quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 18 - Coisas boas


Despertei ao amanhecer junto a uma fogueira crepitante. 
Kishan estava aquecendo as mãos. 

Virei-me e gemi. 

- Oi. 
- Oi. Como está se sentindo? 
- Hum... Na verdade, melhor. 

Ele resmungou. 

- Seu ferimento começou a cicatrizar assim que chegamos a 
este lugar. 
- Dormi por quanto tempo? 
- Cerca de 12 horas. Você se curou aqui quase tão depressa 
quanto Ren e eu do lado de fora. 

Estendi as pernas e fiquei aliviada. A dor era ruim, mas uma 
infecção era pior. Eu estivera de certa forma contando com o amuleto 
de Kishan para me curar, mas não estava funcionando como o Sr. 
Kadam dissera. Talvez o amuleto de Kishan fizesse algo diferente. Eu 
tivera sorte. 


. Estou faminta. O que temos para o café da manhã? - 
perguntei. 
. O que gostaria de comer? 
. Que tal panquecas com gotas de chocolate e um copo 
bem grande de leite? 
. Parece bom. Vou querer o mesmo. 


Kishan pediu ao Fruto Dourado que providenciasse nossa 
refeição, agachando-se ao meu lado para comer. Ainda me sentia 
fraca e, quando ele me puxou para mais perto, para que me apoiasse 
nele, não protestei. Ao contrário, ataquei, contente, minhas 
panquecas. 

. E então, Kishan, onde estamos? 
. Não tenho certeza. Cerca de um quilômetro e meio além 
do portão do espírito. 
. Você me carregou? 
. Sim. - Ele pousou o prato e passou o braço ao meu redor. - 
Tive medo de que você morresse. 
. Aparentemente, meu retorno dos mortos é um tema 
recorrente nestas cidades míticas. 
. Espero que esta seja a última vez que você chega tão 
perto. 
. Eu também. Obrigada. Por tudo. 
. De nada. A propósito, parece que posso manter a forma 
humana aqui, como Ren fez em Kishkindha. 
. E mesmo? E como está se sentindo? 
. Estranho. Não estou acostumado. Fico esperando o tigre 
assumir o controle. Ainda posso me transformar se quiser, mas não 
sou obrigado a isso. 
. O mesmo aconteceu com Ren. Bem, aproveite enquanto 
durar. Ren transformou-se de volta no instante em que deixamos 
Kishkindha. 


Ele murmurou algo e começou a vasculhar a mochila. 

. Pode me dar a profecia e as notas do Sr. Kadam? - pedi. - 
A primeira tarefa é achar a pedra ônfalo, a pedra do umbigo, a pedra 



da profecia. Quando olharmos dentro dela, ela nos mostrará onde 
encontrar a árvore. A pedra parece uma bola de futebol americano 
apoiada numa das extremidades com um buraco no topo. 
. E como é uma bola de futebol americano? 
. É meio ovalada. 


Levantei-me com as pernas trêmulas. 

. Não acha que devia descansar um pouco mais? 
. Estou me sentindo bem descansada e, além disso, quanto 
mais rápido encontrarmos a pedra, mais cedo resgataremos Ren. 
. Tudo bem, mas avançaremos devagar. Está bem quente 
aqui. Não gostaria de trocar as roupas de neve primeiro? 


Olhei para minha calça rasgada. 

. É melhor. 


Kishan tirara meu casaco, mas eu estava suando com a calça 
térmica. Ele já se trocara e agora usava calça jeans, botas de 
montanhismo e uma camiseta preta. 

. Não enjoa de preto? 


Ele deu de ombros. 

. Eu me sinto bem assim. 
. Hum. 
. Enquanto você se troca, vou verificar a área e tentar 
encontrar uma trilha para seguirmos. - Ele sorriu. - E não se preocupe. 
Não vou espiar. 
. Acho bom. 


Ele riu e se afastou andando pela grama, em direção ao início 
do bosque. Enquanto eu mudava de roupa, examinei assombrada 
minha calça rasgada. Aquele urso me pegou de jeito. Chequei a perna e 
a panturrilha. Não havia mais nenhum ferimento. Nem uma cicatriz 
sequer. A pele estava normal e rosada, como se nunca tivesse sido 
machucada. 

Quando Kishan voltou, eu já havia me lavado usando a melhor 
solução que pude encontrar - uma panela de chá de rosas quente, 
cortesia do Fruto Dourado, e uma camiseta. Joguei o restante do chá 
de rosas no cabelo, escovei-o e o prendi numa trança que caía pelas 
minhas costas. Eu já vestira uma camiseta de mangas compridas, 


calça jeans e botas de montanhismo para combinar com Kishan 
quando ele gritou, avisando de sua chegada, e entrou no 
acampamento. Ele me olhou de cima a baixo com aprovação 
masculina e sorriu. 

. Está rindo de quê? 
. De você. Está com uma aparência muito melhor. 
. Ah! O que eu não daria por um banho! Mas me sinto 
melhor. 
. Encontrei um riacho que corre junto ao início do bosque 
com uma trilha. Acho que pode ser um bom lugar para começarmos. 
Vamos? 


Concordei com a cabeça enquanto ele colocava a mochila em 
seus ombros e seguimos para as árvores. Quando chegamos ao riacho, 
espantei-me com sua beleza. Flores maravilhosas brotavam junto a 
pedras e troncos de árvores. Reconheci narcisos crescendo nas 
margens e contei a Kishan a história da mitologia grega sobre o belo 
homem que se apaixonou pelo próprio reflexo. 

Ele escutou, absorto, e ficamos os dois tão envolvidos com a 
história que não notamos os animais. Estávamos sendo seguidos por 
criaturas da floresta. Paramos e um par de coelhos veio, saltando, nos 
olhar com curiosidade. Esquilos pulavam de árvore em árvore, 
aproximando-se, como se quisessem escutar a história. Eles saltaram 
para um galho que se curvou com seu peso e os trouxe para apenas 
alguns metros de nós. O bosque estava cheio de criaturas. Vi raposas, 
cervos e pássaros de todas as espécies. Ergui a mão e um belo cardeal 
vermelho pousou delicadamente no meu dedo. 

