quinta-feira, 6 de março de 2014
Capítulo 19 - Coisas ruins
Tomamos o café da manhã com os silvanos outra vez e
recebemos roupas novas de presente. Ganhamos camisas leves, calças
cáqui com um brilho sutil e botas forradas. Perguntei se eram de
couro e as pacíficas criaturas não sabiam do que eu estava falando.
Quando expliquei, pareceram chocadas e disseram que nenhum
animal jamais havia sido ferido ali em sua terra. Disseram que as
fadas teciam todas as suas roupas e que não havia na Terra nenhum
material tão fino, macio e bonito.
Concordei. Elas também acrescentaram que, se você estiver
viajando pela terra dos silvanos e pendurar roupas feitas por fadas no
galho de uma árvore à noite, as fadas limparão e consertarão as
roupas enquanto a pessoa dorme. Agradecemos os presentes e
desfrutamos a refeição. Em seguida Fauno apareceu carregando um
recém-nascido.
. Antes de irem, gostaríamos de lhe pedir um favor - disse
ele. A família do novo bebê quer saber se você poderia escolher um
nome para seu filho.
. Tem certeza? - perguntei, confusa. - E se eu der um nome
de que eles não gostem?
. Eles ficarão honrados com qualquer nome que der à
criança.
Antes que eu pudesse dizer mais uma palavra de protesto, ele
colocou o minúsculo bebê em meus braços. Um pequeno par de olhos
verdes me fitou do meio da manta macia. Ele era lindo. Eu o ninei e
instintivamente comecei a falar de forma amorosa com ele. Estendi
um dedo para tocar de leve seu nariz e a penugem macia e prateada
em sua cabeça. O bebê, muito mais ativo do que um recém-nascido
humano, estendeu a mão para agarrar um cacho do meü cabelo e o
puxou.
Kishan delicadamente tirou meu cabelo do alcance da criança.
Em seguida jogou o restante do cabelo sobre meu ombro. Então tocou
a mão do bebê, que agarrou seu dedo.
. Ele tem força na mão - disse Kishan, rindo.
. Tem, sim. - Olhei para Kishan. - Gostaria de chamá-lo de
Tarak, em homenagem a seu avô, se você não se importar.
Os olhos dourados de Kishan cintilaram.
. Acho que ele iria gostar de ter um xará.
Quando disse a Fauno que gostaria de chamar o bebê de
Tarak, os silvanos deram vivas. Tarak bocejou, sonolento, indiferente
a seu nome e começou a chupar o dedo.
Kishan passou o braço pelos meus ombros e sussurrou:
. Você vai ser uma boa mãe, Kelsey.
. Neste momento estou mais para tia. Aqui. Sua vez.
Kishan acomodou a criaturinha na curva de seu braço e falou
baixinho com ela em sua língua nativa. Fui trocar de roupa e trançar o
cabelo. Quando voltei, ele embalava o bebê adormecido nos braços e
olhava, pensativo, para seu rosto diminuto.
. Pronto para ir?
Ele me olhou com uma expressão terna.
. Claro. Vou trocar de roupa também.
Ele passou o bebê para a família. Antes de sair, roçou um dedo
no meu rosto e me dirigiu um sorriso. Seu toque era hesitante e doce.
Quando voltou, nos despedimos e pegamos nossa mochila, que agora
continha meu vestido de fada, vários pães de mel e um frasco de
néctar de flores. Então nos pusemos a andar, seguindo para leste.
Kishan parecia saber o caminho, portanto ia na frente. Com
freqüência eu o pegava me olhando com um estranho sorriso no
rosto. Depois de cerca de uma hora de caminhada, perguntei:
. O que deu em você? Está agindo diferente.
. Estou?
. Sim. Poderia dizer por quê?
Ele hesitou por um longo momento e então suspirou.
. Um dos meus sonhos foi com você. Você estava recostada
numa cama, cansada, mas feliz e linda. Tinha um menino recém-
nascido de cabelos escuros nos braços. Você o chamou de Anik. Era
seu filho.
