terça-feira, 22 de outubro de 2013

Capítulo 13 - Cachoeira

Na manhã seguinte, ao me levantar, encontrei uma
mochila parcialmente cheia ao lado da minha porta, com um
bilhete do Sr. Kadam. Ele dizia que eu devia pegar roupas
suficientes para três ou quatro dias e incluir meu maiô.

O maiô, pendurado para secar durante a noite, estava

seco. Joguei-o na bolsa, incluí uma toalha por segurança,
empilhei o restante das minhas coisas em cima de tudo e desci a escada.

O Sr. Kadam e Ren já estavam no Jeep quando entrei.

Assim que afivelei o cinto de segurança, o Sr. Kadam me
entregou uma barra de cereais e uma garrafinha de suco como
café da manhã e saiu a toda velocidade.

- Por que a pressa? - perguntei.

- Ren acrescentou um desvio à nossa viagem e quer
parar em um lugar no caminho - respondeu ele. - O plano é
deixar vocês dois lá por alguns dias e então voltar para buscá- los.
Depois disso, seguiremos para Hampi.
- Que tipo de desvio?
- Ren prefere ele mesmo explicar.

Pela expressão em seu rosto, eu sabia que, por mais que

eu tentasse persuadi-lo, o Sr. Kadam não daria mais nenhum
detalhe. Decidi deixar de lado minha curiosidade sobre o
futuro e me concentrar, em vez disso, no passado.

- Como estamos começando uma longa viagem, Sr.

Kadam, por que não me fala mais sobre o senhor? Como foi o
início de sua vida?
- Muito bem. Deixe-me ver. Eu nasci 22 anos antes
de Ren, em junho de 1635. Era filho único de uma família
militar da casta xátria. Portanto, para mim foi natural ser
treinado para ingressar na vida militar.
- Casta xátria?
- A Índia tem quatro castas, ou varnas, semelhantes
a diferentes classes sociais: os brâmanes são professores,
sacerdotes e eruditos; os xátrias são governadores e protetores;
os vaixás são fazendeiros e comerciantes; e os sudras são
artesãos e criados. Também existem níveis diferentes em cada
casta. Pessoas de castas diferentes nunca se misturavam.
Viviam sempre dentro de seu próprio grupo. Embora
oficialmente extinto nos últimos 50 anos, o sistema de castas
ainda é praticado em várias partes do país.
- Sua mulher era da mesma casta que o senhor?
- Era mais fácil para que eu continuasse meu papel
como soldado aposentado altamente favorecido pelo rei, então a resposta é sim.
- Mas foi um casamento arranjado? Quer dizer, o
senhor a amava, não é?
- Os pais dela arranjaram tudo, mas fomos felizes
juntos pelo tempo que nos foi destinado.

Fitei a estrada à nossa frente por um momento e então

olhei para Ren, que cochilava no banco de trás.

- Sr. Kadam, eu o aborreço fazendo tantas

perguntas? Não se sinta na obrigação de responder todas elas,
principalmente se forem pessoais ou dolorosas demais para o
senhor.

- Eu não me importo, Srta. Kelsey. Gosto de

conversar com a senhorita.

Ele sorriu para mim e mudou de faixa.


- Que bom! Então me fale um pouco sobre sua

carreira militar. O senhor deve ter lutado em algumas batalhas
bem interessantes.

Ele assentiu.


- Iniciei o treinamento ainda muito jovem. Devia ter

uns 4 anos. Não frequentávamos a escola. Como futuros
militares, nossa juventude era toda dedicada à formação militar
e todos os nossos estudos versavam sobre a arte da guerra.
Havia dezenas, talvez até mesmo uma centena de diferentes
reinos na índia naquela época. Eu tive sorte de viver em um dos
mais poderosos, sob o comando de um bom rei.
- Que tipos de arma o senhor usava?
- Fui treinado para usar várias armas, mas a
primeira habilidade que nos ensinavam era o combate corpo a
corpo. Você já viu filmes de artes marciais?
- Se o senhor se refere aos de Jet Li e de Jackie Chan, sim.