Kishan levantou o braço e um falcão de olhos dourados voou 
do topo da árvore para se equilibrar em seu antebraço. Andei até uma 
raposa que, destemida, observou minha aproximação. Esticando a 
mão, acariciei sua cabeça peluda e macia. 

. Estou me sentindo a Branca de Neve! É incrível! Que lugar 
é este? 


Ele riu. 

. O paraíso. Está lembrada? 



Caminhamos o dia todo, escoltados às vezes por uma 
variedade de animais. À tarde deixamos a floresta e encontramos 
cavalos pastando num prado repleto de flores silvestres. Colhi 
algumas a fim de fazer um buquê. Os cavalos vieram trotando para 
investigar. 

Kishan deu-lhes maçãs de uma árvore próxima e eu trancei 
flores na crina de uma linda égua branca. Eles andaram ao nosso lado 
por algum tempo. 

No início da noite avistamos uma estrutura no sopé de uma 
grande colina. Kishan quis montar acampamento para que 
pudéssemos dormir e explorar a área no dia seguinte. 

Naquela noite, deitei-me de lado no saco de dormir com uma 
das mãos sob o rosto e disse a ele: 

. É como o Jardim do Éden! Jamais imaginei que um lugar 
assim existisse! 
. Ah, mas, se bem me lembro, havia uma serpente no 
jardim. 
. Bem, se não havia uma aqui antes, agora há. 


Olhei para Fanindra. Suas dobras douradas ainda estavam 
duras e imóveis, enquanto ela descansava perto da minha cabeça. 
Voltei-me para Kishan, que atiçava o fogo com um galho. 

. Não está cansado? Avançamos bastante hoje. Não quer 
dormir? 


Ele me deu uma olhada rápida. 

. Daqui a pouco. 
. Ah, tudo bem. Guardarei um espaço para você. 
. Kelsey, acho que seria prudente de minha parte dormir do 
outro lado da fogueira. Você ficará bastante aquecida aqui, sozinha. 


Olhei para ele, curiosa. 

. É verdade, mas há bastante espaço, e prometo não roncar. 


Ele deu uma risada nervosa. 

. Não é isso. Sou homem o tempo inteiro agora e seria 
difícil para mim dormir com você sem... abraçá-la. Dormir ao seu lado 
como tigre, tudo bem, mas como homem é diferente. 



. Ah, uma vez eu disse o mesmo para Ren. Você está certo. 
Deveria ter pensado nisso e não deixá-lo numa posição 
desconfortável. 


Ele bufou, irônico. 

. Não estava preocupado em me sentir desconfortável, mas 
sim em me sentir um pouco confortável demais. 
. Ah, tá. - Agora eu estava nervosa. - Então... é... quer ficar 
com o saco de dormir? Posso usar minha colcha. 
. Não. Estou bem, bilauta. 


Alguns minutos depois, Kishan acomodou-se do outro lado da 
fogueira. Ele enfiou as mãos sob a cabeça e disse: 

. Conte-me outra lenda grega. 
. Certo. - Pensei por um momento. - Era uma vez uma bela 
ninfa, chamada Clóris, que cuidava das flores e da primavera, 
ordenando aos brotos das árvores que florescessem. Seus longos 
cabelos louros cheiravam a rosas e estavam sempre enfeitados com 
uma grinalda de flores. Sua pele era macia como pétalas de rosas. 
Seus lábios rosados formavam o biquinho de uma peônia e suas faces 
se assemelhavam a orquídeas em flor. Embora fosse amada por todos 
que a conheciam, Clóris desejava um companheiro, um homem que 
pudesse apreciar sua paixão por flores e que desse à sua vida um 
sentido mais profundo. 
. Continue - disse Kishan, quando fiz uma pausa. 
. Uma tarde, ela cuidava dos copos-de-leite e sentiu uma 
brisa morna soprar seu cabelo. Um homem entrou no prado e deteve-
se, admirando seu jardim. Ele era bonito, com cabelos escuros 
agitando-se ao vento e usava uma capa púrpura. A princípio, não a 
viu; ela o observou de um caramanchão coberto de folhas enquanto 
ele caminhava entre as flores. Os narcisos levantaram a cabeça à sua 
aproximação. Ele apanhou entre as mãos um botão de rosa para inalar 
sua fragrância e a flor abriu as pétalas e desabrochou em sua palma. 
Os lírios estremeceram ao seu toque e as tulipas curvaram seus longos 
caules em sua direção. 
. Hum... E o que fez a mulher? 



. Clóris ficou surpresa. Normalmente suas flores só reagiam 
a ela. As hastes de lavanda tentaram se enroscar nas pernas dele 
quando passou. Ela cruzou os braços e franziu a testa para elas. Os 
gladíolos todos se abriram ao mesmo tempo, em vez de se alternarem 
como seria esperado, e as ervilhas-de-cheiro dançavam para a frente e 
para trás, tentando atrair a atenção dele. Ela arquejou de leve ao ver o 
flox tentar desenterrar as próprias raízes. "Chega!", disse ela. 
"Comportem-se!" O homem se virou e a viu oculta entre as folhas. 
"Pode sair", chamou. "Não vou machucá-la." Ela suspirou, empurrou 
as gardênias para o lado e saiu ao sol, os pés descalços pisando na 
relva. 


Uma brisa suave soprou pelo jardim quando o homem 
inspirou de leve. Clóris era mais linda que qualquer uma das flores 
que ele viera admirar. Ele se apaixonou imediatamente por ela e caiu 
de joelhos à sua frente. Ela implorou que ele se erguesse. O homem se 
pôs de pé e o vento morno levantou sua capa e envolveu os dois em 
suas ondas púrpura. Clóris riu e ofereceu-lhe uma rosa prateada. 
Sorrindo, ele arrancou as pétalas, atirando-as no ar. 

Como Kishan nada dizia, continuei a contar a história. 