. Ah. - Isso explica por que ele estava agindo diferente
comigo. - Havia... mais alguém lá comigo?
. Havia, mas eu não conseguia ver quem.
. Sei.
. Ele parecia conosco, Kelsey. Quero dizer... ou ele era de
Ren ou... era meu.
O quê? Ele está dizendo o que acho que está dizendo? Imaginei
um doce bebezinho com os olhos azuis de Ren; num lampejo, os olhos
mudaram de cor e se tornaram tão dourados quanto o deserto do
Arizona. Mordi o lábio, nervosa. Isso não é bom. Será que Ren não vai
sobreviver? Será que, de alguma forma, vou ficar com Kishan? Eu
sabia que Kishan gostava de mim, mas não conseguia imaginar um
futuro no qual eu o escolhesse e não a Ren. Talvez não me fosse dada a
opção. Preciso saber!
. E você... hã... viu os olhos do bebê?
Ele fez uma pausa e olhou atentamente o meu rosto antes de
dizer:
. Não. Os olhos dele estavam fechados. Ele estava
dormindo.
- Ah.
Recomecei a caminhar. Ele me deteve e tocou meu braço.
. Uma vez você me perguntou se eu queria ter um lar e uma
família. Eu não pensava que fosse querer isso sem Yesubai, mas,
vendo você daquele jeito no meu sonho, com aquele bebezinho... sim.
Eu quero. Quero aquele bebê. Quero... você. Eu o vi e me senti...
possessivo e orgulhoso. Quero a vida que vi em meu sonho mais do
que tudo, Kells. Achei que você deveria saber disso.
Concordei, calada, e me senti pouco à vontade enquanto ele
me observava.
. Quer me contar o que você sonhou? - perguntou.
Sacudi a cabeça e brinquei com a bainha da minha camisa de
fada.
. Não. Não mesmo.
Ele resmungou e seguiu adiante.
Um bebê? Eu sempre quis ser mãe e ter uma família, mas
nunca imaginei que teria dois homens - irmãos, ainda por cima -
disputando minha atenção. Se Ren, por algum motivo, não sobreviver...
não. Vou parar com essa linha de raciocínio agora mesmo. Ele vai
sobreviver! Farei tudo o que puder para encontrar Lokesh. Se isso
representa perigo para mim, que seja.
Caminhamos a tarde toda, fazendo pausas para descansar ao
longo do percurso. Eu estava abalada com a confissão de Kishan. Não
queria ter que lidar com isso, não queria magoá-lo. Havia tantas
questões não resolvidas. As palavras se formavam em minha mente,
no entanto eu não parecia encontrar coragem para tocar no assunto.
Meu coração gritava que queria Ren, porém minha mente me
lembrava de que nem sempre conseguimos o que queremos. Eu
queria meus pais de volta também, e isso era impossível. Meus
pensamentos borbulhavam como água fervente, mas explodiam no
vazio vaporoso quando chegavam à superfície.
Não falamos muito durante o trajeto, exceto para dizer
"Cuidado com aquele tronco" ou "Não pise na poça". Estar com
Kishan agora era diferente, constrangedor. Ele parecia esperar alguma
coisa de mim, algo que era mais do que eu podia dar a ele.
Ele nos conduziu a uma série de morros e seguiu para uma
pequena caverna na base de um deles. Quando chegamos, espiei sua
profundidade sombria.
. Ótimo. Outra caverna. Não gosto de cavernas. Até agora
minhas experiências com elas não foram nada boas.
. Vai ficar tudo bem - replicou ele. - Confie em mim, Kells.
. Como quiser. Por favor, você primeiro.
Ouvi um zumbido que foi aumentando à medida que
penetrávamos mais na caverna. Estava escuro ali. Peguei minha
lanterna e corri o facho de luz pelo lugar. Pilares estreitos de
luminosidade rompiam o solo acima em vários lugares, iluminando as
rochas e o chão. Alguma coisa roçou meu rosto. Abelhas! A caverna
estava cheia de abelhas. Das paredes pendiam favos de mel. Era como
se tivéssemos entrado numa colmeia gigante. No meio da caverna,
num pedestal, encontrava-se um objeto de pedra com um buraco no
topo que não era muito diferente de uma colméia.