- Lutadores com habilidade no combate corpo a

corpo eram muito procurados. Ainda jovem, avancei
rapidamente na hierarquia por causa de minha habilidade
nessa área. Ninguém conseguia me derrotar. Bem, quase
ninguém. Ren me vencia de vez em quando.

Olhei para ele, surpresa.


- Sr. Kadam! Está me dizendo que é um mestre de caratê?

- Algo no gênero. - Ele sorriu. - Nunca fui tão bom
quanto os mestres renomados que vinham nos treinar, mas
aprendi bastante. Gosto de lutar, mas minha maior habilidade é
com a espada.
- Eu sempre quis aprender caratê.
- Nessa época, não a chamávamos de caratê. A arte
marcial que usávamos durante a guerra era menos visualmente
estimulante. A ênfase estava em superar seu oponente o mais
rápido possível, o que com frequência significava matar ou
aplicar um golpe que deixaria a pessoa inconsciente por tempo
suficiente para você escapar. Não era tão estruturada como se vê hoje.

- Entendi. Então o senhor e Ren foram ambos treinados em artes marciais.


Ele sorriu.


- Sim e ele era muito competente. Como futuro rei,

estudou ciências, artes e filosofia, assim como muitas outras
áreas do conhecimento chamadas de "As 64 artes". Ele também
foi treinado em todos os tipos de combate, inclusive artes marciais.
- Hum... interessante.
- A mãe de Ren também era bem versada nas artes
marciais. Ela aprendera na Ásia e insistiu para que os filhos
fossem capazes de se proteger. Trouxeram especialistas de fora
e nosso reino rapidamente ficou célebre por lutar nessa modalidade.

Por um minuto, me perdi na imagem de Ren praticando

artes marciais. Lutando sem a camisa. A pele bronzeada. Os
músculos retesados. Sacudi a cabeça e me repreendi. Pare com
isso, garota!

- Ahn... - Pigarreei. - O que o senhor estava dizendo mesmo?


- Carros de guerra... - prosseguiu o Sr. Kadam, sem

perceber minha breve desatenção. - A maior parte dos soldados
era da infantaria e foi aí que comecei. Recebi treinamento no
uso da espada, da lança, da maça, assim como de muitas outras
armas, antes de passar para os carros de guerra. Aos 25 anos,
eu estava no comando do exército do rei. Aos 35, minha função
era treinar outros soldados, inclusive Ren, e fui chamado para
ser o conselheiro militar especial e estrategista de guerra do rei,
particularmente no uso de elefantes de batalha.
- É difícil imaginar elefantes na guerra. Eles parecem tão dóceis - refleti.
- Os elefantes eram assustadores na batalha -
explicou o Sr. Kadam. - Eram fortemente encouraçados e
carregavam uma estrutura fechada nas costas para proteger os
arqueiros. Às vezes prendíamos longas adagas mergulhadas em
veneno a suas presas, o que era bastante eficaz no ataque di-
reto. Imagine enfrentar um exército com 20 mil elefantes
encouraçados. Não creio que hoje exista na índia esse número de elefantes.

Eu quase podia sentir o chão sob os meus pés tremendo

enquanto visualizava os elefantes prontos para a batalha atacando um exército.

- Que terrível para o senhor ter que participar de

todo esse derramamento de sangue e de tanta destruição. E
pensar que essa foi a sua vida. A guerra é uma coisa horrível.

O Sr. Kadam deu de ombros.


