quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 17 - Portão do espírito


Estremeci e dei um puxão em minhas luvas, ajustando-as mais 
para cima nos pulsos. Passáramos a maior parte do primeiro dia 
subindo a montanha e montamos acampamento perto de algumas 
rochas que bloqueavam o vento. Quando paramos, foi com alívio que 
me livrei da mochila e me alonguei. 

Dei uma busca na área, juntando lenha para acender uma 
fogueira. Após um jantar quente, graças ao Fruto Dourado, 
aconcheguei-me em meu saco de dormir king size, completamente 
vestida. Kishan enfiou a cabeça pela abertura e entrou em seguida. A 
princípio foi esquisito, mas depois de uma hora eu me sentia 
extremamente grata pela pelagem quente que me fez parar de tremer. 
Estava tão exausta que, apesar do barulho do vento, consegui dormir. 

Na manhã seguinte, para o café da manhã, usei o Fruto 
Dourado para obter mingau de aveia quente com xarope de bordo e 
açúcar mascavo, além de chocolate quente. Kishan quis ficar como 
tigre para se manter aquecido, então lhe dei a opção de uma grande 
travessa cheia de bifes malpassados de carne de caça ou um prato 
gigantesco do mesmo mingau que eu comi e uma grande tigela de 


leite. Ele começou pela carne, mas comeu também o mingau e tomou 
o leite, engolindo rapidamente. Juntei nossos pertences e arrumei-os 
na mochila antes de partirmos de novo. 

Nos quatro dias seguintes estabelecemos uma rotina. Kishan 
guiava o caminho, eu providenciava as refeições com a ajuda do Fruto 
Dourado e acendia a fogueira, depois dormíamos aconchegados, tigre 
e humana, no grande saco de dormir, enquanto o vento uivava ao 
nosso redor. A escalada era desafiadora. Se eu não viesse me 
exercitando com Kishan e o Sr. Kadam, não estaria fisicamente 
preparada. 

A subida não era difícil a ponto de exigir equipamento de 
montanhismo, mas tampouco era um passeio no parque. Respirar 
ficava mais complicado à medida que subíamos, pois havia menos 
oxigênio, e por isso parávamos freqüentemente para beber algo e 
descansar. 

Chegamos ao limite das neves no quinto dia. Mesmo no verão 
havia neve no monte Everest. Era fácil avistar Kishan agora, mesmo à 
distância. Um animal negro na neve branca não passava 
despercebido. Ele tinha sorte de provavelmente ser uma das maiores 
criaturas ali. Se fosse menor, seria caçado por predadores. 

Será que existem ursos polares por aqui? Não, ursos polares 
vivem nos polos. Hum, talvez existam outros ursos ou pumas. Pé 
Grande? O Abominável Homem das Neves? Melhor não pensar nisso. 

Segui os rastros de Kishan e comecei a ficar atenta a pegadas. 
Quando avistava rastros de pequenos animais na neve, tentava 
adivinhar quais seriam. Alguns eram aves, evidentemente, mas outros 
eu não sabia se poderiam ser coelhos ou pequenos roedores. Sem ver 
nada maior e ficando entediada com esse jogo, relaxei e deixei a 
mente vagar enquanto seguia Kishan. 

As árvores estavam ficando esparsas e o terreno, rochoso. A 
camada de neve era funda e respirar tornava-se cada vez mais difícil. 
Comecei a ficar nervosa. Eu não achava que demoraria tanto para 
chegar ao portão do espírito. 

No sétimo dia, encontramos o urso. 


Kishan afastara-se havia cerca de meia hora para procurar 
madeira e um bom local para acamparmos. Eu devia seguir seu rastro 
e ele retornaria e me encontraria pelo faro. Na verdade, ele estaria de 
volta muito em breve, pois nunca me deixava por mais de 30 minutos. 

Eu caminhava lenta e penosamente, pisando em suas pegadas 
de tigre, quando ouvi um urro estrondoso atrás de mim. Imaginei que 
Kishan tivesse feito a volta e estivesse tentando chamar minha 
atenção. Virei-me e me detive bruscamente, arquejando, apavorada. 
Um enorme urso pardo vinha em minha direção, num galope de 
ataque. Suas orelhas redondas estavam para trás. A boca aberta 
revelava os dentes afiados e ele se aproximava, veloz. Era muito mais 
rápido que eu. 

