terça-feira, 1 de abril de 2014

Capítulo 1

Acorde, Leger.
— Dia de folga — balbuciei, cobrindo a cabeça com o cobertor.
— Ninguém está de folga hoje. Levante e eu explico.
Suspirei. Geralmente ficava empolgado para trabalhar. A rotina, a disciplina, a sensação de dever
cumprido no final do dia: amava tudo isso. Mas aquele dia era outra história.
A festa de Halloween da noite anterior tinha sido minha última chance. Quando America e eu
dançamos, e ela me contou que Maxon estava distante, consegui um minuto para lembrá-la da nossa
história… e pude sentir. Os laços que nos ligavam ainda estavam lá. Talvez frouxos pelo desgaste da
Seleção, mas ainda presos.
“Me diga que vai esperar por mim”, eu implorara.
Ela não respondeu, mas não perdi a esperança.
Não até ele aparecer, caminhando na direção dela, exalando charme, riqueza e poder. Estava
acabado. Eu tinha perdido.
O que quer que Maxon tenha sussurrado no ouvido dela na pista de dança foi o bastante para
varrer todas as preocupações de sua cabeça. Ela se agarrou a ele, canção após canção, olhando-o nos
olhos como costumava olhar nos meus.
Então talvez eu tenha bebido um pouco demais enquanto testemunhava a cena. E talvez aquele
vaso do vestíbulo tenha quebrado porque eu o arremessei. E talvez eu tenha abafado meus gritos
mordendo o travesseiro para Avery não ouvir.
A julgar pelas palavras de Avery naquela manhã, provavelmente Maxon a havia pedido em
casamento na noite anterior, e nós todos teríamos de ficar a postos durante o anúncio oficial.
Como eu iria encarar aquela situação? Como poderia ficar lá e protegê-los? Ele daria a ela uma
aliança que eu jamais poderia comprar, uma vida que eu jamais poderia oferecer… e eu o odiaria até
meu último suspiro por isso.
Me sentei na cama, mas mantive os olhos no chão.
— O que houve? — perguntei. Minha cabeça latejava a cada sílaba.
— Uma coisa ruim. Muito ruim.
Franzi a testa e levantei os olhos. Avery estava sentado na cama dele, abotoando a camisa. Nossos
olhares se cruzaram e notei sua preocupação.
— Como assim? O que aconteceu?
Se fosse algum drama bobo porque ninguém conseguia encontrar as toalhas de mesa da cor certa
ou algo do tipo, eu voltaria para a cama. Avery respirou fundo.
— Você conhece Woodwork? Um cara simpático, que sorri o tempo todo?
— Sim. Às vezes fazemos a ronda juntos. Ele é legal.
Woodwork antes era um Sete, e fizemos amizade logo de cara porque ambos tínhamos famílias
grandes e pais já falecidos. Ele trabalhava duro; era evidente que merecia a nova casta.
— Por quê? Qual o problema? — perguntei.
Avery parecia atordoado.
— Ele foi flagrado ontem à noite com uma das garotas da Elite.
Gelei.
— O quê? Como?
— As câmeras. Havia jornalistas tirando fotos casuais das pessoas que circulavam pelo palácio, e
um deles escutou ruídos atrás de uma porta. Quando abriu, deu com Woodwork e a senhorita
Marlee.
— Mas é… — quase disse “a melhor amiga de America”, mas me segurei a tempo de completar
— … loucura.
— Nem me diga — Avery concordou enquanto pegava as meias e continuava a se aprontar. —
Ele parecia tão esperto. Deve ter bebido demais.
Provavelmente sim, mas eu duvidava que essa fosse a razão para o que tinha acontecido.
Woodwork era inteligente; queria cuidar da família tanto quanto eu. O único motivo que o levaria a
arriscar ser pego era o mesmo que me levara a fazer exatamente a mesma coisa: ele devia amar
Marlee desesperadamente.
Massageei as têmporas na tentativa de dissipar a dor de cabeça. Não podia passar mal naquele
momento, não com algo tão grande acontecendo. Meus olhos se arregalaram assim que entendi o
que aquilo significava.