. De início, ela ficou aborrecida, mas então ele girou o dedo 
e as pétalas formaram uma espiral ao redor deles, num túnel de vento. 
Ela bateu palmas, deliciada, ao ver as pétalas dançarem. "Quem é 
você?", perguntou. "Meu nome é Zéfiro", ele respondeu. "Sou o vento 
do oeste." Ofereceu-lhe a mão. Quando ela pousou sua mão na dele, 
ele a puxou para si e a beijou. Acariciando seu rosto macio com a 
ponta dos dedos, ele disse: "Há séculos viajo pelo mundo e você é a 
donzela mais linda que já vi. Diga-me, por favor, qual é o seu nome?" 
Corando, ela respondeu: "Clóris." Ele envolveu suas mãos pequenas 
com as dele e fez uma promessa. "Voltarei na próxima primavera. 
Quero que seja minha esposa. Se você me quiser." Clóris assentiu 
timidamente. Ele tornou a beijá-la e a capa púrpura esvoaçou ao seu 
redor. "Até nosso próximo encontro, no próximo ano, minha Flora." O 
vento o levou rapidamente para longe. 


Achei que tivesse escutado alguém se aproximar, mas meus 
sentidos me enganaram. Retomei meu relato. 


. Durante todo o ano ela se preparou para a chegada de 
Zéfiro. Seu jardim estava mais belo do que nunca e as flores, mais 
felizes. Sempre que pensava nele, sentia o beijo de sua brisa roçar-lhe 
o rosto. Na primavera seguinte, ele voltou e encontrou sua linda noiva 
à espera, e os dois se casaram cercados por milhares de florações. 
Tiveram um casamento feliz. Ela cuidava dos jardins, enquanto a cada 
primavera o vento oeste de seu marido espalhava suavemente o 
pólen. Seus jardins eram os mais lindos, os mais famosos e pessoas 
vinham de todas as partes do mundo admirá-los. Eles se adoravam e o 
amor deles era generoso. Tiveram um filho chamado Carpo, que 
significa "fruto". 


Fiz uma pausa. 

. Kishan? 


Ouvi um ronco leve vindo do outro lado da fogueira. 
Perguntei-me quando ele pegara no sono e disse baixinho: 

. Boa noite, Kishan. 


Na manhã seguinte acordei com um som de mastigação acima 
da minha cabeça. Olhei para cima e vi um corpo alto e amarelo, com 
círculos negros, e sussurrei: 

. Kishan, acorde! 
. Já estou acordado e vigiando, Kells. Não tenha medo. Ela 
não vai machucá-la. 
. É uma girafa! 
. É. E há alguns gorilas se movimentando naquelas árvores. 


Virei-me devagar e vi uma família de gorilas apanhando frutas 
de uma árvore. 

. Vão nos atacar? 
. Não estão reagindo como gorilas normais, mas só há um 
modo de saber. Fique aqui. 


Ele desapareceu entre as árvores, surgiu um momento depois 
na forma de tigre e foi até a girafa. Ela piscou para ele seus olhos de 
cílios longos e voltou calmamente a arrancar as folhas do alto das 
árvores com a língua. O mesmo aconteceu quando ele seguiu na 
direção dos gorilas. Eles o observaram preguiçosamente e tagarelaram 


entre eles. Então voltaram ao seu café da manhã, mesmo quando ele 
se aproximou de um dos bebês. 

Kishan se transformou de novo em homem, olhando 
atentamente os animais. 

. Muito interessante. Eles não estão com medo de mim. 


Comecei a desfazer o acampamento. 

. Você perdeu suas roupas de montanhismo. Está de volta 
ao preto. 
. Não perdi, não. Deixei-as entre as árvores. Já volto. 


Depois do café da manhã, caminhamos até a grande estrutura 
que tínhamos visto no dia anterior. Era imensa, feita de madeira e, 
obviamente, muito antiga. Uma grande rampa apodrecida levava ao 
seu interior. Quando nos aproximamos, exclamei: 

. É um barco! 
. Acho que não, Kells. É grande demais para ser um barco. 
. É, sim, Kishan. Acho que é a arca! 
. O quê? 
. A Arca de Noé. Lembra-se de quando o Sr. Kadam falou 
sobre todos os mitos do dilúvio? Bem, se esta de fato é a montanha 
onde Noé aportou, então aquilo deve ser o que restou de seu barco. 
Vamos! 


Caminhamos até a imensa estrutura de madeira e espiamos lá 
dentro. Eu queria subir e dar uma olhada, mas Kishan me advertiu. 

. Espere, Kells. A madeira está podre. Deixe-me ir primeiro 
e fazer um teste. 


Ele desapareceu dentro da barriga escancarada da construção e 
surgiu alguns minutos depois. 

. Acho que é seguro o bastante, se você ficar bem atrás de 
mim. 


Entrei atrás dele. Estava escuro, mas, nos lugares onde a 
madeira havia caído do teto, aberturas irregulares deixavam a luz do 
sol entrar. Eu esperava ver baias de alguma espécie para conter os 
animais, porém não havia nenhuma. Havia, sim, alguns níveis com 
degraus de madeira, mas Kishan achou que os degraus seriam 


perigosos demais. Peguei a câmera e tirei algumas fotos para o Sr. 
Kadam. 

Mais tarde, ao sairmos da relíquia de madeira, eu disse: 

. Kishan... tenho uma teoria. Acho que a Arca de Noé 
realmente aportou aqui e os animais que vimos são descendentes 
daqueles animais originais. Talvez seja por isso que eles tenham um 
comportamento diferente. O único lugar em que viveram foi aqui. 
. Só porque um animal vive no paraíso não significa que ele 
não tenha instintos. Eles são muito poderosos. O instinto de proteger 
o território, de caçar o alimento e de... - ele olhou para mim 
propositalmente - encontrar um companheiro pode ser irresistível. 


Limpei a garganta. 

. Certo. Mas a comida é abundante aqui e tenho certeza de 
que existem muitos - gesticulei com a mão no ar - companheiros para 
todos. 


Ele ergueu uma sobrancelha. 