- A guerra naquela época era diferente do que é

hoje. Seguíamos um código de guerreiros, semelhante ao
código da cavalaria da Europa. Tínhamos quatro regras. Regra
número um: deve-se lutar com alguém que use armadura
semelhante. Não lutávamos com um homem que não tivesse o
mesmo tipo de equipamento de proteção. É um conceito
semelhante ao de não usar uma arma contra um homem
desarmado. - Ele ergueu outro dedo. - Regra número dois: se
seu inimigo não puder mais lutar, a batalha acabou. Se você
desarmar seu oponente e deixá-lo indefeso, deve cessar a luta.
Não se pode liquidá-lo. Regra número três: soldados não
matam mulheres, crianças, idosos ou enfermos, e não
machucamos aqueles que se entregam. E regra número quatro:
não destruímos jardins, templos e outros lugares de culto.

- Parecem regras muito razoáveis - comentei.

- Nosso rei seguia a Kshatriadharma, ou Lei dos Reis,
o que significa que só podíamos lutar em batalhas que fossem
consideradas justas, ou legítimas, e que tivessem a aprovação do povo.

Ficamos em silêncio por um tempo. O Sr. Kadam

parecia envolto em pensamentos sobre o seu passado e eu
tentava entender a época em que ele viveu. Quando tornou a
trocar de faixa, fiquei impressionada com a facilidade com que
dirigia em meio ao trânsito pesado ao mesmo tempo que
parecia tão pensativo. As ruas estavam cheias e os motoristas
passavam zunindo em velocidades assustadoras, mas isso
aparentemente não abalava o Sr. Kadam.

Algum tempo depois, ele se virou para mim e disse:


- Eu a deixei triste, Srta. Kelsey. Peço desculpas. Não queria aborrecê-la.

- Só estou triste pelo fato de o senhor ter enfrentado
tanta guerra em sua vida e ter perdido tantas outras coisas.

O Sr. Kadam me olhou e sorriu.


- Não fique triste. Lembre-se de que essa foi apenas

uma pequena parte da minha vida. Pude ver e vivenciar mais
coisas do que normalmente seria possível a qualquer homem.
Vi o mundo mudar século após século. Testemunhei
acontecimentos horríveis, assim como muitos outros
maravilhosos. Além disso, lembre-se de que, ainda que eu fosse
um militar, não vivíamos o tempo todo em guerra. Nosso reino
era grande e respeitável. Embora treinássemos para a guerra,
só nos envolvemos em conflitos armados umas poucas vezes.
- Às vezes esqueço há quanto tempo o senhor e Ren
estão vivos. Não estou dizendo com isso que o senhor seja velho...

O Sr. Kadam deu uma risadinha.


Depois de nossa conversa, resolvi pegar um livro sobre

Hanuman. Era fascinante ler as histórias do deus macaco.
Fiquei tão imersa em meu estudo que me surpreendi quando o Sr. Kadam parou.

Fizemos uma refeição rápida, durante a qual o Sr.

Kadam me encorajou a experimentar alguns tipos diferentes de
curry. Descobri que não era muito fã desse prato, e ele ria
quando eu fazia caretas com as variedades muito picantes.
Gostei mesmo foi do pão naan.

Quando nos acomodamos de volta no carro, peguei

uma cópia da profecia de Durga e comecei a ler. Serpentes. Isso
não é nada animador. Que tipo de proteção ou bênção Durga nos daria?

- Sr. Kadam, existe um templo de Durga perto das ruínas de Hampi?

- Existem templos em homenagem a Durga em
quase toda cidade da Índia. Ela é uma deusa muito popular.
Encontrei um templo perto de Hampi que iremos visitar. Se
tivermos sorte, encontraremos lá nossa próxima pista para o quebra-cabeça.
- E tem alguma idéia do que possam ser os "perigos deslumbrantes"?
- Não. Lamento, Srta. Kelsey, mas nada me ocorre.
Também tenho pensado nisso. "Lúgubres fantasmas frustram
seu caminho." Não encontrei nenhuma referência sobre isso, o
que me faz pensar que talvez tenhamos que interpretá-lo
literalmente. Pode ser que haja algum tipo de espírito que tentará deter vocês.