— Eles vão… Eles vão matá-los? — perguntei baixinho, como se falar em voz alta pudesse
lembrar a todos como o palácio lidava com traidores.
Avery negou com a cabeça, e senti meu coração voltar a bater.
— Vão açoitá-los. As outras garotas da Elite, assim como suas famílias, estarão na primeira fila. As
estruturas já foram montadas do lado de fora do palácio, por isso estamos todos em serviço. Vista o
uniforme.
Ele se levantou e, antes de sair, comentou, olhando para trás:
— E tome um café antes de se apresentar. Pela sua cara, parece que é você quem vai ser açoitado.
O terceiro andar e o quarto eram altos o suficiente para que a vista alcançasse além das muralhas
espessas que protegiam o palácio do resto do mundo. Assim, rapidamente segui para uma janela
ampla no quarto andar. Olhei para baixo e vi os assentos da família real e da Elite, bem como o
palanque para Marlee e Woodwork. Aparentemente, muitos dos guardas e funcionários do palácio
tiveram a mesma ideia que eu: próximos à janela também estavam dois outros guardas e um
mordomo de uniforme engomado, contrastando com o rosto enrugado de preocupação. Assim que
as portas do palácio se abriram e as garotas e suas famílias caminharam em direção à multidão que
gritava entusiasmada, duas criadas surgiram correndo atrás de nós. Reconheci as duas — Lucy e
Mary — e abri espaço para elas ao meu lado.
— Anne vem? — perguntei.
— Não — Mary respondeu. — Não achou certo vir com tanto trabalho a fazer.
Concordei com a cabeça. Era o jeito dela.
Eu topava com as criadas de America o tempo todo, já que montava guarda à sua porta durante a
noite. Sempre tentei ser profissional no palácio, mas tendia a deixar a formalidade um pouco de lado
quando me relacionava com elas. Queria conhecer as pessoas que cuidavam da minha menina; a
meu ver, eu tinha uma dívida eterna com elas por tudo o que fizeram por America.
Olhei para Lucy e reparei que ela retorcia as mãos, inquieta. Apesar do meu pouco tempo de
palácio, já tinha percebido que, quando ela ficava estressada, sua ansiedade ficava evidente em uma
dúzia de tiques nervosos. O treinamento do exército me ensinara a prestar mais atenção nas pessoas
que adentravam o palácio demonstrando nervosismo. Mas eu sabia que Lucy não representava
ameaça nenhuma e, quando a via conturbada, sentia necessidade de protegê-la.
— Você tem certeza de que quer ver isso? — cochichei para ela. — Vai ser horrível.
— Eu sei. Mas gostava muito da senhorita Marlee — ela respondeu, também baixinho. — Sinto
obrigação de ficar aqui.
— Ela já não é uma senhorita — comentei, certo de que ela seria jogada na casta mais baixa
possível.
Lucy pensou por um instante.
— Qualquer garota que arrisca a vida por alguém que ama com certeza merece ser chamada de
senhorita.
— Você tem razão — eu disse, sorrindo. Observei enquanto as mãos de Lucy se acalmavam e, por
uma fração de segundo, um sorriso se abriu em seu rosto.
Os vivas da multidão se transformaram em gritos de desprezo quando Marlee e Woodwork
passaram cambaleando pela trilha de cascalho até a clareira aberta diante dos portões do palácio. Os
guardas os conduziam aos empurrões. Ao ver o modo como Woodwork caminhava, supus que ele já
tivesse levado uma surra.
Não dava para ouvir as palavras, mas observamos seus crimes serem anunciados a todos.
Concentrei-me em America e em sua família. May parecia estar se esforçando para não desabar,
com os braços em volta da barriga, defensivamente. A expressão no rosto do senhor Singer era de
desconforto, mas serena. Meri parecia apenas confusa. Desejei que pudesse abraçá-la e dizer que
tudo ia ficar bem sem que eu mesmo acabasse num cadafalso.
