quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 4 - O segredo da torre

O velho alemão tinha uma saúde de ferro. Para ele ainda não pesavam as
sete décadas que já vivera. Mas, naquela manhã, ele se sentia jovem, leve,
poderoso, como se estivesse novamente com pouco mais de vinte anos — última
ocasião em que envergara o uniforme negro das SS, as terríveis tropas de elite de
Hitler.
Seu destino ficava a pouco menos de uma hora de São Paulo. Ele dirigia
sozinho, como sempre fazia. A melhor maneira de garantir sua própria
segurança, de manter o perfeito disfarce que o protegia há décadas era dispensar
motorista e guarda-costas. Qualquer ostentação poderia tirá-lo do anonimato. E,
por enquanto, a curiosidade do público, da polícia e, principalmente, das
organizações judaicas era a última coisa que o velho alemão poderia desejar.
Manobrou por uma estradinha de terra que saía despercebida da rodovia e
rodou ainda cerca de dois quilômetros. Em pouco tempo estacionava na frente
dos altos muros de uma mansão, o Castelo da Vargem Fina, como era chamado
pelos moradores simples dos arredores, que assim pronunciavam o nome dado
pela Organização ao quartel-general: Castelo Wachenfeld.
A mansão destoava totalmente das construções espalhadas pelos pequenos
sítios em volta. Era uma arquitetura de estilo gótico solidamente construída, com
uma torre típica de um castelo da Europa central e paredes bem altas, quase
completamente encobertas de hera.
O velho alemão saiu do carro e sentiu no rosto a brisa que fazia dançar as
folhas secas sobre a terra batida da estradinha. Ergueu os olhos para a torre. Lá
em cima, na torre, escondia-se o grande segredo da Organização. O segredo
guardado além de todos os segredos. O segredo protegido pela ferocidade dos
dobermans, pela boçalidade dos guardas de segurança e pela brutalidade do
terrível Komandant. Além de três membros do Supremo Komand da
Organização, dois na Europa e um nos Estados Unidos, somente o Komandant no
Brasil tinha conhecimento daquele segredo.
E ele era o Komandant da Organização no Brasil.
Participar da criação do segredo fora seu passaporte para a importante tarefa
para a qual fora escolhido: comandar, do Brasil, a fabulosa decisão da
Organização — a retomada do poder mundial!
Num dos mourões de pedra que sustentavam o portão de ferro da entrada da
mansão estava uma pequena placa de bronze, onde se lia a seguinte inscrição:
"Lar da Juventude Brasileira".
O alemão achava que aquela fora uma das mais brilhantes idéias do Supremo
Komand da Organização. O disfarce perfeito que permitia, mais ou menos às
claras, o recrutamento de crianças e jovens abandonados que, sob a supervisão
do Komandant, estavam sendo treinados ali para constituírem o futuro exército
do IV Reich.
Por um momento, enquanto trancava o carro, o Komandant pensou na
genialidade da Organização ao escolher o Brasil como sede para o IV Reich. Em
que outro país haveria maior contingente de crianças abandonadas?
E quem daria por falta delas nas ruas?
Ao longe, era possível ouvir vagamente os ruídos dos jovens da "Juventude
Brasileira" em seus exercícios militares matinais. Esses exercícios eram feitos
nos campos de treinamento no centro da imensa propriedade de vários alqueires,
completamente cercados por muros de pedra.
O alemão levou consigo o jornal que acabara de comprar. No pé da primeira
página estava o título que ele havia lido com mais prazer em toda a sua vida:

ATOR ASSASSINADO ANTES DE ENTRAR EM CENA

Não sorria, pois jamais havia aprendido a sorrir, mas o faria, se soubesse.
Estava livre de um pesadelo:
"O porco ator judeu está morto! Finalmente!", pensava ele, com alívio.
Depois de décadas de medo, de fugas, de sobressaltos, tudo parecia ter
mudado para ele. A partir daquele dia, ele não seria mais o eterno fugitivo que os
antigos camaradas tinham de esconder. Não seria mais aquele velho solitário,
tremendo a cada ruído, sempre à espera da prisão ou da morte. Os bons tempos
de segurança e poder absoluto estavam para voltar.
Era preciso ter paciência por mais algum tempo. Dentro de mais alguns dias,
ele poderia voltar a vestir com orgulho a farda negra das SS, as tropas de
confiança do seu Führer, o seu guia.
"O Grande Adolf Hitler!", pensava o alemão. "Valeu a pena esperar! Logo
voltarei a vestir a farda das tropas SS que fizeram a glória da Alemanha! E que
voltarão a comandar o mundo!"
Só mais dois dias e ele estaria recebendo o Esperado, que vivera seus doze
anos na África do Sul sob a guarda da Organização.
"E o mundo estará aos pés do IV Reich!"
Para que sua tranqüilidade pudesse voltar por inteiro, só faltava mesmo que
Solomon Friedman desaparecesse da face da Terra. E até isso, por fim, tinha
acontecido.
Atrás das grades do portão de ferro, o porteiro o reconheceu e bateu os
calcanhares, procurando empertigar-se o mais que podia.
— Heil Hitler — saudou o velho alemão, quase num sussurro, pensando que
aquele que fora um dia um brado orgulhoso transformava-se agora em um
murmúrio clandestino, por razões de segurança.
"Mas esta situação há de mudar! E depressa!"
O porteiro o havia reconhecido, mas o doberman, sempre preso pela coleira,
não mostrou sinais de boas-vindas. O empregado agarrou firmemente a correia e
abriu os portões, contendo a fúria assassina do cão, que latia furiosamente,
espumando baba pela bocarra.
O velho alemão olhou em volta para certificar-se de que não havia nenhuma
outra fera como aquela à solta.
"Não se pode confiar nesses guardas recrutados no Brasil. Ach! Que povinho
desorganizado! Que raça sem disciplina!"
Tudo lhe pareceu em ordem, e o velho alemão atravessou rapidamente as
alamedas cercadas de acácias em flor.
Foi recebido à entrada do vasto salão do castelo por um dos guardas de
segurança e subiu para o seu Kabinet.
Em sua expressão, não havia mais qualquer traço da satisfação que a notícia
do jornal lhe provocara, pois em outra parte do jornal havia lido uma nota sobre
um processo contra um certo médico. A notícia deixara o alemão furioso.
O tal médico também sentiria o peso da sua fúria.
Agora ele era o Komandant.
O velho fusquinha de Andrade estava estacionado próximo ao Colégio Elite,
como se o detetive fosse mais um dos pais que vinham buscar o filho no final das
aulas.
Esperava encontrar somente Magrí e Calú, mas não se espantou quando viu
Chumbinho, Miguel e Crânio junto com os dois. Aquele grupo não se largava!
Mesmo que ninguém tivesse combinado o encontro, os Karas sentiram um
certo alívio ao distinguir a silhueta gorda do detetive no meio das mamães e dos
choferes que buscavam os filhos na escola.
Magrí beijou as gordas bochechas de Andrade, sentindo o arranhar da barba,
que o detetive não raspara naquela manhã.
— Eu não queria meter vocês novamente em uma encrenca cabeluda,
meninos, mas...
— Nós fazemos parte da confusão, Andrade — simplificou Miguel. — Calú
era muito amigo de Solomon Friedman!
— É... era mesmo... Por isso eu acho que Calú pode me ajudar nesta
investigação. Mas só com informações, entenderam bem? Desta vez eu não vou
admitir que vocês...
O olhar dos cinco impediu que Andrade fosse adiante com a proibição. O
detetive desistiu e convidou:
— Querem uma carona?
Pronto! Os cinco teriam de espremer-se no minúsculo fusquinha mais uma
vez! Magrí ia sempre no banco dianteiro, e os quatro tinham de encontrar lugar
no banco de trás. Chumbinho odiava ser o menor de todos e ficava danado
quando sugeriam que ele viajasse no colo de alguém. Enfiou-se no estreito
compartimento que havia junto ao pára-brisa traseiro.
— Vocês têm mais alguma informação sobre o crime de ontem à noite, não
é, meninos? — começou Andrade.
— Temos — confirmou Magrí.
— Para o Ibirapuera?
— Para o Ibirapuera!
O detetive engatou a marcha. Sempre no Parque do Ibirapuera ou no Jardim
Zoológico! Aqueles meninos nunca queriam testemunhas quando tinham de
contar alguma descoberta a ele. Bom, se eles gostavam de brincar de polícia e
ladrão, o que ele podia fazer?
Calú pegou um jornal que encontrou sobre o banco do fusquinha. Deu uma
rápida olhada numa pequena notícia impressa na página dobrada e exclamou:
— Ora vejam só! Ferenc Gábor chega hoje ao Brasil!
— Quem?
— Ferenc Gábor. Coitado do velho Sol! Como ele gostaria de estar vivo
agora! Vocês nem imaginam: Ferenc Gábor era um velho amigo do Sol. Um
amigo dos tempos terríveis. Está vindo pela primeira vez ao Brasil. Justamente
um dia depois da morte de Sol...
— Ferenc Gábor? — estranhou Miguel. — Nunca ouvi...
— Ferenc Gábor tem tudo a ver com o passado de Solomon Friedman,
Miguel. Uma coincidência... uma macabra coincidência...
Nas mãos de Calú, Miguel leu:

EXPOSIÇÃO DO MESTRE DAVI SEGAL CHEGA HOJE A SÃO PAULO

Sob o título, a foto de um quadro, com um velho sorridente ao lado. A legenda
dizia:
Ferenc Gáhor, curador universal da obra de Davi Segai, chega hoje a São
Paulo, trazendo uma exposição com telas inéditas, pintadas pelo gênio judeualemão
do expres-sionismo pouco antes de sua morte no campo de concentração
de Sobibor.
Entalado atrás do banco traseiro, Chumbinho coçou a cabeça:
— Engraçado... acho que eu já ouvi esse nome... Ferenc Gábor... Só não me
lembro onde...
— Você acompanha arte, Chumbinho?
— Ferenc Gábor está vindo da França — explicou Crânio. — Aqui diz que ele
vive lá, onde cuida dos quadros de Davi Segai, o mestre do expressionismo...
— Não... não tem nada a ver com nenhum "ismo"... Eu ouvi esse nome aqui...
no Brasil... tenho certeza. Só não consigo lembrar...
Calú não estava prestando atenção ao que Chumbinho dizia. Seus pensamentos
focavam-se apenas na tragédia do seu amigo assassinado. O crime comovera a
cidade, fizera chorar o Brasil. Naquele momento, o corpo do grande ator judeu,
do grande cidadão brasileiro, estava sendo velado na Biblioteca Municipal,
recebendo o último adeus da comunidade teatral que tanto devia a Solomon
Friedman. Calú desejaria estar lá e lá permanecer até que o caixão fosse
fechado, quando, então, do velho Sol só restaria a lembrança... e a saudade. Mas
a saudade só teria cabimento depois que o assassino estivesse desmascarado.
Enquanto isso, Calú sentia-se obrigado a agir, em vez de simplesmente ficar
chorando sobre as flores que adornavam o caixão.
— Solomon Friedman gostaria de estar vivo... Por várias razões o velho Sol
gostaria de ter vivido mais um pouco. Pelo menos para rever esse velho amigo...
Uma lágrima escorreu pela face do garoto.

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