Gritei. 

O urso parou a pouco mais de um metro de onde eu estava, 
ergueu-se nas patas traseiras e rugiu para mim de novo, golpeando o 
ar com as patas. Seu pelo desgrenhado estava molhado de neve. Os 
olhos pequenos e negros me encaravam sobre o focinho comprido, 
enquanto ele avaliava minha capacidade de luta. A pele ao redor da 
boca repuxou quando sua mandíbula estremeceu, deixando à mostra 
um impressionante conjunto de dentes que poderia me fazer em 
pedaços. 

Rapidamente me joguei no chão, lembrando-me de uma 
história sobre homens da montanha sobrevivendo na natureza 
selvagem. Ouvi que o melhor a fazer durante um ataque de urso é se 
deitar no chão, ficar em posição fetal e se fingir de morto. 

Enrolei-me numa bola e cobri a cabeça com as mãos. O urso 
pôs as patas dianteiras no chão e pulou um pouco, as patas triturando 
a neve, enquanto tentava fazer com que eu me movesse para que 
pudesse atacar. Ele golpeou minhas costas e ouvi o tecido rasgar 
quando acertou a mochila, despedaçando o compartimento externo. 

Por estar tão perto do urso, eu podia sentir o cheiro do seu 
pelo, que trazia o odor de grama molhada, terra e água do lago. Seu 
hálito quente cheirava levemente a peixe. Gemi e rolei um pouco. O 
urso mordeu a mochila e apertou a pata dianteira na parte de trás da 


minha coxa para me imobilizar. A pressão era intensa. Tive certeza de 
que meu fêmur ia quebrar. 

E provavelmente teria quebrado se eu estivesse num solo mais 
compacto. Por sorte, o peso da perna do urso apenas me afundou 
mais na neve. Eu não sabia se ele estava defendendo seu território ou 
se queria me comer. De uma forma ou de outra, logo estaria morta. 

Nesse exato momento, ouvi o rugido de Kishan. O urso olhou 
para cima e bramiu de volta, defendendo seu jantar. Virou-se para 
encarar o tigre e arranhou fundo com suas garras a parte de trás da 
minha coxa e a panturrilha da outra perna. Ofeguei de dor quando as 
garras de Freddy Krueger, com quase 300 quilos por trás delas, 
rasgaram minha coxa e panturilha. Mas a boa notícia era que o urso 
não tivera intenção de me machucar. Havia sido só um tapinha de 
amor, avisando que já estaria de volta. 

Minhas pernas queimavam de dor e lágrimas rolavam pelo 
meu rosto, mas permaneci o mais quieta possível. Kishan rodeou o 
animal por um momento e então se lançou ao ataque. O tigre mordeu 
a pata dianteira do urso, enquanto este enfiava as garras em seu 
dorso. Os animais se afastaram o bastante para eu arriscar uma 
olhada nas minhas pernas. Não consegui virar a cabeça o suficiente 
para ver os ferimentos, mas grandes gotas de sangue manchavam de 
vermelho a neve. 

O urso ficou de pé nas patas traseiras e rugiu. Depois se pôs de 
quatro, aproximou-se um pouco e ficou de pé novamente. Kishan 
traçou um semi-círculo fora do alcance do urso, que tentou atingi-lo 
com as patas dianteiras duas ou três vezes, como se tentasse afugentá-
lo. 

Kishan se aproximou e o urso atacou. O tigre se chocou com o 
urso de pé. Quando colidiram, o urso passou as patas dianteiras ao 
redor do corpo de Kishan, atacando violentamente suas costas, 
dando-me uma nova perspectiva da expressão "abraço de urso". Eles 
se rasgavam um ao outro, numa fúria de dentes e garras. O urso 
mordeu a orelha de Kishan, quase arrancando-a. Kishan afastou a 
cabeça, fazendo com que ambos perdessem o equilíbrio. Os animais 


caíram e rolaram algumas vezes, numa confusão de pelos negros e 
castanhos. 

