu podia ver eram massas de corpos marrons e pretos. Em 
seguida, percebi que eram morcegos. Morcegos gigantes. Eu estava de 
pé numa saliência com uma queda de dezenas de metros. 
Rapidamente recuei e me colei à parede. 

Kishan gritou meu nome e tentou ir na minha direção. 


. Eu estou bem! - gritei. - Eles não me machucaram! Estou 
aqui em cima, numa saliência! 
. Segure-se, Kells! Eu estou indo! 


Os morcegos pendiam de cabeça para baixo, observando o 
progresso de Kishan com olhos negros piscantes. A massa de corpos 
estava em constante movimento. Alguns andavam por cima dos 
companheiros até encontrar uma posição melhor para se pendurar. 
Outros batiam as asas antes de fechá-las coladas ao corpo. Alguns se 
balançavam para a frente e para trás. Outros dormiam. 

Eram ruidosos. Tagarelavam com cliques e estalidos enquanto 
se penduravam e nos olhavam. 

Kishan avançou por algum tempo, mas se viu sem saída e teve 
que recuar. Ele tentou várias vezes escalar até onde eu estava, mas era 
sempre frustrado. Depois da sexta tentativa, ele parou perto do 
buraco e gritou para mim: 

. É impossível, Kells. Não consigo subir aí! 


Eu tinha acabado de abrir a boca para responder, quando um 
morcego gigante falou. 

. Iiiiiimpossíííível eleeee peeeensa - disse o animal, com 
estalidos, e bateu as asas. - Eééé possíííível, Tiiigreee. 
. Você sabe que ele é um tigre? - perguntei ao morcego. 
. Nóóóós o veeeeemos. Ouviiiimos. O espíííírito deleeeee 
está partiiiiido. 
. O espírito dele está partido? O que quer dizer com isso? 
. Queeeer diiiiizer que eleeee supoooorta o sofrimeeeento. 
Eleeee cuuuuura o própriiiiiiio remoooorso... eleeee resgaaata 
vocêêêê. 
. Se ele curar o próprio remorso, ele vai me resgatar? Como 
ele pode fazer isso? 
. Eleeeee éééé como nóóóós. Metaaaade hooooomem e 
metaaaade tiiiiiigre. Nóóóós sooooomos metaaaaade ave e metaaaade 
mamíííífero. As metaaaaaaades deeeevem se uniiiiir. Eleeeee 
preciiiiisa abraaaaaçar o tiiiiiiiigre. 
. Como suas duas metades podem se unir? 
. Eleeeee preciiiiisa aprendeeeeeeer. 



Eu estava prestes a fazer outra pergunta quando vários 
morcegos saltaram no ar e voaram para diferentes lugares na caverna, 
que se assemelhava a um útero. Estalos rítmicos, que percebi serem 
seu sonar, atravessaram o ar e bateram nas paredes. Eu podia até 
sentir as vibrações em minha pele. Logo pequenas pedras embutidas 
nas paredes começaram a brilhar. Quanto mais tempo os morcegos 
mantinham o barulho, mais fortes se tornavam as luzes. Quando os 
morcegos pararam, a caverna estava bem iluminada. 

. Aaaas luuuuzes vão seeee apaaaaagar quaaaando o 
teeeempo deeeele acaaaaabar. Eleeeee preciiiiisa ajuuuuudar vocêêêê 
antes diiiiiisso. Deeeeeve uuuusar suuuuua metaaaade hooooomem e 
suuuuuua metaaaade tiiiiiiigre. Diiiiiga iiiiisso a eleeeee. 
. Certo. - Então berrei para Kishan lá embaixo: - Os 
morcegos dizem que você tem que usar suas duas metades para me 
alcançar antes que as luzes se apaguem novamente. Deve abraçar sua 
metade tigre. 


Agora que as luzes estavam acesas, os perigos do caminho 
tornaram-se óbvios. Uma série de formações semelhantes a 
estalagmites, mas com a extremidade plana, erguia-se na caverna. 
Eram muito distantes entre si para que um humano saltasse, mas um 
tigre talvez conseguisse. 