Engoli em seco.


- E o que me diz das... serpentes?


- Existem muitas serpentes perigosas na índia: a

naja, o píton, cobras aquáticas, víboras, cobras-reais e até algumas voadoras.

Nada animador mesmo.


- O que quer dizer com "voadoras"?

- Bem, tecnicamente elas não voam de verdade.
Apenas planam de uma árvore para outra, como o esquilo-voador.

Afundei no assento e franzi o cenho.


- Que bela variedade de répteis venenosos vocês têm aqui!


O Sr. Kadam riu.


- É, temos mesmo. Algo com que aprendemos a

conviver. Mas, neste caso, parece que a cobra ou as cobras serão úteis.

Tornei a ler o verso: Se serpentes encontrarem o fruto

proibido e a fome da Índia satisfizerem... a fim de não ver todo o seu povo perecer.

- O senhor acha que de alguma forma o que fizermos pode afetar toda a Índia?


- Não tenho certeza. Espero que não. Apesar de

meus séculos de estudos, sei muito pouco sobre essa maldição
do Amuleto de Damon. Sei que ela tem grande poder, mas de
que maneira poderia afetar o país, isso eu ainda não compreendi.

Eu estava com uma leve dor de cabeça, por isso

recostei-me no banco e fechei os olhos. E depois só me lembro
de o Sr. Kadam me cutucar para que eu acordasse.

- Chegamos, Srta. Kelsey.


Esfreguei os olhos sonolentos.


- Onde?

- Estamos no lugar em que Ren queria parar.
- Sr. Kadam, estamos no meio do nada, cercados pela selva.
- Eu sei. Não tenha medo. Você estará segura. Ren irá protegê-la.

O Sr. Kadam pegou minha bolsa e se dirigiu à minha porta para abri-la.


Saltei do carro e olhei para ele.


- Vou ter que dormir na selva de novo, não é? Tem

certeza de que não posso ir com o senhor enquanto Ren resolve a vida dele?
- Lamento, Srta. Kelsey, mas desta vez ele vai
precisar da senhorita. É algo que não pode fazer sem sua ajuda.
- Legal - resmunguei. - E o senhor naturalmente
não pode me dizer do que se trata.
- Não cabe a mim dizer. Essa é uma história para ele partilhar.
- E quando o senhor vai voltar para nos buscar?
- Vou até a cidade fazer compras. Depois encontro
vocês aqui em três ou quatro dias. Talvez eu tenha que esperá-
los. Pode ser que ele não encontre o que está procurando nas primeiras noites.

Suspirei e lancei um olhar zangado para Ren.


- Mais selva. Muito bem, vamos logo com isso. Por favor, vá na frente.


O Sr. Kadam me entregou um frasco de repelente com

filtro solar, colocou mais algunas coisas na minha mochila e
me ajudou a colocá-la nos ombros. Soltei um suspiro profundo
enquanto o via se afastar no Jeep. Então me virei para seguir Ren mata adentro.

- Ren, por que sempre preciso segui-lo para o meio

da mata? Que tal da próxima vez você me seguir até um belo
spa ou quem sabe uma praia? O que me diz?

Ele fungou e continuou andando.


- Está certo. Mas você me deve uma depois desta.


Caminhamos pelo restante da tarde.


Mais tarde, comecei a ouvir um estrondo à nossa frente,

mas não conseguia identificar o que era. Quanto mais
andávamos, mais alto ele se tornava. Atravessamos um bosque
e chegamos a uma pequena clareira. Finalmente vi a fonte
daquele som. Era uma linda cachoeira.

Uma série de pedras cinzentas se espalhava como

degraus por um morro alto. A água espumava e fluía sobre
cada pedra, então despencava e se abria como um leque,
caindo em um amplo lago turquesa lá embaixo. Árvores e
pequenos arbustos com diminutas flores vermelhas cercavam o
lago. Era uma visão encantadora.

