terça-feira, 1 de abril de 2014

Capítulo 2

Lembrei dos dias em que esperava ansiosamente para correr até a casa da árvore e os ponteiros do relógio pareciam andar para trás. A situação, porém, era mil vezes pior. Eu sabia que havia algo errado. Sabia que ela precisava de mim. E não podia ir até ela.
O melhor que podia fazer era trocar de posto com o guarda escalado para vigiar a porta dela naquela noite. Enquanto a noite não caísse para que eu pudesse vê-la novamente, teria de me enterrar em trabalho.
Estava indo para a cozinha, para finalmente tomar café da manhã, quando ouvi as queixas.
— Quero ver a minha filha!
Nunca tinha ouvido tanto desespero na voz do senhor Singer.
— Sinto muito, senhor. Por motivos de segurança, precisamos tirá-lo do palácio agora — um guarda respondeu. Lodge, pela voz.
Espiei o canto de onde vinham as vozes e, de fato, lá estava Lodge tentando acalmar o senhor Singer.
— Mas vocês nos mantiveram enjaulados desde aquele espetáculo horrendo. Minha filha foi arrastada para cá e não a vi mais! Quero vê-la!
Assumi um ar determinado e interferi na conversa:
— Permita que eu cuide disso, soldado Lodge.
Lodge assentiu e se afastou. Na maioria das vezes em que eu agia como quem estava no controle, as pessoas me davam ouvidos. Era simples e eficaz.
Assim que Lodge sumiu pelo corredor, me aproximei do senhor Singer.
— O senhor não pode falar assim por aqui. Não viu o que acabou de acontecer? E tudo por causa
de um beijo e um vestido desabotoado.
O pai de America concordou com a cabeça e passou a mão pelo cabelo.
— Eu sei. Sei que você está certo. Não acredito que a obrigaram a assistir aquilo. Não acredito
que obrigaram May a assistir aquilo.
— Se serve de consolo, as criadas da America são muito dedicadas, e tenho certeza de que estão
cuidando bem dela. Não há notícias de que ela tenha dado entrada na ala hospitalar, então talvez não
tenha se machucado. Pelo menos não fisicamente. Até onde eu sei — Deus, como odiava dizer
aquilo em voz alta —, ela é a preferida do príncipe Maxon.
O senhor Singer abriu um leve sorriso, que não se refletia em seus olhos.
— É verdade.
Lutei com todas as forças para não perguntar tudo o que ele sabia.
— Estou certo de que ele será bastante paciente com America enquanto ela estiver lidando com
essa perda.
Ele concordou e depois murmurou, como se falasse para si mesmo:
— Esperava mais dele.
— Senhor?
Ele respirou fundo e se recompôs.
— Nada — o senhor Singer disse, e então deu uma olhada no palácio, mas não pude distinguir se
era um olhar de admiração ou desprezo.
— Sabe, Aspen, America nunca acreditaria se eu dissesse que ela é boa o suficiente para este lugar.
Em certo sentido, ela está certa. Ela é boa demais para isso.
— Shalom?
O senhor Singer e eu olhamos para trás e nos deparamos com a senhora Singer e May dobrando a
esquina do corredor com as malas.
— Estamos prontas. Você viu America?
May se afastou da mãe e correu para se aconchegar na perna do pai. Ele a envolveu com o braço
de maneira protetora.
— Não. Mas Aspen vai garantir que ela fique bem.
Eu não tinha dito nada do gênero, mas nossas famílias eram muito próximas e ele sabia que eu faria
isso. É claro que faria.
A senhora Singer me deu um abraço rápido.
— Não tenho palavras para descrever como é reconfortante saber que você está aqui, Aspen.
Você é mais inteligente que todos os outros guardas juntos.
— Não os deixe ouvir isso — brinquei. Ela sorriu e se afastou.
May correu até mim, e me abaixei para ficarmos na mesma altura.
— Aqui vão uns abraços extras. Você poderia ir até a minha casa e repassá-los para minha família?
Ela fez que sim com a cabeça. Esperei May me soltar, mas ela não o fez. De repente, levou os
lábios ao meu ouvido:
— Não deixe ninguém machucá-la.
— Jamais.
Ela apertou mais forte. Fiz o mesmo, com um desejo enorme de protegê-la do mundo à sua volta.
May e America tinham mais semelhanças do que elas mesmas percebiam. Só que May ainda não
havia desenvolvido uma armadura. Ninguém a protegia do mundo além dela mesma. America era
poucos meses mais velha do que May quando começamos a namorar; ela tomara uma decisão que
muita gente mais velha do que nós não tinha coragem de enfrentar. Mas enquanto America tinha
consciência do mal ao seu redor, das consequências que viriam se as coisas dessem errado, May vivia
praticamente alheia ao que existia de pior no mundo.
Tive medo de que um pouco dessa inocência tivesse sido roubada naquele dia.
May enfim me soltou. Levantei e estendi a mão para o senhor Singer. Ele a tomou e falou
serenamente:
— Fico contente por ela ter você. É como se tivesse um pedaço de casa.
Nossos olhares se cruzaram, e mais uma vez tive o ímpeto de perguntar o que ele sabia. Imaginava
que, no mínimo, ele suspeitava de algo. O olhar do senhor Singer permaneceu firme, mas eu tinha
sido treinado para procurar segredos nos rostos das pessoas. Não podia sequer imaginar o que ele
escondia de mim, mas sem dúvida havia alguma coisa.