Kishan olhou para cima e atirou o chakram no ar. Enquanto a 
arma subia, Kishan se transformou no tigre negro e saltou. Ele era 
rápido. Prendi a respiração à medida que ele saltava velozmente de 
uma formação para a outra, sem nem mesmo parar para se equilibrar. 
Arquejei de pavor, sabendo que cada salto poderia significar sua 
morte. Quando chegou à última, exagerou ligeiramente e agarrou a 
madeira esponjosa com as garras, girando a cauda em busca de 
equilíbrio. 

Ele mudou para a forma humana, pegou o chakram e o lançou 
novamente para o alto. O local em que se encontrava era minúsculo, 
mal dava para seus pés. Não havia nenhuma saliência para onde saltar 
dali. Nada era próximo o bastante, nem mesmo para um tigre. Ele 
olhou ao redor por um momento, calculando o próximo passo. De 
ponta-cabeça, os morcegos piscavam e o olhavam com olhos 


arregalados de seus poleiros. A iluminação começou a diminuir. 
Quanto mais escuro ficasse, mais perigosa seria sua subida. 

Eu sabia que Kishan podia ver no escuro melhor que eu, mas 
ainda assim o caminho era muito traiçoeiro. Ele tomou uma decisão: 
agachou-se, transformou-se no tigre negro e saltou no ar. Mas não 
havia nenhum lugar onde pudesse aterrissar. 

. Kishan! Não! - gritei. 


Em pleno ar ele mudou para a forma humana e caiu. Inclinei-
me de braços para olhar por sobre a borda de minha pequena 
plataforma e voltei a respirar quando o vi pendurado num longo 
ramo. Ele vinha subindo lentamente por ele, colocando uma mão 
acima da outra, mas ainda estava muito distante. Então pegou o 
chakram, segurou a perigosa arma nos dentes e oscilou para a frente e 
para trás até conseguir agarrar um pedaço protuberante de madeira 
na lateral da árvore. Subiu mais um pouco e descansou por um 
minuto num minúsculo afloramento. Depois de avaliar a situação, 
agarrou um novo ramo, saltou e se balançou para a frente novamente. 

Kishan fez uma série de manobras acrobáticas. Vi o homem se 
metamorfosear em tigre e vice-versa pelo menos três vezes. A certa 
altura, ele atirou o chakram, que girou na caverna, partiu um ramo e 
voltou voando para uma pata de tigre que de repente se transformou 
em mão humana e o pegou. Com o chakram na boca novamente, ele 
se balançou abaixo de mim, cruzando a caverna, e tomou impulso 
para o outro lado a fim de me alcançar. Agarrou o galho que cortara 
para completar a distância. Quando vinha em minha direção, vi que o 
galho não era comprido o bastante e percebi que ele aterrissaria a 
pelo menos três metros de mim. 

Eu queria fechar os olhos, mas sentia que tinha que olhar 
enquanto Kishan arriscava a vida para me alcançar. Kishan se 
balançou para trás e tomou impulso novamente. Dessa vez, quando 
seus pés tocaram a parede, ele atirou o chakram mais uma vez. Então 
agarrou o ramo com os dentes, metamorfoseou-se rapidamente no 
tigre negro e tomou impulso com suas poderosas patas traseiras. Em 
seguida, transformou-se em homem, foi até onde o ramo podia levá-
lo e então o soltou. Girando no ar, mudou para a forma de tigre. Seu 


corpo negro se esticou em direção à minha plataforma. Enquanto suas 
garras afundavam na madeira perto dos meus pés e ele pendia 
suspenso no ar, o chakram cravou-se na madeira a alguns centímetros 
da minha mão. As garras de tigre se transformaram em mãos. 

. Kishan! 


Agarrei as costas de sua camisa e puxei o mais forte que pude. 
Ele rolou para a saliência de madeira e ficou ali deitado, arquejando, 
durante vários minutos. A luz havia diminuído ainda mais. 

. Estáááá veeeendo? Eleeeee conseguiiiiiiiiu. 


Seus braços tremiam e eu sequei as lágrimas de meu rosto. 