Então me recuperei o suficiente para me dar conta de que 
tinha uma arma. Mas que idiota eu era. Que espécie de guerreira eu me 
tornara? Kishan agora estava rodeando o animal, tentando confundi-
lo e cansá-lo. Tirei vantagem da distância entre eles, levantei a mão e 
atingi o urso no focinho com um pequeno raio. Não foi suficiente 
para feri-lo, mas o bastante para afastá-lo de seu jantar em potencial. 
Ele se distanciou num passo rápido, urrando de dor e frustação. 

Rapidamente Kishan se transformou em homem e começou a 
avaliar os ferimentos da minha perna. Ele retirou a mochila dos meus 
ombros e em poucos segundos vestiu suas roupas de inverno. Em 
seguida debruçou-se sobre mim. O sangue já estava congelando na 
neve. Kishan rasgou uma camiseta ao meio e enrolou minha coxa e a 
panturrilha, apertando bem. 

. Me desculpe se doer, mas preciso mover você. O cheiro do 
seu sangue pode atrair o urso de volta. 


Ele se abaixou e me pegou com cuidado nos braços. Apesar de 
sua delicadeza, minhas pernas ardiam. Gritei e não pude deixar de me 
contorcer para tentar aliviar a dor. Pressionei meu rosto contra seu 
peito e cerrei os dentes. Então, perdi a consciência. 

Eu não sabia se havia dormido ou desmaiado. Na verdade, não 
importava. Acordei deitada de bruços, junto a uma fogueira, com 
Kishan examinando meus ferimentos. Ele rasgara outra camiseta e 
limpava cuidadosamente minhas pernas com uma espécie de líquido 
quente e malcheiroso que ele produzira com o Fruto Dourado. 

Arquejei. 

. Isso pinica! O que é? 
. É um remédio à base de ervas para aliviar a dor, deter a 
infecção e ajudar seu sangue a coagular. 
. Não cheira muito bem. O que tem nele? 
. Canela, equinácea, alho, hidraste, milefólio e algumas 
outras coisas cujo nome eu não conheço em sua língua. 
. Está doendo! 



. Imagino que sim. Você precisa de pontos. 


Respirei fundo e comecei a lhe fazer perguntas para distrair 
minha mente da dor. Arquejei quando ele começou a limpar minha 
panturrilha. 

. Onde você... aprendeu a fazer isso? 
. Lutei em muitas batalhas. Sei um pouco como cuidar de 
ferimentos como estes. A dor deve diminuir logo, Kells. 
. Tratou de ferimentos antes? 
. Sim. 
. Pode... me contar como foi? - perguntei, gemendo. - Vai 
me ajudar a me concentrar em outra coisa. 
. Tudo bem. 


Ele molhou o pano e continuou trabalhando em minha 
panturrilha. 

. Kadam me levou com um grupo de sua infantaria de elite 
para conter alguns bandidos. 
. Do tipo Robin Hood? 
. Quem é Robin Hood? 
. Um personagem que roubava dos ricos para dar aos 
pobres. 
. Não. Eram assassinos. Roubavam caravanas, violentavam 
mulheres e depois matavam todos. Tornaram-se famosos numa certa 
região onde havia muito comércio. Suas riquezas atraíram muitas 
pessoas ao grupo e seu grande número causava muita preocupação. 
Eu estava estudando teoria militar e aprendendo com Kadam como 
estabelecer uma estratégia e entrar na guerra de guerrilha. 
. Quantos anos você tinha? 
. Tinha 16. 


-Ai! 

. Desculpe. 
. Tudo bem - gemi. - Por favor, continue. 
. Um grande grupo deles se achava escondido em algumas 
cavernas e estávamos tentando encontrar um modo de expulsá-los 