. A pedra ônfalo!
Uma abelha desceu pela gola da minha camisa e me picou.
-Ai!
Esmaguei o inseto com a mão.
. Shh, Kells. Fique quieta. Elas vão nos incomodar menos se
nos movermos devagar e em silêncio e fizermos logo o que viemos
fazer.
. Vou tentar.
As abelhas enxameavam, zangadas, à nossa volta. Precisei
lançar mão de toda a minha determinação para não afastá-las
violentamente de mim. Várias pousaram em minhas roupas, mas
parecia que os ferrões não conseguiam penetrar o tecido das fadas.
Senti uma picada no pulso e encolhi as mãos dentro das mangas
compridas, mantendo as aberturas fechadas. Aproximei-me da pedra
e olhei lá dentro.
. O que eu faço? - perguntei.
. Tente usar seu poder.
Kishan havia sido picado várias vezes no rosto; na verdade, seu
supercílio já estava inchando. Libertei minhas mãos das mangas e
estremeci quando uma abelha aproveitou a oportunidade para subir
pelo meu braço. Coloquei as mãos nas laterais da pedra e instei o
calor a subir de minha barriga. Uma ardência disparou pelos meus
braços até chegar à pedra.
A pedra se tornou amarela, depois laranja e, em seguida,
vermelho vivo. Ouvi um som sibilante vindo de seu interior e senti o
cheiro de fumaça. Quando um gás opaco começou a encher a caverna,
as abelhas foram se tornando lentas e, por fim, tombaram no chão da
caverna como jujubas gordas e dormiram.
. Acho que talvez você tenha que aspirar os vapores, Kells,
feito aqueles oráculos de que o Sr. Kadam falou.
. Certo. Vamos lá.
Inclinando-me sobre a pedra, inspirei fundo. Vi estrelas
cadentes e cores. A imagem de Kishan tornou-se distorcida, com seu
corpo retorcido e alongado. Então fui sugada por uma poderosa visão.
Quando acordei, estávamos novamente na selva e Kishan aplicava em
minhas picadas uma substância pegajosa e verde. Dizer que ela
exalava um cheiro forte seria um eufemismo. O fedor permeava meu
cabelo, minhas roupas e tudo à nossa volta.
. Argh! Que coisa nojenta! O que é isso?
Ele estendeu um frasco em minha direção.
. Os silvanos nos deram isso quando eu lhes disse que
encontraríamos muitas abelhas. Eles nunca ouviram falar de abelhas
que picam, mas usam este unguento nas árvores para reparar o dano
quando um galho é quebrado pelo vento. Acreditaram que ajudaria.
. Quando você contou a eles que iríamos a uma caverna de
abelhas?
. Quando você estava trocando de roupa. Eles explicaram
que essa caverna ficava fora de seus domínios.
. O cheiro é horrível.
. Mas qual é a sensação?
. É... boa. Calmante e refrescante.
. Então imagino que você possa tolerar o cheiro.
. Acho que sim.
. Você conseguiu? Viu a árvore?
. Sim. Vi a árvore e as quatro casas e algo mais também.
. O que mais?
. Como você disse antes, tem uma serpente no jardim. Para
ser específica, é uma serpente muito grande enrolada na base da
árvore, impedindo que se tenha acesso a ela.
. É um demônio?
Refleti.
. Não. É só uma serpente excepcionalmente grande com
um dever a cumprir. Eu sei como chegar lá. Siga-me e no caminho
decidiremos o que fazer.
. Está bem. Antes, porém... você se importa?
Ele estendeu o unguento e comecei a espalhar a substância em
seu pescoço. Ele tirou a camisa para que eu tivesse acesso às picadas
vermelhas e inchadas na parte superior de seu tórax e nas costas. Eu
rapidamente me coloquei atrás dele para esconder o rubor em meu
rosto. Embora tentasse não me demorar na tarefa, não pude deixar de
notar que sua pele cor de bronze era macia e quente.