. Sim. Conseguiu - eu disse baixinho. 


Quando Kishan se sentou, agarrei-o num forte abraço e beijei 
seu rosto. Ele me apertou por um momento antes de me soltar, 
relutante. Então tirou o cabelo que me cobria os olhos. 

. Lamento não ter trazido a mochila - desculpou-se. 
. Está tudo bem. Não havia como trazê-la com tudo o que 
tinha para fazer. 
. Nóóóós vaaaaamos pegáááá-la. 
. Que pena que eles não puderam trazer você também - 
murmurei, com sarcasmo. 
. Tíííínhamos que tessssstáááá-lo. Eleeee se saiiiiiu 
muuuuuuito beeeeeeem. 


Um dos morcegos desceu para buscar a mochila. Depois a 
largou em minhas mãos estendidas. 

. Obrigada. - Toquei o braço de Kishan. - Você está bem? 
. Estou. - Ele abriu um sorriso malicioso, apesar da 
exaustão. - Na verdade, posso ser convencido a fazer tudo de novo em 
troca de um beijo de verdade. 


Soquei-lhe o braço de leve. 

. Acho que um beijo no rosto foi suficiente, não concorda? 


Ele grunhiu, sem expressar sua opinião. 

. E agora? Como saímos daqui? 
. Nóóós vaaaamos leváááá-los - disse um dos morcegos. 


Dois deles se soltaram do teto e despencaram vários metros 
antes de abrir bruscamente as asas. Então as bateram com força, 


ganhando altitude, e pairaram acima de nós. Em seguida, desceram 
devagar. Pés com garras prenderam meus ombros e apertaram. 

. Manteeeeenhaaaaam-se imóóóóveis. 


Ouvi a advertência e decidi que era um bom conselho a seguir. 

Batendo as asas freneticamente, os morcegos levantaram voo, 
levando- -nos cada vez mais alto na árvore. Não era um passeio 
divertido, mas eu também reconhecia que isso nos pouparia várias 
horas de subida. Pensei que fôssemos subir direto, verticalmente, 
mas, em vez disso, os morcegos circulavam, ascendendo de forma 
lenta e constante. 

Por fim, percebi que o ambiente estava ficando cada vez mais 
claro. Distingui uma abertura, uma fenda que permitia que manchas 
alaranjadas de luz do sol se movessem pelas paredes. Uma brisa fresca 
roçou minha pele e senti o cheiro de árvore viva e nova, em vez do 
odor podre e bolorento de fungos, amônia e plantas cítricas 
queimadas. Nossos companheiros alados saíram pela abertura e, 
batendo as asas ruidosamente, colocaram-nos com cuidado num 
galho. Os galhos ali eram mais finos, mas ainda assim fortes o 
bastante para que nós dois caminhássemos neles. 

Com um aviso final de "Fiiiiiquem aleeeertas", eles voaram de 
volta para a árvore e nos deixaram por nossa própria conta. 

. Kells, jogue a mochila para mim. Quero tirar essas roupas 
pretas e calçar alguma coisa. 


Atirei a mochila para ele e me virei para que ele pudesse trocar 
de roupa. 

. É. Que pena que suas roupas de fada se foram. 
Desapareceram no éter do tigre. Era bom tê-las à mão. Felizmente o 
Sr. Kadam insistiu que trouxéssemos uns dois calçados para você, por 
precaução. 
. Kells? As roupas de fada estão na bolsa. 
. O quê? - Virei-me e deparei com Kishan despido da 
cintura para cima e desviei os olhos. - Como isso aconteceu? 
. Não sei. Magia de fadas, eu acho. Agora vire para lá, a 
menos que queira me ver trocar de roupa. 



Com o rosto vermelho, virei-me rapidamente. O sol estava se 
pondo e decidimos comer e descansar. Eu estava exausta, mas tinha 
medo de dormir num galho, ainda que ele tivesse o dobro da largura 
de um colchão kingsize. 

Eu estava sentada, imóvel, no meio do galho. 