quando fomos atacados. Eles haviam construído uma saída secreta do 
esconderijo e nos rodearam, matando nossas sentinelas. Nossos 
homens lutaram bravamente e venceram os canalhas, mas vários de 
nossos melhores soldados foram mortos e muitos ficaram gravemente 
feridos. Eu tive o braço deslocado, mas Kadam o colocou no lugar e 
ajudamos tantos quantos pudemos. 
. Nossa... 
. Foi quando aprendi a fazer a triagem de batalha. Aqueles 
que podiam, acompanhavam o cirurgião e o ajudavam a cuidar dos 
ferimentos dos soldados. Ele me ensinou um pouco sobre plantas e 
suas propriedades curativas. Minha mãe também entendia um pouco 
de botânica e tinha uma estufa cheia de plantas, muitas das quais 
usadas em medicamentos. Depois disso, sempre que eu saía para os 
combates, levava comigo uma bolsa de medicamentos para ajudar 
quando fosse necessário. 
. Parece um pouco melhor agora. Está latejando menos. E 
você? Seus ferimentos estão doendo? 
. Já estou curado. 
. Isso não é justo - comentei, com inveja. 
. Trocaria de lugar com você se pudesse, Kells - disse ele em 
voz baixa. 


E continuou a limpeza cuidadosamente, envolvendo minha 
coxa e a panturrilha em tiras finas de tecido e depois fixando-as com 
as ataduras elásticas que o Sr. Kadam incluíra em nossa caixa de 
primeiros socorros. Kishan me deu duas aspirinas e levantou minha 
cabeça para me ajudar a beber água. 

. Consegui parar o sangramento. Só um dos ferimentos me 
preocupa, por ser mais profundo. Descansaremos esta noite e 
começaremos a voltar amanhã. Terei que carregá-la, Kells. Acho que 
você não vai poder andar. Seus ferimentos podem abrir e voltar a 
sangrar. 
. Mas, Kishan... 
. Não se preocupe com isso agora. Descanse e veremos 
como se sentirá pela manhã. 



Estendi a mão e a coloquei sobre a dele. 

. Kishan? 


Ele voltou seus olhos dourados para o meu rosto e me 
observou atentamente, avaliando se eu sentia dor. 

-Sim? 

. Obrigada por cuidar de mim. 


Ele apertou minha mão. 

. Quem dera eu pudesse fazer mais. Agora durma. 


Fiquei cochilando intermitentemente, acordando quando 
Kishan colocava mais lenha na fogueira. Não sabia como ele 
encontrara lenha seca o bastante para queimar, mas não me dei ao 
trabalho de perguntar. Ele pôs a panela com o líquido que usara para 
banhar meus ferimentos junto das chamas a fim de mantê-lo 
aquecido. Eu estava confortável no saco de dormir, deitada de bruços, 
e, em meio a um torpor, olhava as chamas lamberem o fundo da 
panela. O cheiro de ervas do líquido quente se espalhava pelo ar e eu 
cochilava e acordava. 

A certa altura devo ter dormido mais profundamente, pois 
sonhei com Ren. Ele se encontrava amarrado a um poste com as mãos 
atadas acima da cabeça. Eu estava encostada numa parede atrás de 
outro poste, onde Lokesh, que falava numa língua estranha e batia na 
mão com um chicote, não podia me ver. Ren abriu os olhos e me viu. 
Ele não se mexeu nem moveu um músculo sequer, mas seus olhos se 
agitaram. Eles brilharam e rugas minúsculas surgiram dos lados. Sorri 
para ele e dei um passo em sua direção. Ele balançou a cabeça 
ligeiramente. Ouvi o estalo do chicote e congelei. 

Ren arquejou de dor. Deixei correndo meu esconderijo, 
gritando, e ataquei Lokesh, surpreendendo-o. Agarrei o chicote, mas 
não conseguia arrancá-lo de sua mão. Ele era extremamente forte. O 
meu gesto era tão inútil quanto o de um pássaro atacando uma 
árvore. Enquanto eu me debatia e lutava, vi seu indisfarçável prazer 
ao me reconhecer. 

A excitação febril alcançou seus olhos negros e brilhantes. Ele 
agarrou minhas mãos e as torceu sobre minha cabeça e então 


chicoteou a parte posterior de minhas pernas três vezes. Gritei de dor. 
Um rugido atrás de mim atraiu sua atenção. Agarrei sua camisa e 
enfiei as unhas em seu pescoço e no peito. Ele me sacudiu. 

. Kelsey! Kelsey! Acorde! 


Acordei sobressaltada. 

. Kishan? 
. Você estava sonhando de novo. 


