quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 3 - A aranha negra

3. A aranha negra
O dia mal amanhecera quando Miguel chegou ao Colégio Elite. Ainda
faltavam quarenta minutos para o início da primeira aula.
Cumprimentou um porteiro sonolento e dirigiu-se rapidamente para o enorme
vestiário que separava o prédio principal das quadras de esportes. Entrou no
quartinho onde se guardavam vassouras e produtos de limpeza e, agilmente,
pulou como um acrobata, agarrando-se à borda do alçapão do teto. Com o
impulso, a tampa do alçapão afastou-se e o líder dos Karas jogou o corpo para
cima, atravessando a abertura em direção ao forro do vestiário.
As primeiras luzes da manhã filtravam-se através de telhas de vidro que, no
centro do telhado, substituíam algumas das telhas de barro.
Calú e Magrí aguardavam sentados sobre as pernas como japoneses à espera
da cerimônia do chá.
Miguel olhou com ternura para a menina. Aqueles olhos estavam cansados ao
levantarem-se para ele. Mas como eram lindos aqueles olhos! O garoto
ajoelhou-se ao lado de Magrí e tomou suas mãos com delicadeza, como se a
consolasse por algo que nem sabia o que era.
— O que foi, Magrí? O que aconteceu?
Magrí encostou o rosto nas costas da mão do amigo, aceitando o conforto
oferecido. Um perfume suave, de quem acabou de sair do banho, emanava da
menina. Seus cabelos ainda estavam úmidos, cheirando a xampu. Toda ela
parecia uma flor, amanhecendo orvalhada. Mas uma flor que tremia, insegura.
O líder dos Karas respirou um clima de aflição, que pairava por todo o forro do
vestiário.
— Ah, Miguel... Pior não poderia ser...
Miguel aconchegou no seu aquele corpo de menina.
Aos poucos, sentiu em si a tranqüilidade que procurava oferecer à amiga e
descansou, como se tivesse voltado para a cama e retomado o sono,
mergulhando no seu sonho predileto.
Sem olhar para o abraço do casal de amigos, Calú parecia desconfortável.
Em curtos intervalos, Crânio e o pequeno Chumbinho entraram pelo alçapão,
silenciosos como gatos.
Os Karas estavam reunidos.
— Isso são horas? — resmungou Chumbinho. — Desse jeito a gente vai ter de
criar um regulamento proibindo chamados de emergência máxima antes do
meio-dia!
— É bom que tenha acontecido algum fato muito grave mesmo para me
tirarem da cama a esta hora... — brincou Crânio.
Calú fuzilou-o com o olhar:
— Será que o assassinato de Solomon Friedman é grave o bastante para você?
A reação de todos foi de surpresa. À de Crânio juntou-se o arrependimento
pela brincadeira. Disfarçadamente tirou do bolso a pequena gaitinha para ficar
passando-a pelos lábios, sem tirar dela nenhum som. O som estava dentro dele.
Um som de tensão, de expectativa.
Ninguém interrompeu enquanto Calú narrava detalhadamente o drama real
que substituíra a tragédia a ser estreada pelo grande Solomon Friedman na noite
anterior. Talvez aquele fosse, em todo o mundo, o único caso de assassinato de
um ator, minutos antes de entrar em cena.
— Eu telefonei imediatamente para o detetive Andrade — informou Magrí no
final da explanação de Calú. — Ele iniciou as investigações daquele jeito
meticuloso que vocês conhecem muito bem...
— E o que ele descobriu? — perguntou Chumbinho.
— Andrade pode ter lá suas teorias, Karas — respondeu Calú. — De qualquer
forma nem adianta saber o que ele descobriu. Eu acho que o assassinato de
Solomon Friedman foi um crime político!
Miguel tentou impedir que a imaginação do amigo voasse muito alto:
— Um momento! Não vamos começar a inventar maluquices. Só o que
sabemos é que Solomon Friedman foi assassinado. Não vamos agora forçar os
fatos para enxergar o que não foi demonstrado. Por enquanto não há nada que...
— Há sim, Miguel — interrompeu Calú, que não admitia nenhuma acusação
de exagero, mesmo que tivesse razões para estar emocionalmente envolvido. —
O velho Sol estava lendo uma folha de papel amarelo quando eu entrei no
camarim para cumprimentá-lo. Escondeu-a debaixo de uns livros quando me
viu, como se não quisesse me mostrar. Naquele momento, o cesto de papéis
estava vazio, disso eu me lembro muito bem. Depois da morte dele, porém, não
havia nada debaixo dos livros. Mas, no cesto, havia este papel amarelo amassado.
Vejam!
Calú mostrou uma folha amarrotada de papel amarelo.
Era um impresso malfeito, como um folheto de propaganda de liquidação. No
alto, destacava-se uma cruz suástica.
Uma cruz suástica! A medonha aranha negra do horror, com as quatro pontas
girando no sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio, como se
fizesse voltar o tempo para uma época de crime e loucura, quando a liberdade e
a inteligência foram ceifadas da face da Terra.
O terrível símbolo nazista da insânia e do ódio!
Andrade passara boa parte da noite dirigindo seu velho fusquinha sem pressa
e sem destino. Ele precisava pensar e, para isso, nada como as ruas desertas de
São Paulo no meio da madrugada.