. Tenho medo de cair. 
. Você está cansada. Precisa dormir. 
. Não vou conseguir. 
. Vou segurá-la. Você não vai cair. 
. E se você cair? 
. Gatos não caem de árvores, a menos que queiram. Venha 
cá. 


Kishan me envolveu com um braço e apoiou minha cabeça 
com o outro. Não pensei que fosse conseguir, mas dormi. 

Na manhã seguinte, bocejei, esfreguei os olhos sonolentos e 
dei de cara com Kishan me observando. Ele tinha um braço em torno 
da minha cintura e minha cabeça descansava em seu outro braço. 

. Você não dormiu? 
. Cochilei. 
. Há quanto tempo você está acordado? 
. Uma hora mais ou menos. 
. Por que não me acordou? 
. Você precisava descansar. 
. Ah. Bem, obrigada por não me deixar cair. 
. Kells, quero dizer uma coisa. 
. O quê? - Apoiei o rosto em meu punho. - O que é? 
. Você... você é muito importante para mim. 
. Você também é muito importante para mim. 
. Não. Não é isso que quero dizer. Quero dizer... eu sinto... 
e tenho motivos para acreditar... que podemos vir a significar algo um 
para o outro. 
. Você já significa algo para mim. 
. Certo, mas não estou falando de amizade. 
. Kishan... 



. Não existe a menor possibilidade, nem uma chance 
remota, de que você possa um dia se permitir me amar? Você não 
sente absolutamente nada por mim? 
. É claro que sinto. Mas... 
. Mas nada. Se Ren não estivesse na jogada, você 
consideraria ficar comigo? Eu seria alguém de quem você poderia vir 
a gostar? 


Coloquei a mão em seu rosto. 

. Kishan, eu já gosto de você. Eu já o amo. 


Ele sorriu e se aproximou um pouco mais. Em minha cabeça, 
os alarmes começaram a disparar, dei uma guinada para trás e tive a 
sensação de que estava caindo. Agarrei seu braço como se a minha 
vida dependesse disso. 

Ele me segurou com firmeza e observou o meu rosto. 
Certamente percebeu meu olhar de pânico e reconheceu que não se 
devia ao fato de ter perdido o equilíbrio. Kishan reprimiu suas 
emoções, recostou-se e disse baixinho: 

. Eu nunca a deixaria cair, Kells. 


Eu não estava lidando muito bem com aquilo e o melhor que 
pude lhe dizer foi: 

. Sei que não. 


Ele me soltou e se levantou para providenciar nosso café da 
manhã. 

Os degraus agora eram mais estreitos e contornavam a parte 
externa da árvore. O tronco também era muito menor. Levávamos 
apenas 30 minutos para circundá-lo. Após algumas horas apavorantes 
nos degraus que se estreitavam cada vez mais, deparamos com uma 
corda trançada que pendia do que parecia ser uma casa na árvore. 

Eu queria continuar subindo a escada, mas Kishan quis escalar 
a corda. Ele concordou em subir pelos degraus por mais meia hora e, 
se não encontrássemos nada, voltaríamos para a corda. Foi uma 
discussão inútil no fim das contas porque, não mais do que cinco 
minutos depois, os degraus tornaram-se apenas protuberâncias 
nodosas na lateral do tronco da árvore, desaparecendo por completo 
em seguida. 


Quando começávamos a descer até a corda, eu disse: 

. Não creio que tenha força suficiente nos braços para subir 
toda essa altura. 
. Não se preocupe com isso. Eu tenho força suficiente para 
nós dois. 
. O que exatamente você tem em mente? 
. Vai ver. 


Quando chegamos à corda, Kishan pegou a mochila de mim e 
a pendurou em suas costas. Então fez sinal para que eu me 
aproximasse. 

. O quê? 


Ele apontou para o chão diante dele. 

. O que você vai me obrigar a fazer? 
. Você vai envolver meu pescoço com os braços e depois 
passá-los pelas alças superiores da mochila. 
. Está bem, mas não tente nada engraçado. Eu sinto muitas 
cócegas. 