— Cuidarei dela, senhor.
Ele abriu um sorriso.
— Sei que vai. Cuide de si mesmo também. Há quem diga que este posto é mais perigoso que a
Nova Ásia. Queremos que você volte para casa são e salvo.
Fiz que sim com a cabeça. Dentre milhões de palavras, o senhor Singer parecia sempre escolher
aquelas que faziam você se sentir especial, importante.
— Nunca fui tratado com tanta grosseria — veio um resmungo do corredor. — E justo no
palácio!
Nossas cabeças se viraram ao mesmo tempo. Aparentemente, os pais de Celeste também não
tinham recebido com agrado a ordem de partir. A mãe dela arrastava uma mala enorme e
concordava com o marido, jogando o cabelo para trás de tempos em tempos. Parte de mim quis se
aproximar e oferecer um grampo de cabelo.
— Ei, você aí! — o senhor Newsome me chamou. — Venha pegar estas malas — ele ordenou,
soltando a bagagem no chão.
O senhor Singer disparou:
— Ele não é seu criado; está aqui para nos proteger. Você pode carregar suas próprias malas.
O senhor Newsome fez uma cara de enfado e voltou-se para a esposa.
— Não acredito que nossa filhota é obrigada a se relacionar com uma Cinco — apesar de falar
baixo, era óbvio que ele queria que todos nós ouvíssemos.
— Espero que Celeste não tenha adquirido os maus modos dela. Nossa menina é boa demais para
esse lixo — a senhora Newsome comentou, jogando o cabelo para trás mais uma vez. Dava para ver
onde Celeste aprendera a afiar as garras. Não que eu esperasse algo diferente de uma Dois.
Eu não conseguia desviar os olhos da felicidade maligna no rosto da senhora Newsome, até que
ouvi um som abafado perto de mim: era May, chorando agarrada à mãe. Como se aquele dia já não
estivesse difícil o suficiente.
— Boa viagem, senhor Singer — sussurrei. Ele respondeu com um aceno e acompanhou o resto
da família até a porta da frente. Os carros já os esperavam. America iria odiar não ter podido se
despedir.
Me aproximei do senhor Newsome e falei:
— Não se incomode com ele, senhor Newsome. Deixe sua bagagem aqui. Vou providenciar para
que cuidem dela.
— Bom garoto — ele elogiou, me deu um tapinha nas costas, ajeitou a gravata e arrastou a esposa
dali.
Assim que os dois saíram, fui até a mesa próxima à entrada e tirei uma caneta da gaveta. Não havia
como sair impune se fizesse aquilo duas vezes, então precisava decidir qual dos Newsome eu odiava
mais. Naquele momento era a senhora Newsome, pelo que fizera com May. Abri a mala dela, enfiei
a caneta dentro e a quebrei no meio. Fiquei com uma mancha de tinta na mão, mas como havia
milhares de dólares em roupas diante de mim para limpá-la, logo me livrei dela. Observei os
Newsome entrarem em um dos carros e então joguei a bagagem no porta-malas e me permiti um
sorrisinho. Embora tenha sido prazeroso destruir algumas roupas da senhora Newsome, eu sabia que
aquilo não a afetaria definitivamente. Ela as substituiria em questão de dias. Já May teria de viver
com aquelas palavras na cabeça para sempre.
Eu segurava a tigela perto do peito enquanto levava garfadas de ovos e linguiça à boca, ansioso
para ir lá fora. A cozinha estava lotada de guardas e criadas engolindo as refeições antes de os turnos
começarem.
— Ele ficou dizendo que a amava o tempo todo — Fry contava. — Eu estava de guarda perto do
palanque e pude ouvir durante o evento inteiro. Woodwork continuou falando mesmo depois de ela
ter desmaiado.
Duas criadas prestavam atenção a cada palavra. Uma delas baixou a cabeça, triste.
— Como o príncipe pôde fazer isso com eles? Os dois estavam apaixonados.
— O príncipe Maxon é um homem bom. Apenas seguiu o que diz a lei — a outra criada replicou.
— Mas… o tempo todo?
Fry assentiu, em silêncio.
A segunda criada balançou a cabeça e comentou:
— Não foi à toa que a senhorita America tentou socorrê-los.
Dei a volta na grande mesa em direção ao outro lado da cozinha.
— Ela me deu uma joelhada bem forte — Recen acrescentou, fazendo uma careta ao lembrar do
ocorrido. — Não pude impedi-la de pular; mal conseguia respirar.
Ri por dentro, embora sentisse pena do cara.
— Essa senhorita America é bem corajosa. O rei poderia tê-la posto no palanque também por uma
atitude dessas — disse um jovem mordomo de olhos arregalados e brilhantes, que aparentemente
achava tudo aquilo um entretenimento.
Mudei de lugar outra vez, com receio de fazer algo idiota se escutasse mais alguma coisa. Passei
por Avery, que apenas acenou. Sua expressão bastou para eu perceber que ele não estava interessado
em companhia naquele momento.
— Podia ter sido muito pior — uma criada suspirou.
A colega dela concordou.
— Pelo menos estão vivos.
Era inevitável. Uma dúzia de comentários sobrepunha-se e misturava-se nos meus ouvidos. Eu
estava cercado pelo nome de America, presente nos lábios de quase todo mundo. Em um momento,
ficava cheio de orgulho; no outro, mergulhava em raiva.
Se Maxon de fato fosse decente, America nunca teria passado por aquela situação para começo de
conversa.