Ele estava dentro do saco de dormir comigo. Delicadamente, 
soltou meus dedos que agarravam com firmeza sua blusa. 

Olhei para seu peito e seu pescoço e vi os arranhões feios e 
ensangüentados. Delicadamente toquei um deles. 

. Ah, Kishan, me desculpe. Está doendo muito? 
. Tudo bem. Já estão cicatrizando. 
. Não tive a intenção. Estava sonhando com Lokesh de 
novo. Eu... eu não quero voltar, Kishan. Quero seguir em frente, 
continuar a procurar o portão do espírito. Ren está sofrendo. Eu sei. 


Para minha grande consternação, comecei a soluçar. Em parte 
por causa 

da dor em minhas pernas e em parte por causa do estresse da 
viagem, mas o motivo principal era porque eu sabia que Ren estava 
sofrendo. Kishan mudou de posição e me abraçou. 

. Shh, Kelsey. Vai ficar tudo bem. 
. Isso você não sabe. Lokesh pode matá-lo antes de 
encontrarmos essa porcaria de portão do espírito. 


Eu chorava enquanto Kishan massageava minhas costas. 

. Lembre-se de que Durga disse que cuidaria dele. Não se 
esqueça disso. 


Solucei. 

. Eu sei, mas... 
. Sua segurança é mais importante do que a busca e Ren 
concordaria com isso. 


Ri, entre as lágrimas. 

. Provavelmente sim, mas... 



. Nada de "mas". Precisamos voltar, Kells. Quando estiver 
curada, podemos tentar novamente. Temos um trato? 
. Acho que sim. 
. Ótimo. Ren tem sorte... de ser dono do coração de uma 
mulher como você, Kelsey 


Virei-me de lado para olhá-lo. O fogo ainda estava aceso e 
observei as chamas dançarem em seus olhos dourados e preocupados. 

Toquei seu pescoço já cicatrizado e disse: 

. E eu tenho sorte de ter dois homens tão maravilhosos na 
minha vida. 


Ele levou minha mão aos lábios e beijou meus dedos. 

. Sabe que ele não ia querer que você sofresse por ele. 
. Nem que eu encontrasse consolo em você. 


Ele sorriu. 

. Não mesmo. 
. Mas você me consola. Obrigada por estar aqui. 
. Não há outro lugar em que eu desejasse estar. Durma um 
pouco, bilauta. 


Ele me puxou para perto e me aninhou junto a seu peito. 
Experimentei a sensação de culpa por me sentir confortada nos 
braços de Kishan, mas rapidamente peguei no sono, sem outros 
incidentes. 

Os dois dias seguintes de viagem foram curtos por 
necessidade. Tentei caminhar sozinha, mas a dor era forte, então 
Kishan precisou me carregar. Descemos de volta a montanha, 
andando devagar, parando para descansar de vez 

em quando, reservando a última hora para Kishan montar o 
acampamento e cuidar de mim. A maioria dos meus ferimentos 
estava cicatrizando, mas o mais profundo começara a supurar. 

A pele ao redor se tornara vermelha, inchada e inflamada. Era 
evidente que o ferimento estava piorando. Quando a febre chegou, 
Kishan começou a se desesperar. Ele amaldiçoou o fato de só poder 
me carregar durante seis horas do dia. Usou todos os remédios de 


ervas em que pôde pensar. Infelizmente o Fruto Dourado não 
produzia antibióticos. 

Uma tempestade nos atingiu e percebi vagamente que Kishan 
me carregava através do granizo e da neve. O fato de não me 
movimentar sozinha deixava-me mais suscetível ao frio. Eu estava 
congelando e perdia e recobrava os sentidos, sem saber quantos dias 
haviam se passado. A certa altura ocorreu-me a idéia de que talvez 
Fanindra pudesse me curar, como em Kishkindha. Ela, porém, 
continuava rígida e congelada. Eu sabia que o clima não estava 
exatamente propício a cobras, mas talvez ela soubesse que eu ainda 
não estava à beira da morte, apesar das aparências. 