Kishan levantou meus braços, que envolveram seu pescoço, e 
me içou do chão, deixando seu rosto muito perto do meu. Ele ergueu 
uma sobrancelha. 

. Se eu tentasse alguma coisa, juro a você que não seria para 
arrancar uma risada. 


Ri de nervosa, no entanto seu rosto estava compenetrado, 
sério. 

. Beleza. Vamos nessa - murmurei. 


Senti seus músculos tensos quando Kishan se preparou para 
saltar, mas ele olhou para baixo, para mim, e seu olhar parou em 
meus lábios. Ele baixou a cabeça e depositou um beijo quente e suave 
na lateral da minha boca. 

. Kishan. 
. Desculpe. Não pude resistir. Você está presa e pelo menos 
dessa vez não pode fugir de mim. Além disso, sua boca é tentadora. 
Você devia ficar feliz por eu ter me segurado tanto assim. 
. Sei. 



Com isso, ele saltou no ar. Deixei escapar um gritinho com seu 
movimento súbito. Devagar, ele começou a subir pela corda. Foi nos 
içando aos poucos, pisando em galhos quando podia, às vezes 
mantendo uma das mãos na corda e a outra num galho, para se 
equilibrar. O tempo todo Kishan tomava cuidado para não me 
machucar. Sem contar os solavancos, o fato de oscilar a centenas de 
metros de altura e de darmos saltos capazes de revirar o estômago, eu 
me sentia bastante confortável. Na verdade, estava um pouquinho 
confortável demais ficar apertada junto ao corpo dele. 

Parece que homens do tipo Tarzan são o meu fraco. 

Quando alcançamos a porta da casa na árvore, Kishan subiu 
um pouco mais na corda e ficou parado, imóvel, enquanto eu 
cuidadosamente me soltava dele e pulava para o piso de madeira. 
Então ele tomou impulso, balançou-se e aterrissou com um floreio. 
Dava para ver que estava se divertindo. 

. Pare de se exibir, pelo amor de Deus. Você percebe a 
altura em que estamos e que você poderia despencar para uma morte 
horrível a qualquer momento? Está agindo como se esta fosse uma 
aventura superdivertida. 
. Não faço a menor idéia da altura em que estamos - 
replicou. - E não dou a mínima. Mas, sim, estou me divertindo. Gosto 
de ser homem o tempo todo. E gosto de estar com você. 


Ele envolveu minha cintura com as mãos e me puxou para 
perto de si. 

. Ei - resmunguei, desembaraçando-me dele o mais rápido 
possível. 


Eu não podia censurá-lo pela parte de ser humano e não sabia 
o que dizer pela parte de estar comigo, então não falei nada. 
Sentamo-nos no chão de madeira da casa da árvore e vasculhamos 
todas as anotações do Sr. Kadam. Lemos todas elas duas vezes e 
esperamos, mas ainda assim nada aconteceu na casa. Essa era 
supostamente a casa dos pássaros, mas eu não via nenhum. Talvez 
estivéssemos no lugar errado. Comecei a me sentir ansiosa. 

. Olá? Tem alguém aqui? - minha voz ecoou. 



O som de asas batendo e uma grasnada foram a minha 
resposta. No alto, no canto da casa da árvore, vimos um ninho 
encoberto. Dois corvos espiavam pela borda, vigiando-nos. Eles se 
comunicavam com um som seco, um ruído que vinha do fundo de 
suas gargantas. 

Os pássaros deixaram seu poleiro e circularam a casa, fazendo 
acrobacias no ar. Deram saltos mortais e até voaram de cabeça para 
baixo. Cada volta deixava-os mais perto de nós. Kishan soltou seu 
chakram e o ergueu como uma faca. 

Pus minha mão sobre a dele e sacudi a cabeça levemente. 

. Vamos esperar e ver o que eles fazem. - Voltei-me para 
eles. - O que vocês querem de nós? 


Os pássaros pousaram a alguns metros de onde nos 
encontrávamos. Um girou a cabeça e me olhou com um olho negro. 
Uma língua também negra surgiu do bico e provou o ar quando o 
pássaro se aproximou. 