*

Dei mais um golpe com o machado e parti a madeira. A sensação do sol sobre meu peito era boa, e a ação de destruir algo me ajudava a descarregar minha fúria. Fúria por Woodwork e Marlee, por May e America. Fúria por mim.
Ajeitei outro pedaço de madeira e o golpeei, soltando um berro.
— Você está cortando lenha ou tentando espantar os pássaros? — alguém perguntou.
Virei para trás e avistei um senhor de idade a uns poucos metros dali. Ele puxava um cavalo pela
rédea e vestia o uniforme dos funcionários externos do palácio. Apesar do rosto enrugado, a idade
não tinha apagado seu sorriso. Tive a sensação de já tê-lo visto antes, mas não me lembrava de onde.
— Desculpe. Assustei o cavalo? — perguntei.
— Nada — ele respondeu. — Mas parece que seu dia não está muito bom.
— Bem — eu disse, levantando o machado —, hoje foi difícil para todo mundo.
Dei mais um golpe e parti a madeira ao meio.
— É. Acho que sim — ele concordou enquanto fazia carinho atrás da orelha do cavalo. — Você o
conhecia?
Fiz uma pausa antes de responder; não sabia se estava a fim de falar.
— Não muito. Mas tínhamos bastante em comum. Não consigo acreditar no que aconteceu. Não
acredito que ele perdeu tudo.
— Ah, tudo não significa nada quando se ama alguém. Especialmente na juventude.
Examinei o homem. Evidentemente, era um dos tratadores de cavalos, e embora eu pudesse estar
errado, tendia a achar que ele era mais jovem do que aparentava. Talvez tivesse passado por algo
que judiara dele.
— Tem razão — concordei. Eu mesmo não estava disposto a perder tudo por Meri?
— Ele arriscaria tudo novamente. E ela também.
— E eu também — murmurei, cabisbaixo.
— O que disse, filho?
— Nada.
Apoiei o machado nas costas e peguei outro pedaço de madeira, esperando que ele entendesse a
indireta.
Em vez disso, escorou no cavalo.
— É normal ficar irritado, mas isso não vai levá-lo a lugar nenhum. Você precisa pensar no que
pode aprender com tudo isso. Até agora, parece que só aprendeu a bater em algo que não pode
reagir.
Errei o golpe.
— Olha, sei que você quer ajudar, mas estou trabalhando aqui.
— Não vai funcionar. É um monte de raiva desperdiçada.
— Bom, e onde você quer que eu descarregue a raiva? No pescoço do rei? No do príncipe
Maxon? No seu? — Acertei um golpe. — Porque isso não está certo. Eles se safam de tudo.
— Quem?
— Eles. Os Um. Os Dois.
— Você é Dois.
Larguei o machado.
— Sou Seis! — bradei, batendo no peito. — Não importa o uniforme com que me vistam, por
dentro ainda sou um moleque de Carolina. E isso nunca vai mudar.
Ele balançou a cabeça e puxou o cabresto do cavalo.
— Parece que você precisa de uma namorada.
— Eu tenho namorada! — rebati enquanto ele se afastava.
— Então se abra com ela. Você está cerrando os punhos para a luta errada.

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