Quando dei a volta, ele jogou o cabelo para trás, afastando-o
do rosto para que eu pudesse espalhar a substância viscosa e verde em
suas bochechas e na testa. Havia uma picada grande perto do lábio
superior. Toquei-a de leve.
-Dói?
Meu olhar subiu de seus lábios para os olhos. Ele me olhava de
um jeito que me fez corar.
. Sim - disse ele baixinho.
Era óbvio que não estava se referindo à picada, então eu não
disse nada. Podia sentir o calor de seu olhar no meu rosto enquanto
eu terminava rapidamente com seu lábio e queixo. Afastei-me dele o
mais rápido possível e recoloquei a tampa no frasco, mantendo-me de
costas enquanto ele vestia a camisa. Comecei a caminhar e ele me
alcançou, acompanhando meu ritmo.
Andamos por mais uma ou duas horas e montamos
acampamento quando o sol se punha. Naquela noite Kishan quis
ouvir outra história, então lhe contei uma das aventuras de
Gilgamesh.
. Gilgamesh era um homem muito inteligente. Tão
inteligente que encontrou uma forma de entrar furtivamente no reino
dos deuses. Vestiu um disfarce e fingiu que estava incumbido de uma
tarefa de grande importância. Por meio de perguntas astutas, ele
descobriu o esconderijo da planta da eternidade.
. O que é a planta da eternidade?
. Não tenho certeza. Talvez fossem folhas de chá ou alguma
coisa que se colocava na salada ou na comida. Ou talvez uma erva ou
até mesmo uma droga, como o ópio, mas a questão é que ele a
roubou. Quatro dias e quatro noites ele correu sem parar nem para
descansar a fim de escapar da ira dos deuses. Quando descobriram
que a planta havia sido roubada, ficaram furiosos e anunciaram que
haveria uma recompensa para quem conseguisse deter Gilgamesh. Na
quinta noite, Gilgamesh estava tão cansado que teve que se deitar
para descansar, mesmo que apenas por alguns instantes.
Tomei fôlego e continuei:
. Enquanto ele dormia, uma cobra em sua caçada noturna
passou por ele e encontrou a planta fragrante, que Gilgamesh havia
colocado numa pequena bolsa de pelo de coelho. Pensando ter
conseguido facilmente um coelho como jantar, a cobra engoliu a
bolsa inteira. Na manhã seguinte, tudo o que Gilgamesh encontrou
foi a pele da cobra. Essa foi a primeira vez que uma cobra trocou de
pele. A partir daí, as pessoas dizem que as cobras têm uma natureza
eterna. Quando troca de pele, ela morre e nasce de novo.
Fiz uma pausa. Kishan estava calado.
. Ficou acordado desta vez? - perguntei.
. Fiquei. Gostei dessa história. Durma bem, bilauta.
. Você também.
Mas fiquei acordada por muito tempo. A imagem de um bebê
de olhos dourados me tirou o sono.
Levamos dois dias para encontrar o que eu estava procurando. Eu
sabia que a árvore ficava num vale amplo e que, se subíssemos entre
dois picos, nós a veríamos. Chegamos à base dos picos no primeiro
dia e passamos quase todo o segundo dia escalando. Num mirante,
finalmente olhamos para baixo.
Estávamos num ponto tão elevado que as nuvens obscureciam
a visão. O vento rompeu o manto das nuvens e o vale pareceu ser uma
floresta escura. As árvores eram tão altas que chegavam à altura da
montanha. Em minha visão da pedra ônfalo, eu tinha visto apenas
uma árvore com um tronco enorme.
Apesar de as coisas parecerem diferentes em minha visão,
descemos para o vale. A medida que prosseguíamos, fiquei chocada
ao perceber que o que eu estava vendo não era uma floresta com
muitas árvores - e sim os galhos de uma árvore gigantesca, uma
árvore cujos galhos se estendiam a uma altura maior que a montanha.