Quando me aproximei de um dos arbustos, percebi que

ele parecia se mover. Dei mais um passo e centenas de
borboletas alçaram voo. Havia duas variedades: uma era
marrom com listras cor de creme e a outra de um preto
amarronzado com listras e pintas azuis. Eu ri e rodopiei em
meio a uma nuvem de borboletas. Quando elas tornaram a
pousar, várias descansaram em meus braços e em minha blusa.

Subi em uma pedra que se debruçava sobre a queda

d’água e examinei uma borboleta empoleirada no meu dedo.
Quando ela voou, fiquei parada observando a água rolar morro
abaixo. Então ouvi uma voz às minhas costas.

- É lindo, não é? É o meu lugar preferido no mundo todo.

- É. Nunca vi nada assim.

Ren veio até mim e passou uma borboleta do meu braço para o seu dedo.


- Elas são chamadas de borboletas corvos e as outras

são tigres azuis. As tigres azuis são mais brilhantes e mais fáceis
de avistar, então vivem misturadas às borboletas corvos para se camuflar.
- Que interessante.

- E as borboletas corvos não são comestíveis. Na

verdade, são venenosas, por isso outras borboletas tentam
imitá-las para enganar os predadores.

Ele me pegou pela mão e me conduziu por uma trilha ao lado da cachoeira.


- Vamos acampar aqui. Sente-se. Tenho uma coisa para lhe falar.


Encontrei um lugar plano e pousei a mochila. Peguei

uma garrafa de água e me acomodei, encostada em uma pedra.

- Muito bem, pode falar.


Ren começou a andar de um lado para outro enquanto falava.


- Estamos aqui porque preciso encontrar meu irmão.


Engasguei com a água.


- Seu irmão? Achei que estivesse morto. Você não falou nada sobre ele, exceto

que foi amaldiçoado com você. Quer dizer que ele está vivo? Aqui?
- Para ser sincero, não sei se ainda está vivo.
Presumo que sim, porque eu estou. O Sr. Kadam acredita que
ele se esconde aqui, nesta selva.

Ele se virou e olhou a cachoeira, e então se sentou ao

meu lado, esticando as pernas compridas e pegando a minha
mão. Ficou brincando com os meus dedos enquanto falava.

- Creio que ainda esteja vivo. É o que sinto. Meu

plano é dar uma busca na área em círculos cada vez mais
amplos. No fim, um de nós vai detectar o cheiro do outro. Se ele
não aparecer ou se eu não conseguir captar seu cheiro em al-
guns dias, vamos voltar, encontrar o Sr. Kadam e continuar nossa jornada.
- E o que eu vou poder fazer?
- Esperar aqui. Tenho esperanças de que, se ele não
me ouvir, a sua presença possa convencê-lo. Também espero que...
- Espera que...?

Ele sacudiu a cabeça.


- Não é importante agora. - Ele apertou a minha

mão, distraído, e se pôs de pé. - Vou ajudá-la a montar
acampamento antes de dar início à minha busca.

Ren foi procurar madeira para a fogueira enquanto eu

desenrolava uma pequena barraca para duas pessoas, fácil de
montar, presa à parte externa da mochila. Obrigada, Sr. Kadam! Abri o zíper da
 bolsa da barraca e a stendi em um trecho de chão plano. Depois de alguns minutos, Ren veio me
ajudar. Ele já tinha acendido a fogueira e reunido uma pilha de lenha para mantê-la acesa.

- Você foi rápido - murmurei, com despeito,

enquanto esticava o tecido da barraca com um gancho.

Sua cabeça surgiu do outro lado e ele sorriu.


- Recebi um treinamento intensivo sobre como viver ao ar livre.

- Não me diga.

Ele riu.


- Kells, existem muitas coisas que você sabe fazer e

eu não. Como armar esta barraca, aparentemente.

Eu sorri.