. Talvez. Mas como você sabe que é sempre assim? Talvez o 
inverno venha numa época diferente aqui. 
. Pode ser, mas acho que não. Vi flores crescendo que 
florescem na primavera, mas também vi flores que florescem no 
outono. É estranho. É como se reunisse o melhor de tudo. Os animais 
são todos perfeitos e bem alimentados. 
. Sim, mas não vimos nenhum predador ainda. 
. É verdade. Vamos manter os olhos abertos. 


Peguei o caderno e comecei a categorizar o que tínhamos 
visto. O lugar lembrava mesmo um paraíso e, aparentemente, Kishan 
e eu éramos os únicos seres humanos ali. O aroma fresco de flores, 
maçãs, frutas cítricas e grama pairava no ar. A temperatura estava 
perfeita - nem quente demais, nem fria demais. 

Parecia um jardim bem cuidado. Eu não via nada que se 
assemelhasse a uma erva daninha. Seria impossível este tipo de terreno 
se manter naturalmente, pensei. Encontramos um ninho de pássaro 
perfeito, com ovos azuis pintados. Os pais chilreavam alegremente, 
sem se aborrecerem quando nos aproximamos para inspecionar os 
ovos. 


Também fiz uma lista de todas as criaturas com que travamos 
contato. No início da tarde, tínhamos visto centenas de animais 
diferentes que eu sabia que não deveriam estar vivendo naquele meio 
ambiente - elefantes, camelos e até cangurus. 

Já perto do anoitecer avistamos nossos primeiros predadores - 
um bando de leões. Kishan os farejou a quase dois quilômetros de 
suas terras e decidimos olhar mais de perto. Ele me fez subir numa 
árvore enquanto investigava. Por fim, ele voltou, com um olhar de 
espanto. 

. Há um grande rebanho de antílopes perto do bando, mas 
eles estão pastando ao lado dos leões! Vi uma leoa comendo algo 
vermelho, que pensei ser carne, mas na verdade era uma fruta. Os 
leões estavam comendo maçãs! 


Comecei a descer. Kishan me pegou pela cintura e me levou 
até o chão. 

. Então minha teoria estava correta. Aqui é realmente como 
o Jardim do Éden. Os animais não caçam. 
. Parece que você acertou. Ainda assim, gostaria de guardar 
certa distância entre nós e os leões antes de acamparmos. 


Mais tarde identificamos outros predadores - lobos, panteras, 
ursos e até outro tigre. Eles não fizeram qualquer movimento contra 
nós. Na verdade, os lobos eram tão amigáveis quanto cães e se 
aproximaram para que os acariciássemos. 

Kishan resmungou. 

. Isso é estranho... Me deixa nervoso! 
. Sei o que quer dizer, mas... eu gosto. Queria que Ren 
pudesse ver este lugar. 


Kishan não respondeu, apenas me apressou para deixarmos os 
lobos e seguirmos em frente. 

Ao anoitecer nos deparamos com uma clareira cheia de 
narcisos no meio de uma floresta. Tínhamos acabado de montar 
acampamento quando ouvi a melodia doce e melancólica de uma 
flauta. Nós dois nos imobilizamos. Era a primeira evidência de que 
havia pessoas ali. 

. O que fazemos? - perguntei. 



. Deixe-me ir ver. 
. Acho que nós dois devíamos ir. 


Kishan deu de ombros e rapidamente fui atrás dele. Seguimos 
as notas persistentes do misterioso som e encontramos a fonte da 
música sentada numa pedra elevada junto a um córrego, tocando uma 
flauta de bambu. A criatura segurava o instrumento delicadamente 
entre as mãos e o soprava de leve. Quando nos aproximamos, 
hesitantes, ela parou de tocar e sorriu. 

Seus olhos eram de um verde vivo, brilhando num lindo rosto. 
Seu cabelo prateado, na altura dos ombros, caía solto. Dois pequenos 
chifres castanhos e aveludados despontavam do alto de sua cabeleira 
brilhante, lembrando um jovem cervo começando a desenvolver a 
galhada. Era ligeiramente menor que um ser humano de altura 
mediana e sua pele era branca, com um tom ligeiramente lilás. Estava 
descalço, mas usava uma calça que parecia feita de um tecido que 
imitava couro. Sua camisa de manga comprida era cor de romã. 

Ele pendurou a flauta no pescoço e olhou para nós. 

- Olá. 

Kishan respondeu, cauteloso: 

-Olá. 

. Estava esperando sua chegada. Todos nós estávamos. 
. Nós, quem? - perguntei. 
. Eu, os silvanos e as fadas. 


Perplexo, Kishan acrescentou: 

. Vocês estavam nos esperando? 
. Ah, sim. Na verdade, há muito tempo. Devem estar 
cansados. Venham comigo e eu lhes darei algo para beber. 


Kishan continuou grudado no chão. Dei a volta por ele. 

. Oi, meu nome é Kelsey. 
. Muito prazer. O meu é Fauno. 
. Fauno? Já ouvi esse nome antes. 
. Ouviu? 
. Sim! Você é Pã! 
. Pã? Não. Eu sou Fauno. Pelo menos é o que minha família 
me diz. Venham. 



Ele se levantou, saltou sobre uma rocha e desapareceu na 
floresta, por um caminho de pedras. Virei-me e segurei a mão de 
Kishan. 

. Vamos. Confio nele. 
. Eu não. 


Apertei a mão dele e sussurrei: 

. Está tudo bem. Acho que você daria conta dele. 


Kishan aumentou a pressão em minha mão e deixou que eu 
fosse na frente, seguindo nosso guia. 

Seguimos Fauno através de árvores frondosas e logo ouvimos o 
riso agudo de muitas pessoas. Ao nos aproximarmos da aldeia, 
percebi que o som era algo que eu jamais ouvira gente produzir. Era 
sobrenatural. 

. Fauno... o que são silvanos? 
. São o povo das árvores, as ninfas das árvores. 
. Ninfas das árvores? 
. Sim. De onde vocês vêm não existe povo das árvores? 
. Não. Também não temos fadas. 