Quando comentei isso com Kishan, ele me lembrou da pesquisa do
Sr. Kadam. Peguei os papéis na mochila e li enquanto andávamos.
. Ele diz aqui que é uma árvore do mundo gigante com
raízes que descem ao submundo e folhas que tocam o céu. Supõe-se
que tenha mais de 300 metros de largura e centenas de metros de
altura. Acho que é esta mesmo.
. Parece que sim - respondeu Kishan, simplesmente.
Quando por fim pisamos no solo gramado do vale, seguimos
um galho gigantesco até o tronco. Como o sol não conseguia penetrar
a copa densa acima, ali embaixo era escuro, frio e sossegado.
O vento soprava através das folhas imensas, que batiam nos
galhos como roupas no varal. Ruídos estranhos e apavorantes
assaltavam nossos ouvidos. Rangendo e gemendo, o vento encontrava
maneiras de soprar acima e através dos poderosos galhos, fazendo
parecer que estávamos andando em meio a uma floresta assombrada.
Kishan se aproximou de mim para segurar minha mão. Aceitei
seu gesto, grata, e tentei ignorar a sensação de estar sendo vigiada.
Kishan sentia o mesmo e disse que era como se estranhas criaturas
estivessem nos estudando de cima. Tentei achar graça.
. Imagine o tamanho das ninfas que nasceriam desta
árvore.
Minha intenção fora fazer piada, mas a possibilidade de que
isso pudesse ser verdade fez com que nós dois olhássemos para cima,
desconfiados.
Horas mais tarde, finalmente alcançamos o tronco. Ele se
estendia como um enorme muro de madeira para além do nosso
campo de visão. O galho mais próximo estava a dezenas de metros de
altura. Era alto demais para que o alcançássemos e não tínhamos
nenhum equipamento de escalada.
. Sugiro que acampemos aqui na base e comecemos a
contorná-la de manhã bem cedo - disse Kishan. - Talvez possamos
encontrar um galho mais baixo ou uma forma de escalá-la.
. Parece bom para mim. Estou exausta.
Ouvi um barulho de asas e fiquei surpresa ao ver um corvo
negro pousar no chão perto de nosso acampamento. Ele grasnou para
nós e bateu as asas ruidosamente ao levantar voo. Não pude deixar de
pensar que esse podia ser um mau agouro, mas preferi não expressar
minhas preocupações a Kishan.
Quando ele pediu uma história naquela noite, contei uma que
havia lido num livro que o Sr. Kadam me dera.
. Odin é um dos deuses do povo nórdico. Ele tem dois
corvos chamados Hugin e Munin. Corvos são ladrões notórios e esses
dois corvos de estimação eram enviados pelo mundo todo para roubar
para Odin.
. O que eles pegavam?
. Ah, esse é o aspecto interessante. Hugin roubava
pensamentos e Munin, lembranças. Odin os mandava sair cedo pela
manhã e eles retornavam à noite. Empoleiravam-se nos ombros dele e
sussurravam em seus ouvidos os pensamentos e as lembranças que
haviam roubado. Dessa maneira, ele sabia tudo o que acontecia e as
idéias e intenções de todos.
. Seria conveniente tê-los numa batalha. Você saberia que
movimentos o inimigo planeja.
. Exatamente. E era o que Odin fazia. Mas um dia Munin
foi apanhado por um traidor. Quando Hugin voltou para sussurrar
pensamentos na mente de Odin, este imediatamente os esqueceu.
Naquela noite, um inimigo entrou furtivamente no palácio e derrotou
Odin. Depois disso, as pessoas deixaram de acreditar nos deuses.
Hugin fugiu e ambos os pássaros desapareceram. A lenda dos corvos
de Odin é uma das razões por que se acredita que ver um corvo é mau
agouro.
. Kells, você tem medo de que o corvo roube suas
lembranças? - perguntou Kishan.
. Minhas lembranças são o que possuo de mais precioso
agora. Eu faria qualquer coisa para protegê-las, mas não, não tenho
medo do corvo.