- Puxe o tecido sobre o gancho na estaca.


Terminamos rapidamente e ele bateu as mãos, limpando-as.


- Não tínhamos barracas como esta há 300 anos.

Usávamos apenas estacas de madeira.

Ele veio até mim, puxou minha trança e beijou minha testa.


- Mantenha o fogo aceso. Ele afasta os animais

selvagens. Vou circular a área algumas vezes, mas volto antes de anoitecer.

Ren partiu para a selva novamente como tigre. Puxei a

trança, fiquei pensando nele por um minuto e sorri.

Enquanto esperava que ele voltasse, examinei a mochila

para ver o que o Sr. Kadam providenciara para o nosso jantar.
Ah, ele se superou novamente - frango e arroz desidratados
por congelamento e flan de chocolate de sobremesa. Despejei
um pouco de água da minha garrafa em uma panelinha e a
assentei em uma pedra plana que eu empurrara até o meio das
brasas. Quando a água borbulhou, usei uma camiseta como
pegador e transferi a água quente para a embalagem da
comida. Esperei vários minutos até que ela se reconstituísse e
então saboreei minha refeição. Com certeza estava mais gostosa
que o peru de tofu que Sarah prepara no Dia de Ação de Graças.

O céu começou a escurecer e achei que ficaria mais

segura dentro da barraca, então entrei e dobrei minha colcha
para usá-la como travesseiro.

Ren voltou logo depois e o ouvi colocar mais lenha na fogueira.


- Nenhum sinal dele - disse.


Então voltou à forma de tigre e se acomodou na abertura da barraca.


Abri o zíper da barraca e perguntei se ele se importaria

se eu usasse suas costas novamente como travesseiro. Ele se
esticou como resposta. Eu me aproximei, deitei a cabeça em seu
pelo macio e me enrolei com a colcha. Seu peito ecoava
ritmicamente em um ronronar profundo, o que me ajudou a adormecer.

Ren não estava lá quando acordei. Só voltou na hora do

almoço, quando eu estava escovando meu cabelo.

- Aqui, Kells. Trouxe uma coisa para você - disse ele, despretensioso, e me estendeu três mangas.

- Obrigada. Posso perguntar onde as conseguiu?
- Com macacos.

Interrompi o movimento da escova.


- Com macacos? Como assim?

- Bem, os macacos não gostam de tigres porque os
tigres comem os macacos. Assim, quando um tigre se aproxima,
eles sobem nas árvores e o atacam com frutas ou fezes. Para minha sorte, hoje atiraram frutas.

Engoli em seco.


- Você já... comeu um macaco?


Ren sorriu para mim.


- Bem, um tigre precisa comer.


Tirei um elástico da mochila para prender a trança.


- Eca. Isso é nojento.


Ele riu.


- Eu não comi nenhum macaco, Kells. Só estou

brincando com você. Os macacos são repulsivos. Têm gosto de
bola de tênis e cheiro de chulé. - Ele fez uma pausa. - Agora,
um belo e suculento cervo, isso, sim, é delicioso.

Ele estalou os lábios com exagero.


- Não preciso ouvir sobre suas caçadas.

- Ah, não? Eu gosto muito de caçar.

Ren imobilizou-se. Quase imperceptivelmente, ele

baixou o corpo devagar, até ficar agachado, equilibrando-se na
ponta dos pés. Então pousou a mão na grama à sua frente e
começou a se aproximar de mim, se arrastando. Ele estava me
rastreando, me caçando. Seus olhos se fixaram nos meus. Ele se
preparava para saltar. Seus lábios estavam repuxados em um
sorriso largo que deixava à mostra os dentes brancos e
brilhantes. Ele parecia... selvagem.

Então ele falou, com uma voz sedosa e hipnótica:


- Quando você está à espreita de uma presa, tem que

ficar imóvel e se esconder, permanecendo assim por muito
tempo. Se você falhar, a presa escapa.