Ele pareceu confuso. 

. Que tipo de gente sai de uma árvore quando ela se parte? 
. Até onde sei, nenhum. Na verdade, acho que nunca vi 
uma árvore se partir, a não ser quando um raio a atinge ou alguém a 
derruba. 


Ele se deteve. 

. Seu povo derruba árvores? 
. Na minha terra? Sim. 


Ele balançou a cabeça com tristeza. 

. Fico muito feliz de viver aqui. Pobres árvores! Eu me 
pergunto o que será das futuras gerações. 


Olhei para Kishan, que sacudiu a cabeça imperceptivelmente, 
antes de recomeçarmos a andar. 

Quando a noite caiu, passamos por baixo de um amplo arco 
repleto de centenas de rosas trepadeiras em miniatura, em todas as 
variedades de cor, e entramos na aldeia dos silvanos. Lanternas 
pendiam de trepadeiras semelhantes a cordas, que desciam das 


maiores árvores que eu já vira. As pequenas luzes dentro das 
lanternas pulavam para cima e para baixo em suas casas de vidro, 
cada uma de uma cor viva e diferente - rosa, prata, turquesa, laranja, 
amarelo e violeta. Olhando mais de perto, vi que as luzes eram cria-
turas vivas. Eram fadas! 

. Kishan! Olhe! Elas brilham como vaga-lumes! 


As fadas pareciam grandes borboletas, mas seu brilho não 
vinha do corpo. A luz suave emanava de suas asas coloridas, que se 
abriam e fechavam preguiçosamente, enquanto as pequenas criaturas 
permaneciam sentadas num suporte de madeira. 

Apontei para uma delas. 

. Elas são... 
. Lâmpadas? São. Elas têm turnos de duas horas como 
lanterna, à noite. Gostam de ler em serviço. Isso as mantém 
acordadas. Se dormirem, suas luzes se apagam. 
. Certo. Claro - murmurei. 


Entramos com ele no povoado. Os pequenos chalés eram feitos 
de plantas fibrosas entrelaçadas e se encontravam dispostos em 
círculo ao redor de um trecho gramado. A área central havia sido 
preparada para um banquete. Uma árvore gigantesca se erguia atrás 
de cada cabana; os galhos se estendiam no alto, enlaçando seus ramos 
aos das árvores vizinhas e criando assim um belo caramanchão verde 
acima de nós. 

Fauno segurou sua flauta e tocou uma melodia alegre. Pessoas 
graciosas e delicadas começaram a sair de seus chalés e saltar de 
esconderijos em meio à folhagem. 

. Venham! Venham conhecer quem estávamos esperando! 
Estes são Kelsey e Kishan. Vamos dar-lhes as boas-vindas. 


Rostos radiantes se aproximaram. Todos tinham cabelo 
prateado e olhos verdes como os de Fauno. Eram belos seres 
masculinos e femininos, vestidos com roupas de tecidos finos 
cintilantes, nas cores vivas das flores que brotavam por toda parte. 

Fauno virou-se para mim: 

. Gostariam de comer ou de tomar banho primeiro? 


Surpresa, eu disse: 


. Banho primeiro. Se não for problema. 


Ele se curvou. 

. Claro. Antrácia, Phiale e Deiopeia, por favor, levem Kelsey 
à lagoa de banho feminina. 


Três silvanas adoráveis timidamente se aproximaram de mim. 
Duas delas pegaram minhas mãos, enquanto a terceira me guiou para 
fora da clareira, floresta adentro. Kishan franziu a testa, obviamente 
aborrecido com nossa separação, mas notei que ele foi logo levado 
embora também, numa direção diferente. 

As mulheres eram ligeiramente menores que Fauno, cerca de 
20 centímetros mais baixas que eu. Minhas acompanhantes seguiram 
um caminho iluminado por luzes coloridas de fadas até chegarmos a 
um lago redondo, alimentado por um pequeno riacho. A água caía de 
grandes pedras para pedras menores e depois para o lago, criando um 
diminuto e oculto borrifo de água. Funcionava como uma grande 
ducha constantemente aberta. 

Elas tiraram minha mochila e desapareceram, enquanto eu 
despia o restante das roupas e entrava no lago. A água estava 
surpreendentemente quente. Uma rocha longa e submersa, 
conveniente demais para ser natural, estendia-se ao longo do arco 
dentro do lago, servindo de apoio para pisar e para sentar, quando se 
entrava na água. 

Depois que molhei o cabelo, as três ninfas voltaram trazendo 
tigelas com líquidos aromáticos. Deixaram-me escolher a fragrância 
que mais me agradava e me entregaram uma bola de musgo que 
funcionava como bucha. Esfreguei minha pele com o sabonete 
perfumado, eliminando a sujeira, enquanto Phiale ensaboava meu 
cabelo com três produtos diferentes, fazendo-me enxaguá-lo a cada 
vez sob a pequena queda-d'água. 

As luzes de fada brilhavam calorosamente. Quando saí do lago 
e as mulheres envolveram meu corpo e meu cabelo num tecido 
macio, minha pele e meu couro cabeludo estavam formigando, e eu 
me sentia relaxada e refrescada. An- trácia massageou minha pele 
com uma loção perfumada, enquanto Phiale trabalhava em meu 
cabelo. Deiopeia desapareceu brevemente e voltou com um belo 


vestido de tecido muito leve, verde-pálido, bordado com flores 
cintilantes. 

Estendi a mão para tocar o vestido. 

. É lindo! O bordado é tão benfeito que as flores parecem 
reais. 


Ela riu. 

. Elas são reais. 
. Não pode ser! Como vocês as prenderam no tecido? 
. Não as prendemos. Elas cresceram nele. Pedimos que 
fossem parte deste vestido e elas concordaram. 


Antrácia perguntou: 

. Não gostou? 
. Eu amei! Ficarei muito feliz de usá-lo. 


Todas sorriam e cantarolavam, contentes, enquanto me 
arrumavam. Após terminarem, trouxeram um espelho prateado 
encaixado numa moldura oval entalhada com flores entrelaçadas. 