Ouvi uma voz áspera dizer: 

. Querendinós? 
. Você entende o que falo? 


Os dois pássaros moveram a cabeça para cima e para baixo, 
parando de vez em quando para alisar as penas. 

. O que estamos fazendo aqui? Quem são vocês? 


Os pássaros, saltitando, aproximaram-se um pouco mais. Um 
deles disse "Hughhn", e eu podia jurar que o outro disse "Muunann". 

. Vocês são Hugin e Munin? - perguntei, incrédula e 
maravilhada. 


As cabeças se moveram para cima e para baixo novamente. 
Eles saltaram, chegando ainda mais perto. 

. Vocês roubaram minha pulseira? 
. E o amuleto? - acrescentou Kishan. 


As cabeças fizeram que sim. 

. Bem, queremos tudo de volta. Vocês podem ficar com os 
pães de mel. Já devem tê-los comido mesmo. 



Os pássaros grasnaram, estalaram os bicos sonoramente e 
bateram as asas em nossa direção. Penas arrepiadas se inflaram, 
fazendo os pássaros parecerem bem maiores do que eram. 

Cruzei os braços na frente do peito. 

. Não vão devolvê-los, hein? Isso é o que veremos. 


Os pássaros, hesitantes, dançaram, aproximando-se ainda 
mais, e um pulou para o meu joelho. Kishan ficou imediatamente 
preocupado. 

Pus a mão em seu braço. 

. Se eles são Hugin e Munin, sussurram pensamentos e 
lembranças nos ouvidos de Odin. Podem querer se empoleirar em 
nossos ombros e nos falar. 


Aparentemente eu estava certa, pois no minuto em que 
inclinei a cabeça para um lado, um dos pássaros bateu as asas e se 
acomodou em meu ombro. Aproximou o bico de meu ouvido e 
esperei ouvi-lo falar. Em vez disso, senti uma curiosa sensação, de 
algo sendo puxado em mim. O pássaro bicou delicadamente alguma 
coisa em meu ouvido, mas eu não senti nenhuma dor. 

. O que você está fazendo? - perguntei. 
. Pensamentosemperrados. 
. O quê? 
. Pensamentosemperrados. 


Senti outro puxão, um estalido e então Hugin se afastou, 
saltitando, com um fio diáfano, semelhante a uma teia, pendendo do 
bico. 

Cobri a orelha com uma das mãos. 

. O que você fez? Roubou parte do meu cérebro? Fiquei 
com alguma lesão cerebral? 
. Pensamentos emperrados! 
. O que isso significa? 


O fio que pendia de seu bico se dissipou lentamente quando o 
pássaro estalou o bico. Fiquei ali sentada, observando, boquiaberta de 
pavor, e me perguntei o que havia sido feito comigo. Será que ele 
roubou uma lembrança? Vasculhei o cérebro tentando lembrar de 
todas as coisas importantes. Procurei algum buraco, algum vazio. Se o 


pássaro tinha mesmo roubado uma lembrança, eu não fazia a menor 
idéia de qual poderia ser. 

Kishan tocou minha mão. 

- Você está bem? Como está se sentindo? 
- Estou bem. É só... 


Minhas palavras morreram quando notei uma mudança em 
minha cabeça. Alguma coisa estava acontecendo. Algo se arrastava 
pela superfície da mente, como um rodo sobre vidro ensaboado. Eu 
podia sentir uma camada de confusão, desordem mental e sujeira, na 
falta de uma palavra melhor, descascando como pele morta depois de 
uma queimadura de sol. Era como se preocupações e medos 
aleatórios e pensamentos melancólicos estivessem antes entupindo os 
poros da minha consciência. 

Por um momento pude ver tudo o que precisava fazer com 
perfeita clareza. Eu soube que estávamos quase alcançando nossa 
meta. Soube que haveria protetores ferrenhos guardando o Lenço. 
Soube o que era o Lenço e o que ele era capaz de fazer. Naquele 
momento, soube como iríamos usá-lo para salvar Ren. 

Munin saltitava de um lado para outro diante de Kishan, 
esperando a sua vez. 