Depois do final das investigações no teatro, o cadáver do ator fora levado para
o Instituto Médico Legal. Andrade mandara anotar o nome e endereço de todos
os presentes, dispensara todo mundo e mandara interditar o teatro. Mas, agora,
ele não podia ir para casa como se estivesse apenas com mais um caso nas
mãos. A vítima fora amiga de Calú, e o assassinato de um amigo de um dos seus
queridos meninos era um problema especial para ele.
A noite paulistana já esfriara um pouco quando o detetive estacionou em
frente a uma lanchonete, aberta em plena madrugada. Apesar do friozinho e do
regime que ele se prometera começar no dia seguinte, Andrade pediu um
banana-split, com três bolas de sorvete, três tipos de calda açucarada, um
exagero de chantilly, marshmellow, farofa de paçoca, castanhas picadas, xarope
de groselha, três canudinhos de biju como enfeite e uma pequena cereja
plantada em cima de tudo.
Saboreou lentamente cada colherada, sem deixar de pensar naquele estranho
caso. O que sabia Calú sobre o velho ator? E Magrí? Ele deveria interrogar os
dois, mas sabia que aqueles danadinhos haveriam de querer meter-se em tudo!
Ah, mas ele os proibiria! Ah, sim, desta vez ele não iria permitir que os garotos se
metessem novamente em uma investigação de assassinato! Que cuidassem de
estudar e deixassem as coisas sérias a cargo dos adultos!
Miguel recebeu o papel amarelo que Calú lhe estendia. Crânio e Chumbinho
meteram a cabeça por sobre seus ombros. Sob os raios de luz que entravam no
forro do vestiário através das telhas de vidro, as frases do folheto amarelo davam
enjoo no estômago. Eram um amontoado de acusações caluniosas, odientas,
racistas, asquerosas...
O folheto começava com um título em alemão:
Brasilianischejugend, "Juventude Brasileira", como traduziu Calú, que
estudava alemão. As frases restantes estavam em português e soavam como
palavrões, ao conclamarem os brasileiros à resistência a uma suposta
"conspiração judaica que...".
O líder dos Karas estava cansado. Mais uma vez, Miguel se sentia fraco diante
de tudo o que o amigo lhe narrava.
Afinal de contas, o que eram os Karas? O que eram eles, além de um
pequeno grupo de adolescentes reunidos pelo espírito de aventura? O que podiam
eles? Como se intrometer na investigação de um assassinato como aquele? E se
houvesse mesmo uma implicação política por trás de tudo? Mas não ousou dizer o
que pensava.
Solomon Friedman era tão importante para Calú quanto um pai. Nada havia a
discutir. Não importava se eram muito jovens. Aquele era um trabalho para os
Karas.
— Isto não passa de uma nojenta propaganda nazista, Calú — concluiu
Miguel. — Você pensa que Solomon Friedman poderia ter sido assassinado por
alguma sociedade de loucos que esteja com saudades das atrocidades cometidas
pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial?
Calú balançou vigorosamente a cabeça, reforçando a suspeita que levantara:
— Deve ser isso! A mulher, lá no teatro, não disse que o tal velho tinha
resmungado algumas palavras em alemão ao pedir passagem?
— Esse velho alemão deve ser o mesmo que esbarrou em você na entrada
dos camarins... — lembrou a menina.
— Não posso dizer se era velho o sujeito que esbarrou em mim, Magrí. Muito
menos se era alemão ou chinês. Estava muito escuro, e eu nem prestei atenção...
— confessou Calú. — Mas vejam aqui, no fim do impresso. Vejam esta frase
manuscrita. Isto é alemão puro!
Todos olharam o papel amarelo amarrotado. Era uma letra difícil, trêmula:
ERINERE DICH, SCHWEINEJUDE:
NIEMAND ÜBERLEBT MEINE HÒLLE!
— Traduza isso, Calú. Por favor... — pediu Magrí.
O rapaz traduziu, sentindo vergonha do que dizia.
— "Lembre-se, judeu porco: ninguém sobrevive ao meu inferno!"
— Barbaridade! — exclamou Chumbinho, com uma careta. — Como alguém
pode escrever uma nojeira dessas?
Houve uma pausa. Cinco cérebros jovens e privilegiados completavam o
quadro pintado por Calú. Cinco estômagos revoltavam-se com o que acabavam
de saber, como se alguém tivesse escarrado no cadáver de Solomon Friedman
depois de assassiná-lo covardemente.
Miguel raciocinou em voz alta:
— Solomon Friedman era judeu... Fugiu dos campos de concentração em
1944 e acabou no Brasil, não é, Calú? O que mais você sabe sobre ele? Sabia de
alguém que o perseguia? Que o ameaçava? Que pudesse ter lhe mandado este
folheto asqueroso? A testemunha falou em um velho alemão... Poderia ser
alguém do passado de Sol? Um velho como ele?
Ficou decidido que se encontrariam depois das aulas.
Algum fato, escondido no passado, que Solomon Friedman contara a Calú,
poderia fornecer-lhes uma pista.
Magrí levantou-se e encaminhou-se para o alçapão pensando: havia um
detalhe, no meio do monte de indignidades daquele folheto amarelo, que parecia
uma pista importante. Mas tudo ainda estava muito confuso para ela.
Precisava pensar mais antes de discutir sua suspeita com os outros Karas.
— Meine Hòlle... "o meu inferno!" — repetiu Chumbinho, lentamente. — Um
inferno particular!
Crânio pôs-se de pé:
— Então já sabemos a quem perseguir, Karas!
Olhou por um momento para os amigos surpresos e completou:
— Ao demônio!

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