terça-feira, 1 de abril de 2014

Capítulo 3

Deixei a água quente cair sobre o corpo com a esperança de que aquele dia também seguisse ralo
abaixo. Continuava pensando nas palavras do tratador de cavalos, com mais raiva do que ele dissera
do que de qualquer outra coisa.
Eu me abrira com America. Eu sabia pelo que estava lutando.
Me sequei devagar, esperando que a rotina de me vestir colocasse a mente no lugar. O uniforme
engomado cobriu minha pele e trouxe consigo uma sensação de propósito e força. Eu tinha trabalho
a fazer.
Cada coisa viria em seu tempo e, no final do dia, lá estaria Meri.
Tentei permanecer concentrado enquanto caminhava até o gabinete do rei no terceiro andar.
Quando bati à porta, foi Lodge quem abriu. Nos cumprimentamos com um aceno e entrei na sala.
Nem sempre me sentia intimidado pelo rei, mas entre aquelas paredes, podia testemunhá-lo
mudando milhares de vidas num estalar de dedos.
— E proibiremos as câmeras no palácio até segunda ordem — o rei Clarkson declarou, enquanto
um conselheiro tomava notas freneticamente. — Tenho certeza de que as meninas aprenderam uma
lição hoje, mas diga a Silvia para trabalhar seu decoro — prosseguiu, sacudindo a cabeça. — Sou
incapaz de imaginar o que possuiu aquela garota para que fizesse uma coisa tão idiota. Ela era a
favorita.
Talvez a sua favorita, pensei ao cruzar o cômodo. A mesa do rei era ampla e escura, e me
aproximei discretamente para apanhar o cesto com as correspondências a serem enviadas.
— Além disso, não tirem o olho da menina que correu.
Apurei os ouvidos. Comecei a caminhar mais devagar.
O conselheiro balançou a cabeça.
— Ninguém sequer a notou, Majestade. Garotas são criaturas muito temperamentais. Caso alguém
venha a perguntar, podemos simplesmente culpar suas emoções instáveis.
O rei fez uma pausa e recostou-se na cadeira.
— Talvez. Até Amberly tem seus momentos. Ainda assim, nunca gostei da Cinco. Ela era uma das
descartáveis, nem deveria ter chegado tão longe.
O conselheiro concordou, pensativo.
— Por que o senhor simplesmente não a manda para casa? Que tal tramar um motivo para
eliminá-la? Com certeza podemos fazer isso.
— Maxon descobriria. Ele vigia essas garotas como um falcão. Mas não importa — disse o rei,
voltando a se debruçar sobre a mesa. — Ela claramente não é qualificada, e cedo ou tarde isso virá à
tona. Seremos agressivos se necessário. Mudando de assunto, onde está aquela carta dos italianos?
Recolhi a correspondência e fiz uma breve reverência (que passou despercebida) antes de me
retirar. Não sabia como encarar a situação. Queria America o mais longe possível do alcance de
Maxon. Mas a forma como o rei Clarkson falara da Seleção me fez pensar que havia algo mais
naquela história, talvez algo obscuro. Será que America poderia ser vítima de um dos caprichos
dele? E, se ela era uma das “descartáveis”, estaria lá de propósito? Trazida com o objetivo de logo
ser dispensada? Se sim, será que havia uma garota trazida especialmente para ser escolhida? Ela ainda
estava no palácio?
Ao menos já tinha em que pensar quando fosse montar guarda diante da porta de America a noite
inteira.
Enquanto caminhava, corria os olhos pela correspondência e lia os endereços.
Na pequena sala de correio, três homens de mais idade separavam as cartas recebidas das enviadas.
Havia uma cesta com o rótulo “SELECIONADAS” que transbordava com cartas de admiradores.
Não sabia ao certo quantas delas as garotas tinham chegado a receber.
— E aí, Leger? Como vai? — Charlie perguntou.
— Já estive melhor — confessei ao entregar a correspondência em suas mãos, para não arriscar que
se perdesse em uma das pilhas.
— Todos já tivemos dias melhores, não é? Pelo menos os dois estão vivos.
— Você ouviu falar da garota que correu para ajudá-los? — Mertin perguntou, girando na cadeira.
— Não é incrível?
Até Cole se virou para nós. Ele era um cara bem quieto, perfeito para trabalhar no correio, mas
também ficou curioso com o assunto.
— É, ouvi — concordei, cruzando os braços.
— O que você acha? — Charlie quis saber.
Dei de ombros. Ao que tudo indicava, a maioria considerava a atitude de America heroica, mas eu
sabia que se alguém dissesse isso diante de um devoto ardoroso do rei Clarkson, esse alguém poderia
acabar com sérios problemas. Por ora, era melhor ficar neutro.
— Foi tudo muito louco — respondi, deixando que Charlie decidisse se eu usara “louco” no
sentido bom ou ruim.