. O que acha, Kelsey? Satisfeita com sua aparência? 


Fitei a pessoa no espelho. 

. Esta sou eu? 


Elas irromperam em risadinhas. 

. Sim, claro. É você. 


Fiquei paralisada. A mulher descalça que me olhava do espelho 
tinha grandes olhos castanhos de corça e pele clara e macia 
irradiando saúde. Uma sombra verde cintilante intensificava meu 
olhar e meus cílios estavam longos e escuros. Meus lábios brilhavam 
com gloss vermelho-maçã e minhas bochechas estavam rosadas. O 
vestido verde em estilo grego fazia com que eu parecesse mais 
curvilínea do que era. Era drapeado nos ombros, preso na cintura e 
caía até o chão em longas dobras. Meus cabelos estavam soltos e 
ondulados sobre as costas, terminando logo acima da cintura. Eu não 
havia me dado conta de que ele havia crescido tanto. Estava enfeitado 
com flores e asas de borboleta. 

As asas moveram-se ligeiramente. Haveria fadas segurando 
meu cabelo em feixes ondulados? 


. Uau! As fadas não precisam ficar no meu cabelo. Tenho 
certeza de que prefeririam fazer outra coisa. 


Phiale balançou a cabeça. 

. Absolutamente. Elas se consideram honradas em segurar 
os cabelos de alguém tão bonita quanto você. Elas dizem que seu 
cabelo é lindo e macio, e que ficar nele é como descansar numa 
nuvem. Sentem-se felizes quando podem servir. Por favor, deixe-as 
ficar. 


Sorri. 

. Tudo bem, mas só durante o jantar. 


As três silvanas ficaram me enfeitando por mais alguns 
minutos e então me declararam apresentável. Começamos a caminhar 
de volta à aldeia. Pouco antes de chegarmos à área do banquete, 
Deiopeia me entregou um buquê de flores perfumado. 

. Hum... Não estou me casando nem nada parecido, certo? 
. Casando-se? Ora, não. 
. Quer se casar? - perguntou Phiale. 


Fiz um gesto com a mão. 

. Não, só perguntei por causa do lindo vestido e do buquê 
de flores. 
. Esses são os costumes de casamento em sua terra? 
. São. 


Deiopeia deu uma risadinha nervosa. 

. Bem, se quisesse se casar, seu homem também está muito 
bonito. 


As três moças recomeçaram com os risinhos e apontaram para 
a mesa do banquete, onde Kishan estava sentado, evidentemente 
frustrado. Elas saltitaram até a mesa antes de desaparecerem em meio 
ao grupo de cabelos prateados. Precisava admitir que Deiopeia tinha 
razão. Kishan estava mesmo muito bonito. Eles o haviam vestido com 
uma calça branca e uma camisa azul, feita do mesmo material que o 
meu vestido. Ele também tomara banho. Ri alto ao vê-lo olhar para as 
silvanas ao redor, pouco à vontade, sentindo-se deslocado. 

Ele deve ter me ouvido, pois ergueu os olhos e observou a 
multidão. Seus olhos se iluminaram ao me ver, mas passaram direto, 


ainda procurando. Kishan não me reconheceu! Ri de novo. Dessa vez, 
seus olhos voltaram a mim e se detiveram. Erguendo-se devagar, 
caminhou em minha direção. Olhou-me de cima a baixo, com um 
largo sorriso no rosto, e soltou uma gargalhada. 

Aborrecida, perguntei: 

. Do que você está rindo? 


Ele pegou minhas mãos nas dele e olhou nos meus olhos. 

. De nada, Kelsey. Você é a criatura mais encantadora que 
já vi na vida. 
. Ah. Obrigada. Mas por que você riu? 
. Ri porque sou eu que tenho a sorte de vê-la assim, de 
estar com você neste paraíso, enquanto Ren foi perseguido por 
macacos e lutou contra árvores de agulhas. Obviamente, fiquei com a 
melhor busca. 
. Sem dúvida. Pelo menos até agora. Mas proíbo você de 
provocá-lo com isso. 
. Está brincando? Meu plano é tirar uma foto sua e contar 
tudo para ele nos mínimos detalhes. Aliás, fique bem aí. 


Kishan desapareceu e retornou com uma câmera. 

Franzi a testa. 

. Kishan. 
. Ren iria querer uma foto. Pode acreditar. Agora, sorria e 
segure suas flores. 


Ele tirou várias fotos, guardou a pequena câmera no bolso e 
pegou minha mão. 

. Você está linda, Kelsey. 


Corei com o elogio, mas um sentimento de melancolia me 
invadiu. Pensei em Ren. Ele teria adorado este lugar. Era uma cena 
saída diretamente de Sonho de uma noite de verão. Ele teria sido o 
belo Oberon para minha Titânia. 

Kishan tocou meu rosto. 

. A tristeza está de volta. Isso parte meu coração, Kells. - 
Ele se inclinou e beijou meu rosto suavemente. - Você me daria a 
honra de me acompanhar no jantar, apsaras rajkumari? 


Tentei me animar e sorri. 


. Sim, se você me disser do que acabou de me chamar. 


Seus olhos dourados cintilaram. 

. Eu a chamei de "princesa", "princesa das fadas" para ser 
exato. 


Eu ri. 

. Ah, é? E você? Como se chamaria? 
. Eu sou o belo príncipe consorte, naturalmente. 


Ele passou meu braço pelo dele e me ajudou a me acomodar à 
mesa. Fauno sentou-se numa cadeira à nossa frente, ao lado de uma 
silvana adorável. 

. Posso apresentar-lhes nossa soberana? 
. Claro - eu disse. 
. Kelsey e Kishan, esta é Dríope, rainha dos silvanos. 


Ela assentiu delicadamente e sorriu. Em seguida anunciou: 

. Está na hora do banquete! Aproveitem! 