- Está tudo bem, Kishan! Vá em frente. Deixe-o pousar em 
seu ombro. Não vai machucá-lo. Acredite em mim. 

Ele me olhou, duvidando, mas assim mesmo inclinou a cabeça 
para um lado. Observei, fascinada, Munin bater as asas e pousar no 
ombro de Kishan. O pássaro manteve as asas abertas, batendo-as 
preguiçosamente enquanto cumpria sua tarefa no ouvido de Kishan. 

- Munin está fazendo a mesma coisa com Kishan? - 
perguntei a Hugin. 

O pássaro sacudiu a cabeça e mudou de um pé para o outro. 
Então começou a alisar as penas. 

- Então qual é a diferença? O que ele vai fazer? 
- Espere para ver. 
- Espere para ver? 


O pássaro assentiu. 


Munin saltou para o chão e segurou um fio negro e fino do 
tamanho aproximado de uma minhoca. Então abriu o bico e o 
engoliu. 

- Hum... isso parece diferente. Kishan? O que aconteceu? 
Você está bem? 
- Estou bem. Ele... ele me mostrou - respondeu Kishan 
baixinho. 
- Mostrou o quê? 
- Ele me mostrou minhas lembranças. Em todos os 
detalhes. Eu vi tudo o que aconteceu. Vi tudo o que se passou comigo 
e com Yesubai novamente. Vi meus pais, Kadam, Ren... tudo. Mas 
com uma grande diferença. 


Tomei sua mão na minha. 

- Que diferença? 
- Aquele fio negro que você viu... é difícil explicar, mas é 
como se o pássaro tivesse tirado um par de óculos de sol muito 
escuros dos meus olhos. Vi tudo como se passou de fato, como 
aconteceu de verdade. Não mais apenas na minha percepção. Era 
como se eu fosse um observador externo. 
- A lembrança agora é diferente? 
- Não é diferente... é mais clara. Pude ver que Yesubai era 
uma garota doce que gostava de mim, mas que foi, sim, encorajada a 
me procurar. Ela não me amava da mesma maneira que eu a amava. 
Tinha medo do pai. Ela o obedecia em tudo, no entanto também 
estava desesperada para sair de casa. No fim, foi o pai quem a matou. 
Ele a empurrou violentamente... com força suficiente para quebrar-
lhe o pescoço. 


Eu ouvia atenta, chocada também. 

. Como pude não perceber seu medo, sua ansiedade? - Ele 
esfregou o maxilar. - Ela os escondeu bem. Lokesh tirou vantagem de 
meus sentimentos por Yesubai. Eu devia ter visto quem ele era desde 
o início, mas estava cego, apaixonado. Como pude não enxergar isso 
antes? 
- O amor às vezes leva a gente a fazer coisas malucas. 
- E você? O que viu? 



- Eu acho que tive o cérebro aspirado. Meus pensamentos 
estão mais claros, assim como as suas lembranças. Na verdade, agora 
sei como pegar o Lenço e o que vem em seguida. Mas vamos por 
partes. 


Levantei-me de um salto e ergui o ninho enfiado no canto da 
casa da árvore. Os dois pássaros pularam, grasnando com irritação. 
Eles voaram até onde eu estava e bateram as asas no meu rosto. 

- Sinto muito, mas a culpa é sua mesmo. Foram vocês que 
clarearam a minha mente. Além disso, estas coisas são nossas. 
Precisamos delas. 


Peguei a câmera, a pulseira e o amuleto no ninho. Kishan me 
ajudou a colocar a pulseira e a corrente com o amuleto e enfiou a 
câmera na mochila. Os pássaros me olhavam, zangados. 

- Talvez possamos lhes dar outras coisas para compensar 
sua perda - sugeri. 


Kishan vasculhou a mochila e pegou um anzol, um bastão 
fosforescente e uma bússola e os colocou no ninho. Depois de eu 
devolver o ninho ao seu lugar, os pássaros voaram até lá para 
inspecionar seus novos tesouros. 

- Obrigada aos dois! Vamos, Kishan. Venha comigo. 

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