. Durante muito tempo eu teria dado qualquer coisa para
ter minhas lembranças apagadas. Pensava que, se pudesse esquecer o
que aconteceu, talvez eu fosse capaz de dar continuidade à minha
vida.
. Mas você não ia querer esquecer Yesubai, assim como eu
não quero esquecer Ren nem os meus pais. É triste lembrar, mas faz
parte de quem somos.
. Humm. Boa noite, Kelsey.
. Boa noite, Kishan.
Na manhã seguinte, quando arrumávamos as coisas para começar o
dia, percebi que a pulseira que Ren me dera havia desaparecido.
Kishan e eu procuramos por toda parte, mas não conseguimos
encontrá-la.
. Kells, a câmera também sumiu, assim como todos os pães
de mel.
. Ah, não! O que mais?
Ele olhou diretamente para o meu pescoço.
. O quê? O que foi?
. O amuleto sumiu.
. O que aconteceu? Como podemos ter sido roubados no
meio do nada? Como não senti alguém tirando coisas do meu corpo
enquanto eu dormia? - gritei, descontrolada.
. Desconfio de que tenha sido o corvo.
. Mas isso não é real! É só um mito!
. Você mesma disse que os mitos com freqüência se
baseiam em fatos reais. Talvez o corvo os tenha levado. Eu teria
acordado se tivesse sido uma pessoa. Um pássaro eu ignoro enquanto
durmo.
. O que vamos fazer agora?
. A única coisa que podemos fazer. Prosseguir. Ainda temos
nossas armas e o Fruto Dourado.
. Sim, mas o amuleto!
. Vai ficar tudo bem, Kells. Tenha um pouco de fé, lembra?
Como disse o Mestre do Oceano.
. Para você é fácil falar. Não teve sua única fotografia de
Yesubai tirada de você.
Ele me olhou em silêncio por um momento.
. A única fotografia que já tive de Yesubai é a que tenho na
mente.
. Eu sei, mas...
Ele colocou o dedo sob meu queixo e ergueu meu rosto.
. Você tem uma chance de ter o homem de volta. Não se
preocupe tanto com a fotografia.
. Tem toda a razão. Vamos em frente, então.
Escolhemos seguir pela esquerda do tronco e começamos a
caminhar. O tronco era tão colossal que eu mal podia ver sua curva na
distância.
. O que vai acontecer quando encontrarmos a serpente,
Kells?
. Não é uma serpente perigosa. Ela simplesmente guarda a
árvore. Pelo menos foi assim que pareceu pela pedra ônfalo. Se a
serpente sentir que temos uma razão legítima para passar, ela vai nos
liberar. Se não, vai tentar nos deter.
Uma ou duas horas depois, eu corria o dedo ao longo da casca
do tronco quando ele se moveu.
. Kishan! Você viu isso?
Ele tocou o tronco.
. Não estou vendo nada.
. Ponha sua mão sobre ele. Sinta bem... aqui. Está vendo? A
textura muda. Aí! Outra mudança! Ponha sua mão sobre a minha.
Consegue sentir agora?
. Sim.
Uma seção do tronco de pouco menos de dois metros começou
a se mover. Outro segmento acima dele se moveu na direção
contrária. Os padrões pareciam familiares, mas eu não conseguia
identificá-los. Era confuso, assim como ver a árvore gigante e tomá-la
por uma floresta inteira. O vento redemoinhava à nossa volta, como
se impelido por um imenso fole. Uma forte sucção de ar, seguida por
um vento forte, agitou a grama curta e fez o pelo dos meus braços
arrepiar.
Kishan olhou para cima e se imobilizou.
. Não se mexa, Kelsey.
O ar começou a se mover de forma mais intensa, como se o
fole estivesse sendo soprado mais depressa.
. O que foi, Kishan? - murmurei.
Um ruído farfalhante soou atrás de mim. Parecia que alguém
arrastava uma sacola pesada sobre um monte de folhas. Ramos
partiam, folhas estremeciam e galhos gemiam. Ouvi uma voz
profunda e sibilante.