Eu não sabia por onde começar. Travessas com delicados 
biscoitos finos como renda e pães de mel estavam arrumadas ao lado 
de tortas de limão, pratos com compotas de frutas, pequenas quiches 
e crepes de canela. Servi-me de salada de folhas de dente-de-leão com 
frutas secas e molho de limão, e de uma porção de galette de 
cogumelo, cebola e maçã, com queijo stilton assado. Também foram 
trazidos pratos com torta de ameixa, pãezinhos de mirtilo e bolinhos 
de abóbora com recheio de queijo cremoso, pães salgados com 
manteiga e geléias de frutas. 

Bebemos néctar de flores adoçado com mel e refresco de 
melancia. Kishan me serviu uma minúscula cestinha de massa 
recheada com framboesas e coberta com creme de leite fresco. Todos 
os alimentos eram pequenos, exceto o prato final: um gigantesco bolo 
de morango. Uma calda vermelha pingava pelos lados da massa 
branca, recheada com morangos doces e creme leve. Coberto com 
chantili e polvilhado com açúcar, foi servido acompanhado por leite. 

Quando terminamos, inclinei-me para Kishan e disse: 

. Não fazia idéia de que os vegetarianos comiam tão bem. 


Ele riu e se serviu de mais uma fatia de bolo. 

Limpei os lábios com o guardanapo. 


. Fauno, posso lhe fazer uma pergunta? 


Ele assentiu. 

. Encontramos as ruínas da arca. Você sabe sobre Noé e os 
animais? 
. Ah, está falando do barco? Sim, vimos o barco parar nas 
colinas e todos os tipos de criatura emergiram dele. Muitas delas 
deixaram nosso reino e entraram no seu mundo, inclusive as pessoas 
que estavam a bordo. Algumas das criaturas resolveram ficar. Outras 
tiveram gerações de descendentes e depois voltaram para nós. 
Concordamos em deixar que todos ficassem se agissem de acordo 
com a lei da nossa terra: a de que nenhum ser vivo pode machucar 
outro. 
. Isso é... incrível! 
. É mesmo maravilhoso que tantos animais tenham voltado 
para nós. Aqui eles encontram paz. 
. Assim como nós. Fauno... estamos procurando a pedra 
ônfalo ou pedra do umbigo. Você já a viu? 


Todos os silvanos sacudiram a cabeça e Fauno respondeu: 

. Não, acho que não conheço essa pedra. 
. E uma árvore gigante, com milhares de metros de altura? 


Ele refletiu um pouco e depois sacudiu a cabeça. 

. Não. Se essa árvore ou essa pedra existem, encontram-se 
fora do nosso reino. 
. Quer dizer que estão no meu mundo? 
. Não necessariamente. Há outras partes deste mundo que 
não controlamos. Enquanto andarem por nossas terras, sob nossas 
árvores, vocês estarão seguros, mas, uma vez fora do abrigo de suas 
copas, não poderemos mais protegê-los. 
. Entendo. 


Afundei na cadeira, desapontada. 

O rosto dele se iluminou. 

. No entanto, talvez encontrem sua resposta se dormirem 
no Bosque dos Sonhos. É um lugar especial para nós. Se temos uma 
pergunta difícil que precisa de resposta ou se necessitamos de 
orientação, dormimos lá, onde podemos descobrir a resposta ou 



sonhar com o futuro e perceber que a pergunta não era tão 
importante afinal. 
. Poderíamos experimentar? 
. Claro! Levaremos vocês. 


Um grupo de silvanas agitadas começou a tagarelar na outra 
ponta da mesa. 

. Que oportuno vocês terem vindo agora! Uma das árvores 
está se partindo! - explicou Fauno. - Venham ver, Kelsey e Kishan! 
Venham ver o nascimento de uma ninfa das árvores! 


Kishan segurou minha mão enquanto Fauno nos guiava por 
trás de um dos chalés. A aldeia inteira aguardava, murmurando 
baixinho, ao pé da árvore. 

Fauno sussurrou: 

. Estas árvores estavam aqui antes da chegada de Noé e de 
seu barco de animais. Elas deram à luz muitas gerações de silvanos. 
Cada chalé que vocês estão vendo encontra-se na frente de uma 
árvore de família. Isso significa que todos que vivem no chalé 
nasceram da árvore-mãe atrás dele. Está chegando a hora. Olhem. 
Reparem como as outras árvores lhe oferecem apoio. 


Ergui os olhos para o caramanchão frondoso e a impressão 
realmente era de que os galhos apertavam os dedos folhosos da árvore 
que fazia força. Ela emitia sons de madeira vergando e estalando, 
enquanto suas folhas tremiam acima de nós. 

As ninfas das árvores pareciam concentradas numa grande 
saliência nodosa, próxima de um galho baixo. A árvore estremeceu 
quando o longo galho se agitou. Após momentos intensos escutando 
os profundos roncos da árvore e observando o tronco se expandir e 
contrair tão devagar que eu não teria notado se não estivesse 
prestando atenção, o galho de baixo se quebrou, separando-se do 
enorme tronco com um estalo terrível. 

O silêncio caiu sobre os presentes. O galho ficara pendurado, 
tocando o solo perto de nós, preso apenas pela casca da árvore. 
Encaixada no espaço onde a base do galho se unia ao tronco estava 
uma pequena cabeça prateada. 


Um grupo de silvanas se aproximou e começou a falar 
carinhosamente com o pequeno ser descansando na árvore. Com todo 
o cuidado, elas o levantaram e o envolveram numa manta. Um 
membro do grupo ergueu o pequeno bebê silvano no ar e anunciou: 

. É um menino! 


Elas desapareceram dentro do chalé enquanto todos 
comemoravam. Outro grupo de silvanos removeu cuidadosamente da 
árvore o galho trêmulo e espalhou uma pomada sobre a marca oval no 
tronco onde o galho estivera. 

Os silvanos começaram a dançar em torno da árvore e 
fadinhas voaram até seu topo e iluminaram todos os galhos com suas 
asas. Quando a celebração terminou, já era tarde. 

Enquanto Fauno nos acompanhava até o Bosque dos Sonhos, 
eu lhe perguntei: 

. Agora sabemos de onde vêm os silvanos, mas, e as fadas? 
Nascem das árvores também? 