Nós nos perdemos na tempestade, sem saber se estávamos 
voltando para o Sr. Kadam ou seguindo na direção do portão do 
espírito. Kishan estava constantemente preocupado em não me deixar 
dormir e por isso conversava comigo enquanto andávamos. Eu não 
me lembrava muito do que ele dizia. Deu-me uma aula sobre 
sobrevivência na natureza e disse que era importante que nos 
mantivéssemos aquecidos, alimentados e hidratados. Essas três coisas 
estavam relativamente garantidas. Quando parávamos para passar a 
noite, ele me envolvia no saco de dormir, deitava-se perto de mim 
para que seu corpo de tigre me mantivesse quente e deixava que o 
Fruto Dourado fornecesse a comida e a bebida de que 
necessitávamos. 

Perdi o apetite quando adoeci. Kishan me forçava a comer e 
beber, mas eu tremia e a febre me fazia sentir como se estivesse ora 
congelando ora quente demais. Ele tinha que se transformar em 
homem com freqüência para me manter coberta com o saco de 
dormir porque, com a febre, eu tentava constantemente me descobrir. 

Eu me sentia fraca agora e passava o tempo olhando para o céu 
ou para o rosto de Kishan, enquanto ele falava de vários assuntos. O 
que ele chamou de "arroz do mato" foi um tópico do qual me lembrei 
mais tarde por ser nojento. Ele falou sobre como conseguira se 
manter quando foi o único sobrevivente de uma batalha dentro do 
território inimigo. Como não havia comida, ele comia arroz do mato, 
que na verdade não era arroz, mas larvas brancas de cupins. 


Resmunguei, mas estava sonolenta demais para mover os 
lábios e emitir qualquer comentário. Não conseguia falar. Ele me 
olhou, preocupado, e puxou um pouco mais o capuz sobre meu rosto 
para que a neve não caísse diretamente sobre mim. 

. Prometo que vou tirá-la daqui, Kelsey - sussurrou, 
inclinando-se em minha direção. - Não vou deixá-la morrer. 


Morrer? Quem falou em morrer? Eu não pretendia morrer, 
mas não conseguia dizer isso a ele. Meus lábios pareciam congelados. 
Não posso morrer. Tenho que encontrar os próximos três itens e 
salvar meus tigres. Tenho que resgatar Ren da prisão de Lokesh. 
Tenho que terminar a faculdade. Tenho que... Adormeci. 

Sonhei que passava o dedo no vidro de uma janela congelada. 
Tinha acabado de desenhar um coração com "Ren + Kelsey" no meio e 
desenhara um segundo coração com "Kishan +..." quando alguém me 
sacudiu, me acordando. 

. Kells. Kells! Pensei que estivéssemos voltando, mas acho 
que encontramos o portão do espírito! 


Espiei pela abertura do capuz e olhei para cima, para um céu 
cinza-ametista. Uma chuva de granizo gelada e dolorosa nos fustigava 
e eu precisei apertar os olhos a fim de ver para onde Kishan apontava. 
No meio de uma extensão nua e branca de neve encontravam-se duas 
estacas de madeira. Enroladas em cada uma delas, viam-se longas 
cordas de um material que tremulava na tempestade, como rabiolas 
de pipas. Uma fileira de bandeiras coloridas estava presa em 
diferentes seções das estacas. Algumas das cordas estavam atadas à 
estaca oposta. Outras se achavam presas a anéis fixados no solo ou 
apenas balançavam soltas no vento. 

Umedeci os lábios com a língua e sussurrei: 

. Tem certeza? 


Felizmente sua audição de tigre era bastante aguçada. Ele se 
curvou, apro- ximando-se do meu ouvido, e gritou mais alto que o 
barulho do vento: 

. Pode ser um monumento ou memorial criado por 
nômades, mas há algo de diferente naquilo. Quero verificar. 



Assenti, fraca, e ele me acomodou no saco de dormir perto de 
uma das estacas. Passara a me carregar no saco de dormir para me 
manter mais aquecida. Caí num sono profundo. Quando ele me 
acordou, não sabia se haviam se passado horas ou segundos. 

. É aqui mesmo, Kelsey. Encontrei uma marca de mão. A 
questão é: devemos atravessá-lo ou voltar? Acho que devemos voltar e 
retornar depois. 