. O que vocccêsss essstão fazendo na minha floresssta?
Virei-me lentamente e dei de cara com um gigantesco olho
que não piscava.
. Você é a guardiã da árvore do mundo?
. Sssssim. Por que vocccêsss essstão aqui?
Fui subindo, subindo e subindo o olhar. Agora eu sabia o que
tinha visto antes. A serpente gigante estava enroscada na árvore e os
segmentos de quase dois metros no tronco eram seu corpo, que
estava perfeitamente camuflado. Na verdade, enquanto eu observava,
seu corpo mudou de cor para combinar com o ambiente, como um
camaleão. Sua cabeça era tão grande quanto o Hummer de Ren e não
havia como saber qual era a extensão de seu corpo. Kishan deu um
passo à frente, parando ao meu lado e segurando minha mão. Percebi
que ele segurava o chakram com a outra mão.
. Estamos aqui para reivindicar o prêmio aéreo que
descansa no topo da árvore - declarei.
. Por que eu deveria deixá-lossss passssssar? Para que
preccccisam do Lenççççço Divino?
. O prêmio aéreo é um lenço?
. Ssssssssim.
. Bem, precisamos dele porque irá ajudar a quebrar a
maldição lançada sobre dois príncipes da índia e a salvar o povo de
seu país.
. Quem sssão essssssesssss príncccccipesssss?
. Este é Kishan. Seu irmão, Ren, foi seqüestrado.
A serpente gigante lançou várias vezes a língua na direção de
Kishan, que resistiu à inspeção bravamente. Eu teria saído correndo.
. Eu não conheçççço essssses irmãosssss. Voccccêssss não
podem passssssssar.
A imensa cabeça começou a se virar enquanto o pesado corpo
deslizava pelo chão. Senti um movimento semelhante em meu braço
e gritei:
. Espere!
A serpente voltou-se para mim e baixou a cabeça para me ver
melhor. Fanindra esticou suas dobras e deslizou pela minha nuca.
Então ergueu a cabeça na direção do olho gigantesco e projetou a
língua várias vezes para fora.
. Quem é esssssa?
. O nome dela é Fanindra. Pertence à deusa Durga.
. Durga. Ouvi falar dessssssa deusa. Essssssa ssssserpente é
dela?
. É. Fanindra está aqui para nos ajudar em nossa busca. A
deusa Durga nos enviou e nos forneceu armas.
. Essssstou vendo.
A guardiã examinou Fanindra por um longo momento, como
se ponderasse nosso destino. As duas serpentes pareciam estar se
comunicando silenciosamente entre si.
. Voccccêsss podem passssssar. Presssssinto que não
esssstão mal-intencccccionadossssss. Talvezzzzz vocêsssss tenham
ssssssuccccccessssssso. Talvezzzzzz ssssseja o ssssseu desssstino.
Quem sssssabe? Vocccccêssssss irão passssssar por quatro casassssss.
A casa dossssss pássssarosssss. A casa dasssss cabaççççassssssss. A
casa dasssss ssssssereiasssssss. E a casa dosssss morcccccegossssss.
Tenham cuidado. Para prosssssseguir, voccccccêssssss precccccisam
fazer asssss melhoressss esssssscolhasssss.
Kishan e eu fizemos uma mesura.
. Obrigada, Guardiã.
. Boa sssssorte para voccccêsssss.
A imensa serpente balançou o corpo pesado e a árvore enorme
roncou. A parte de seu corpo que estava enroscada no tronco se
moveu, separando-se e revelando uma passagem secreta e uma escada
oculta. Fanindra se enroscou na parte superior do meu braço e voltou
a seu estado dormente.
Kishan me puxou para a passagem. Tive tempo suficiente para
reconhecer que o chão estava coberto por serragem, quando a cobra
deslizou. Seu corpo tornou a fechar a passagem, selando-nos na raiz
negra da gigantesca árvore do mundo.
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