Ele cobriu a distância que nos separava num piscar de olhos.


Embora eu o observasse atentamente, me assustei com a

rapidez com que podia se mover. Uma veia começou a latejar
em meu pescoço, que era onde seus lábios agora pairavam,
como se ele estivesse buscando minha jugular.

Ele jogou meu cabelo para trás e se dirigiu à minha orelha, sussurrando:


- E você fica... com fome.


Suas palavras soaram abafadas. Seu hálito quente fazia

cócegas na minha orelha e disparou um arrepio por todo o meu corpo.

Virei ligeiramente a cabeça para olhar para ele. Seus

olhos haviam mudado. Estavam mais azuis do que o normal e
estudavam o meu rosto. Sua mão permanecia no meu cabelo e
os olhos se dirigiram à minha boca. De repente, tive a
impressão de que era essa a sensação que um cervo experimentava.

Ren estava me deixando nervosa. Pisquei e engoli em

seco. Seus olhos voltaram aos meus. Deve ter percebido minha
apreensão, pois sua expressão mudou. Ele soltou meu cabelo e relaxou a postura.

- Desculpe se a assustei, Kelsey. Não vai mais acontecer.


Quando ele recuou um passo, eu voltei a respirar.


- Não quero ouvir mais nada sobre caçadas -

declarei, trêmula. - Isso me assusta. O mínimo que você pode
fazer é não me falar nada a respeito. Principalmente quando
tenho que ficar com você aqui ao ar livre, está bem?

Ele riu.


- Kelsey, todos nós temos algumas tendências

animais. Eu adorava caçar, mesmo quando era jovem.

Estremeci.


- Ótimo. Mas guarde suas tendências animais para

si mesmo.

Ele se inclinou na minha direção outra vez e puxou um fio do meu cabelo.


- Ora, Kells, você parece gostar de algumas de minhas tendências animais.


Ele começou a emitir um ronco no peito e percebi que ele estava ronronando.


- Pare com isso! - reclamei.


Ele riu, foi até a mochila e apanhou uma das frutas.


- Então, você quer essas mangas ou não? Vou lavar para você.

- Bem, considerando que você as carregou na boca
essa distância toda só para mim e levando-se em conta a
origem das frutas... sinceramente, não.

Seus ombros murcharam.


- Não está desidratada - disse ele.

- Está bem. Vou experimentar.

Ele lavou uma das frutas, descascou-a com uma faca

apanhada na mochila e a fatiou para mim. Nós nos sentamos
lado a lado e saboreamos a manga. Era suculenta e deliciosa,
mas eu não daria a ele a satisfação de saber que eu estava gostando tanto.

- Ren?


Lambi o sumo dos dedos e peguei outro pedaço.


- Diga.

- É seguro nadar perto da cachoeira?
- Claro. Este lugar era muito especial para mim. Eu
sempre vinha aqui para fugir às pressões da vida no palácio e
poder ficar sozinho e pensar.

Ele olhou para mim.


- Na verdade, você é a primeira pessoa a quem

mostrei este lugar, sem contar minha família e o Sr. Kadam, é claro.

Olhei para a linda queda d’água e comecei a falar baixinho:


- Existem muitas cachoeiras no Oregon. Acho que

conheci quase todas. Minha família costumava fazer
piqueniques à margem delas. Lembro-me de uma vez em que
fiquei observando uma delas bem de perto com meu pai
enquanto a nuvem de borrifos ia aos poucos nos encharcando.
- Alguma delas se parecia com esta?

Sorri.