Estendi a mão enluvada e toquei-lhe o peito. Sussurrei, 
sentindo o vento engolir minhas palavras e dispersá-las assim que 
passavam pelos meus lábios. Por sorte, ele as ouviu. 

. Não... Não conseguiremos... achá-lo... de novo... muito 
difícil - eu disse. - O Mestre do Oceano disse que... provássemos 
nossa... fé. É... uma prova. Temos... que... ten... tentar. 
. Mas, Kells... 
. Leve-me... à... marca de mão. 


Ele me olhou, com a indecisão travando uma batalha em seus 
olhos. Cuidadosamente, esticou a mão enluvada e afastou os flocos de 
neve do meu rosto. 

Apertei a mão dele na minha. 

. Tenha fé - sussurrei no vento. 


Ele soltou um suspiro profundo e em seguida deslizou os 
braços sob meu corpo e me carregou até a estaca de madeira. 

. Aqui está. À esquerda da estaca, sob o tecido azul. 


Vi do que ele falava e tentei tirar minha luva. Kishan me 
colocou de pé, sustentando todo o meu peso num só braço. Puxou 
minha luva com a outra mão e a enfiou em seu bolso. Depois guiou 
minha mão para dentro da depressão fria esculpida na estaca. Agora 
que eu estava mais perto, conseguia enxergar os entalhes intrincados 
por toda a madeira, que tinha sido parcialmente coberta pela neve. Se 
estivesse me sentindo melhor, teria adorado examiná-los, porém mal 
conseguia me sustentar de pé sem Kishan. 

Mantive a mão pressionada contra a madeira, mas nada 
aconteceu. Tentei evocar o fogo em minha barriga, a centelha que 
fazia minha mão brilhar, mas sentia-me entorpecida. 


. Kishan.. n...não... consigo. Estou com... muito... fr... frio - 
balbuciei, sentindo vontade de chorar. 


Ele tirou as luvas, abriu o casaco, rasgou a camiseta que vestia 
por baixo e pôs minha mão congelada sobre seu peito nu, cobrindo-a 
com a sua mão quente. Seu peito estava quente também. Ele 
pressionou seu rosto aquecido contra o meu rosto frio e, com a palma 
da mão, esfregou as costas da minha mão por alguns minutos. Ele 
falou, mas não entendi suas palavras. Então virou-se para me proteger 
do vento e quase adormeci protegida no casulo aconchegante que ele 
criara. Por fim, afastou-se um pouco e disse: 

. Pronto. Assim é melhor. Agora, tente outra vez. 


Ele me ajudou a posicionar a mão. Senti uma pequena centelha 
de calor formigando e a induzi a crescer. A força estava lenta e 
letárgica, mas foi crescendo até a marca de mão brilhar. A estaca 
sacudiu e começou a brilhar também. Algo aconteceu aos meus olhos. 
Um filtro verde cobriu minha visão, como se eu tivesse colocado 
óculos escuros de lentes verdes. Isso fazia com que o brilho de minha 
mão parecesse laranja-vivo e ele viajava de uma estaca à outra, 
atravessando a rabiola de tecido. 

O chão tremeu e fomos envolvidos numa bolha de calor. Fraca 
demais para continuar, minha mão escorregou e tornei a desabar de 
encontro a Kishan, que me pegou no colo novamente. Uma pequena 
bolha de estática se formou entre as duas estacas e começou a crescer. 
As cores mudavam dentro da bolha, inicialmente muito borradas para 
que fosse possível distingui-las, mas foram crescendo e começaram e 
entrar em foco. Ouvi um estouro e a imagem tornou-se nítida. 

Vi a grama verde e um sol amarelo e quente. Rebanhos de 
animais pastavam preguiçosamente em meio a árvores frondosas. De 
onde estávamos, eu inalava o perfume de flores e sentia o sol em meu 
rosto, embora o granizo gelado ainda caísse sobre mim. Kishan deu 
um passo à frente, depois outro. Ele me carregou para o paraíso. Com 
a cabeça recostada em seu braço, eu escutava o som da tempestade 
morrer. O ar frio se tornou mais distante e depois partiu com um leve 
estalo. Foi então que desmaiei. 

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