— Sem dúvida — Mertin comentou.
— Preciso fazer minha ronda — falei, encerrando a conversa. — Vejo você amanhã, Charlie —
me despedi com uma leve continência.
— Cuide-se — ele respondeu, com um sorriso.
Segui até o final do corredor para pegar meu bastão no armazém, embora não visse sentido
naquilo. Preferia o revólver.
Quando subi a escadaria e cheguei ao segundo andar, dei com Celeste vindo em minha direção.
Assim que reconheceu meu rosto, ela mudou todo o porte. Parecia que, diferente da mãe, ela pelo
menos era capaz de sentir vergonha.
Ela se aproximou com cautela e parou.
— Soldado.
— Senhorita — disse, com uma reverência.
Seu rosto estava tenso. Ela ficou parada, ponderando as palavras.
— Só queria ter certeza de que você entendeu que nossa conversa ontem foi puramente
profissional.
Quase ri na cara dela. Suas mãos podiam ter ficado apenas nas minhas costas e braços, mas não
havia como esconder a insinuação em seu toque. Ela também tinha levado as regras ao limite.
Depois que lhe contei que tinha sido Seis antes de me tornar soldado, ela sugeriu que eu seguisse a
carreira de modelo em vez da militar.
Suas palavras exatas tinham sido: “Somos iguais agora. Se isto aqui não der certo para mim, me
procure quando sair”.
Celeste não era o tipo de garota que ficava esperando os outros tomarem uma atitude, então não
achava que ela estivesse apegada a mim de modo algum. Também suspeitava que seus lábios
estivessem especialmente soltos naquela noite pelo excesso de álcool. Mas de uma coisa eu tinha
certeza absoluta: ela não amava Maxon. Nem um pouco.
— Claro — respondi, cuidadoso.
— Só quis dar um conselho para sua carreira. É difícil se adaptar a um salto tão grande de casta.
Desejo toda sorte a você, mas quero deixar claro que meu afeto pertence única e exclusivamente ao
príncipe Maxon.
Quase a questionei quanto a isso. Quase! Mas vi o desespero em seu olhar misturar-se a um medo
avassalador. No fim das contas, acusá-la seria acusar a mim mesmo. Eu sabia que ela não se
importava com Maxon, e não tinha certeza se alguma daquelas garotas importava para ele — pelo
menos como deveriam —, mas condená-la ou fazer algum tipo de joguinho não nos levaria a nada.
— E eu me dedico totalmente à proteção do príncipe. Tenha uma boa noite, senhorita.
Pude notar a dúvida pairando em seus olhos. Eu sabia que Celeste não estava completamente
satisfeita com a minha resposta. Mas nada faria melhor a uma garota como ela do que um pouco de
medo.
Respirei fundo e dobrei o corredor em direção ao quarto de America. Estava morrendo de
vontade de entrar. Queria abraçá-la, conversar com ela. Parei diante da porta e encostei o ouvido
ali. Consegui ouvir as criadas, o que significava que ela não estava sozinha. Mas depois distingui sua
respiração difícil, os soluços de seu choro cansado.
Não conseguia suportar o fato de que ela tinha passado o dia inteiro chorando. Foi a gota d’água.
Eu tinha jurado a seus pais que ela era a preferida de Maxon e que seria reconfortada. Se ela ainda
estava aos prantos era porque ele não tinha feito nada por ela. Se America não seria minha, então ele
deveria tratá-la como uma princesa! Até então, Maxon falhara catastroficamente.
Eu sabia — sabia — que ela deveria ser minha.
Bati na porta sem dar a mínima para as consequências. Lucy a abriu e sorriu para mim,
esperançosa. Isso bastou para que eu chegasse à conclusão de que podia ajudar.
— Perdão pelo incômodo, senhoritas, mas ouvi o choro do lado de fora e quis checar se estava
tudo bem.
Passei por Lucy delicadamente e me aproximei da cama de America o máximo que minha ousadia
permitia. Nossos olhares se encontraram. Ela parecia tão indefesa ali que precisei me controlar para
não levá-la para longe daquele lugar.
— Senhorita America, sinto muito por sua amiga. Ouvi dizer que ela era especial. Se precisar de
qualquer coisa, estou aqui.
Ela ficou calada, mas notei pelo seu olhar que juntava cada pequena memória dos nossos últimos
dois anos e as tecia no futuro que sempre sonháramos ter.
— Obrigada — sua voz soava tímida e esperançosa ao mesmo tempo. — Sua gentileza significa
muito para mim.
Abri o mais sutil dos sorrisos, mas meu coração queria saltar para fora. Eu já tinha examinado seu
rosto sob os mais variados ângulos, em milhares de momentos roubados. Pelas suas palavras, eu sabia
sem dúvida alguma: ela me amava.

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