Lembrei do dia em que vi Jemmy ser açoitado por roubo. Se pudesse, teria trocado de lugar com
ele sem hesitar. Ao mesmo tempo, lembrei do imenso alívio que senti por nunca ter sido pego nas
poucas vezes em que roubei. Imaginava que America devia sentir o mesmo naquele momento:
desejava que Marlee não precisasse passar por isso, mas estava grata por não sermos nós.
Quando as varas baixaram sobre os condenados, Mary e Lucy pularam assustadas, embora não
conseguíssemos escutar nada além da multidão. As pausas entre os golpes só serviam para que
Woodwork e Marlee sentissem o máximo de dor: antes que a ardência passasse, uma nova pancada
vinha e queimava mais fundo. Fazer as pessoas sofrerem é uma arte — e o palácio parecia tê-la
dominado.
Lucy cobriu o rosto com as mãos e chorou baixinho, enquanto Mary a abraçava para reconfortá-la.
Eu estava prestes a fazer o mesmo quando um vulto ruivo chamou minha atenção.
O que ela estava fazendo? Lutando contra o guarda?
Senti meu corpo entrar em conflito. Queria correr até lá e botá-la de volta em seu lugar, mas
também queria pegar sua mão e levá-la embora dali. Queria encorajá-la e, ao mesmo tempo,
suplicar que parasse. Aquela não era a hora nem o lugar de atrair atenção para si.
Vi America saltar a grade, a cauda do vestido esvoaçando enquanto ela caía. Foi quando ela se
recompôs da queda que percebi que ela não estava tentando fugir daquele pesadelo que se
desenrolava diante de seus olhos. Em vez disso, foi em direção aos degraus que levavam até Marlee.
Meu peito se encheu de orgulho e medo.
— Ah, céus! — Mary exclamou.
— Sente-se, senhorita! — Lucy suplicou, com as mãos coladas na janela.
America corria. Perdeu um sapato no caminho, mas se recusava a desistir.
— Sente-se, senhorita America! — berrou um dos guardas ao meu lado.
Ela alcançou o primeiro degrau da plataforma. Minha cabeça ardia com o sangue que pulsava.
— Tem câmeras por toda parte! — gritei para ela através do vidro.
Um guarda finalmente a apanhou e a prensou contra o chão. Ela resistiu e ainda tentou lutar.
Desviei o olhar para os membros da realeza: os três tinham os olhos cravados na garota ruiva que se
debatia no chão.
— É melhor vocês voltarem para o quarto dela — falei para Mary e Lucy. — Ela vai precisar de
vocês.
Ambas se retiraram correndo.
— Vocês dois — me dirigi aos guardas. — Vão lá para baixo e certifiquem-se de que não estão
precisando de mais ajuda. Não dá para saber quantas pessoas assistiram tudo isso e ficaram abaladas.
Eles saíram às pressas, rumo ao primeiro andar. Eu queria estar ao lado de America, ir ao seu
quarto naquele mesmo segundo. Mas sob aquelas circunstâncias, sabia que o melhor era ser paciente.
Era mais seguro que ela ficasse a sós com as criadas.
Na noite anterior, tinha pedido a America que me esperasse, imaginando que ela voltaria para casa
antes de mim. Mais uma vez esse pensamento tomou conta da minha mente. Será que o rei toleraria
aquilo?
Eu sofria tentando respirar, pensar e processar os acontecimentos ao mesmo tempo.
— Magnífico — sussurrou o mordomo. — Quanta coragem.
Ele se afastou da janela e voltou ao trabalho, e eu fiquei me perguntando se ele se referia ao casal
no palanque ou à garota de vestido sujo. A punição chegara ao fim. Permaneci ali, na tentativa de
entender tudo o que acontecera. A família real se retirou, a multidão se dispersou e alguns guardas
ficaram encarregados de levar os dois corpos exaustos que, mesmo inconscientes, pareciam inclinarse
um na direção do outro.

Um comentário:

  1. Livro bom!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!