Ele riu. 

. Não. As fadas nascem das rosas. Quando a flor envelhece 
e cai, nós a deixamos no solo para produzir sementes. Um broto 
cresce e, quando chega a hora, uma fada nasce com asas da cor da 
rosa. 
. Vocês são imortais? 
. Não, mas vivemos muito. Quando um silvano morre, seu 
corpo é depositado nas raízes da árvore-mãe e suas lembranças se 
tornam parte das futuras gerações. As fadas só morrem se sua roseira 
morre, então podem viver por muito tempo, mas ficam acordadas 
apenas à noite. Durante o dia, encontram uma flor para descansar e 
seu corpo se transforma em orvalho da manhã. À noite, elas se 
transformam em fadas novamente. Ah, chegamos. Este é o Bosque 
dos Sonhos. 


Ele nos levara a uma área isolada. Parecia uma suíte de lua de 
mel de fadas. Árvores altas sustentavam uma cama de folhas que 
pendia de trepadeiras. Cestas de flores perfumadas achavam-se 
suspensas em cada canto do bosque. Travesseiros e roupa de cama de 
tecido fino eram bordados com trepadeiras espiraladas e folhas. Um 


grupo de fadas que havia nos seguido assumiu seus postos nas 
lanternas. 

. As quatro árvores grandes que sustentam o caramanchão 
marcam cada qual uma direção: norte, sul, leste e oeste. Os melhores 
sonhos acontecem quando a cabeça aponta para o oeste e você acorda 
com o sol no leste. Boa sorte para vocês e bons sonhos. 


Fauno sorriu e foi embora, levando duas fadas com ele. 

Eu ainda estava de pé, constrangida. 

. É... isso é um pouco embaraçoso. 


Kishan fitava a cama como se ela fosse um inimigo mortal. 
Virou-se para mim e curvou-se galantemente. 

. Não se preocupe, Kelsey. Vou dormir no chão. 
. Mas... e se o sonho couber a você? 
. Você acha que faz diferença eu estar ou não na cama? 
. Não faço idéia, porém, em todo caso, acho melhor 
deitarmos juntos. 


Ele ficou tenso. 

. Tudo bem. Mas vamos dormir um de costas para o outro. 
. Combinado. 


Subi primeiro e afundei na cama e nos travesseiros de penas 
macias. A cama balançava para a frente e para trás, como uma rede. 
Kishan resmungou ao pôr de lado a mochila. Entendi apenas 
fragmentos de frases. Algo sobre princesas das fadas, como ela espera 
que eu durma, é melhor que Ren agradeça, etc., etc. Abafei o riso e me 
virei de lado. Ele puxou a coberta de tecido fino sobre mim e então 
senti a cama oscilar quando ele se deitou ao meu lado. 

Quando uma brisa agitou de leve meu cabelo, ouvi Kishan 
dizer: 

. Mantenha o cabelo do seu lado, Kells. Faz cócegas. 


Eu ri. 

. Desculpe. 


Puxei o cabelo por sobre o ombro. Ele resmungou um pouco 
mais, algo sobre mais do que um homem pode agüentar, e se mexeu 
em silêncio. Peguei no sono logo e tive sonhos nítidos com Ren. 


Num deles, ele não me conhecia e se afastava de mim. Em 
outro, estava rindo e feliz. Estávamos juntos de novo e ele me 
abraçava e dizia baixinho que me amava. Sonhei com uma longa 
corda em chamas e um colar de pérolas negras. Em outro sonho, eu 
estava debaixo dagua, nadando ao lado de Ren, e estávamos cercados 
por cardumes de peixes coloridos. 

Apesar de os sonhos serem muito claros, não havia pista da 
pedra ônfalo. Acordei decepcionada e descobri que estava dormindo 
cara a cara com Kishan. Seu braço estava em volta de mim e sua 
cabeça pesava sobre o meu cabelo, prendendo-me à cama. 

Eu o sacudi. 

. Kishan! Kishan! Acorde! 


Ele me puxou para mais perto sem abrir os olhos. 

. Shh, volte a dormir. Ainda não amanheceu. 
. Já é de manhã, sim. - Empurrei-o na altura das costelas. - 
Hora de acordar. Vamos! 
. Está bem, querida, mas que tal um beijo antes? Um 
homem precisa de motivação para sair da cama. 
. Esse tipo de motivação mantém um homem na cama. Não 
vou beijar você. Agora, levante-se. 


Ele acordou com um sobressalto. Confuso, resmungou e 
esfregou os olhos. 

. Kelsey? 
. Sim, Kelsey. Com quem andou sonhando? Durga? 


Ele parou e piscou algumas vezes. 

. Isso não é da sua conta. Mas, para sua informação, sonhei 
com a pedra ônfalo. 
. Sonhou? E onde ela está? 
. Não sei descrever. Vou ter que mostrar a você. 
. Tudo bem. 


Pulei da cama e ajeitei o vestido. 

Kishan me observava e comentou: 

. Você está mais bonita agora do que na noite passada. 


Achei graça. 


. Ah, com certeza. Eu me pergunto por que você sonhou 
com a pedra ônfalo e eu não. 
. Talvez porque você tenha ido para a cama ontem com 
perguntas diferentes na cabeça. 


Abri a boca mas não falei nada. Ele estava certo. Eu não 
pensara na pedra antes de dormir. Meus pensamentos estavam todos 
concentrados em Ren. 

Ele me olhava, curioso. 

. E com que você sonhou, Kells? 
- Também não é da sua conta. 


Ele estreitou os olhos e franziu a testa. 

- Esqueça. Acho que posso imaginar sozinho. 


Kishan seguiu à frente na caminhada de volta ao povoado dos 
silvanos. A uma curta distância, ele parou e correu de volta para o 
Bosque dos Sonhos. 

- Já volto. Esqueci uma coisa - gritou por sobre o ombro. 


Quando voltou, Kishan estava com um sorriso de orelha a 
orelha, mas, por mais que eu tentasse, não consegui que me contasse 
o que o deixara tão feliz. 

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