- Não. Esta é única. Na verdade, minha época

favorita para admirá-las era o inverno.
- Nunca vi uma queda d’água no inverno.
- É lindo. A água congela quando cai pelas
montanhas íngremes. As pedras lisas em torno das cataratas se
tornam escorregadias com o gelo e, à medida que mais água
flui sobre elas, pingentes de gelo começam a crescer. As pontas
congeladas aos poucos se avolumam e se alongam ao se
arrastarem morro abaixo, avançando até tocarem a água
abaixo, formando cordas longas, grossas e retorcidas. A água
que ainda corre flui gotejando sobre os pingentes de gelo e
recobrindo-os de camadas brilhantes. No Oregon, as colinas
em torno das cachoeiras são exuberantes, cobertas por árvores
perenes, e às vezes ficam com o cume coberto de neve.

Ele não fez comentários.


- Ren?


Virei-me para ver se ele ainda estava prestando atenção

e o surpreendi me estudando atentamente.

Um sorriso lento e preguiçoso iluminou o seu rosto.


- Parece muito bonito.


Corei e desviei o olhar.


Ele pigarreou deliberadamente.


- Parece incrível, mas frio. A água aqui não congela.

- Ele pegou minha mão e entrelaçou nossos dedos. - Kelsey,
lamento que seus pais tenham partido.
- Eu também. Obrigada por dividir sua cachoeira
comigo. Meus pais teriam adorado este lugar. - Sorri para ele e
então fiz um movimento com a cabeça na direção da selva. - Se
você não se importa, eu gostaria de um pouco de privacidade para vestir meu maiô.

Ele se pôs de pé e fez uma mesura dramática.


- Que nunca se diga que o príncipe Alagan Dhiren

Rajaram negou o pedido de uma linda dama.

Ele lavou as mãos pegajosas no lago, transformou-se em

tigre e desapareceu selva adentro.

Dei algum tempo para que Ren se afastasse, vesti o maiô

e mergulhei na água.

Era cristalina e rapidamente refrescou minha pele

quente e suada. Estava deliciosa. Depois de nadar e explorar o
lago, fui até a cachoeira e encontrei uma pedra para me sentar
sob os borrifos. Deixei a água cair sobre meu corpo em jatos
gelados. Depois, corri para o lado ensolarado da pedra e dobrei
as pernas, tirando-as da água.

Sentia-me uma sereia inspecionando seus pacíficos

domínios. Tudo era tranquilo e agradável. Com a água azul, as
árvores verdes e as borboletas voejando aqui e ali, parecia uma
cena saída de Sonho de uma noite de verão. Eu podia até
imaginar as fadas voando de flor em flor.

De repente, Ren surgiu galopando do meio da selva e

deu um salto no ar. Os mais de 200 quilos de seu corpo branco
de tigre aterrissaram ruidosamente no meio do lago,
propagando ondas que vieram bater na minha pedra.

- Ué - falei quando ele emergiu -, pensei que os

tigres detestassem a água.

Ele veio até onde eu estava e ficou nadando em círculos,

me mostrando que os tigres sabiam nadar. Mergulhando a
cabeçorra sob a queda d‘água, ele passou por trás dela e veio
até a minha pedra. Erguendo-se atrás de mim, sacudiu
violentamente o pêlo, feito um cachorro. A água espirrou em
todas as direções, inclusive em mim.

- Ei, eu estava me secando!


Deslizei de volta para a água e nadei para o centro do

lago. Ele também tornou a mergulhar e ficou dando voltas em
torno de mim enquanto eu jogava água nele, rindo. Depois
submergiu e ficou muito tempo debaixo da água. Por fim,
emergiu, pulou em cima de uma pedra e saltou no ar, caindo
de barriga na água, bem ao meu lado. Brincamos até ficarmos
cansados. Então nadei de volta à cachoeira e fiquei parada sob
a torrente com os braços erguidos, deixando a água cair à minha volta.

Até que ouvi um estrondo e um baque vindos de cima.

Algumas pedras despencaram com uma pancada na água ao
meu lado. Quando eu saía apressada da cachoeira, uma pedra
me atingiu na parte posterior da cabeça. Minhas pálpebras
tremularam e se fecharam enquanto meu corpo desabava na água fria.

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