terça-feira, 22 de outubro de 2013

Capítulo 14 - Tigre, Tigre

- Kelsey! Kelsey! Abra os olhos!

Alguém me sacudia. Com força. Tudo o que eu queria

era resvalar de volta ao sono negro e despreocupado, mas a voz
soava desesperada, insistente.

- Kelsey, me escute! Abra os olhos, por favor!


Tentei abrir os olhos, mas doía. A luz do sol piorava o

doloroso latejar na minha cabeça. Que dor horrível! Minha
mente começou a clarear e reconheci nosso local de
acampamento e Ren, que estava ajoelhado ao meu lado. Seu
cabelo molhado estava jogado para trás e ele tinha uma
expressão preocupada no lindo rosto.

- Kells, como você se sente? Está bem?


Eu pretendia dar a ele uma resposta sarcástica, mas, em

vez disso, engasguei e comecei a tossir, expelindo água.
Respirei fundo, ouvi um ronco úmido em meus pulmões e tossi
um pouco mais.

- Vire-se de lado. Ajuda a pôr a água para fora. Deixe-me ajudá-la.


Ele me puxou em sua direção, deitando-me de lado.

Tossi mais um pouco de água. Ele tirou a camisa molhada e a
dobrou. Então delicadamente me ergueu e a colocou debaixo
de minha cabeça, que doía demais para apreciar seu... peito
nu... bronzeado... esculpido... musculoso.

Acho que devo estar bem, se posso admirar a visão,

pensei. Nossa, eu precisaria estar morta para não admirá-la.

Estremeci quando a mão de Ren passou pela minha

cabeça, tirando-me de meus devaneios.

- Você está com um galo feio aqui.


Levei a mão até a protuberância gigante na parte

posterior do meu crânio. Toquei-a com cautela e recordei a
fonte de minha dor de cabeça. Devo ter perdido a consciência
quando a pedra me atingiu. Ren salvou minha vida. Outra vez.

Ergui os olhos para ele, que me fitava com uma

expressão desesperada e tremia. Percebi que ele devia ter
assumido a forma humana quando me arrastou para fora do
lago e permanecido ao meu lado até eu acordar. Só Deus sabe
há quanto tempo estou aqui deitada inconsciente.

- Ren, você está com dor. Ficou tempo demais nessa forma hoje.


Ele sacudiu a cabeça, negando, mas eu o vi trincar os dentes.


Segurei seu braço.


- Eu vou ficar bem. É só um galo na cabeça. Não se

preocupe comigo. Tenho certeza de que o Sr. Kadam pôs
algumas aspirinas na mochila. Vou tomar uns comprimidos e
me deitar para descansar um pouco.

Ele deslizou o dedo lentamente da minha têmpora à

bochecha e sorriu. Quando retirou a mão, todo o seu braço se
sacudia e tremores faziam ondular a camada sob a sua pele.

- Kells, eu...


Seu rosto se retesou. Ele jogou a cabeça para o lado,

rosnou de raiva e se metamorfoseou em tigre. Grunhiu
baixinho, então aquietou-se e se aproximou de mim. Deitou-se
ao meu lado e ficou me observando atentamente com seus
olhos azuis. Acariciei suas costas, em parte para tranquilizá-lo
e em parte porque isso também me acalmava.

Olhei para o alto, por entre as árvores salpicadas de sol,

e desejei que a dor de cabeça cedesse. Eu sabia que teria que me
mexer em algum momento, mas não queria fazer isso. O tigre
ronronava baixinho e o som reconfortante acabou aliviando a
dor. Respirando fundo, eu me levantei, sabendo que ficaria
mais confortável se trocasse de roupa.

Sentei-me devagar, enquanto respirava fundo,

esperando que, se me movimentasse lentamente, a náusea se
dissiparia e o mundo pararia de rodar. Ren ergueu a cabeça,
atento aos meus esforços.

- Obrigada por me salvar - sussurrei enquanto

acariciava-lhe o dorso. Dei um beijo no alto da cabeça peluda.
- O que eu faria sem você?

Abrindo o zíper da mochila, encontrei uma caixinha

contendo uma variedade de medicamentos, inclusive aspirina.
Coloquei dois comprimidos na boca e bebi água. Puxando
minha roupa seca, virei-me para Ren.

- Vamos combinar uma coisa? Quero trocar de

roupa, por isso agradeceria muito se você fosse para a selva
outra vez por alguns minutos.

Ele rosnou para mim, parecendo um pouco zangado.


- Estou falando sério.


Ele rosnou um pouco mais alto.


Descansei a palma da mão na testa e me segurei em

uma árvore próxima a fim de firmar minhas pernas vacilantes.

- Preciso trocar de roupa e você não vai ficar aqui xeretando.


Ele bufou, pôs-se de pé, sacudiu o corpo e a cabeça

como se dissesse não, e me fitou. Sustentei seu olhar e apontei
para a selva. Ele finalmente deu meia-volta, mas então entrou
na barraca e se deitou sobre a minha colcha. Sua cabeça estava
voltada para dentro da barraca, enquanto a cauda se contraía
de um lado para outro pela abertura.

Suspirei e estremeci ao virar a cabeça rápido demais.


- Acho que isso é o máximo que vou conseguir de

você, não é? Tigre teimoso!

Aceitei o meio-termo, mas fiquei de olho em sua cauda

inquieta enquanto trocava de roupa.

Comecei a me sentir um pouco melhor com as roupas

secas. A aspirina também passara a fazer efeito e a cabeça
latejava menos, mas ainda estava sensível. Concluí que preferia
dormir a comer, então pulei o jantar e optei por um chocolate quente.

Andando com cuidado pelo acampamento, acrescentei

alguns pedaços de madeira à fogueira e pus água para ferver.
Agachando-me, mexi no fogo um pouco com um galho
comprido para fazê-lo crepitar novamente e peguei um pacote
de chocolate em pó. Ren observava cada movimento meu.

Eu o dispensei.


- Estou bem. De verdade. Pode ir em uma de suas

incursões de reconhecimento ou sei lá o quê.

Ren simplesmente ficou lá sentado, teimoso, agitando a cauda de tigre.


- Estou falando sério. - Girei o dedo, fazendo um

círculo. - Vá rodar por aí. Procure seu irmão. Eu só vou pegar
um pouco de lenha e depois vou dormir.


Ele continuou imóvel e fez um som que se assemelhava

um pouco a um cachorro ganindo. Ri e fiz um carinho em sua cabeça.

- Sabe, apesar das aparências, costumo me virar sozinha direitinho.


O tigre resmungou e se sentou ao meu lado. Recostei-

me em seu ombro enquanto misturava meu chocolate quente.

Antes que o sol se pusesse, peguei mais lenha e bebi

água. Quando rastejei para dentro da barraca, Ren me seguiu.
Ele estendeu as patas e eu cuidadosamente pousei a cabeça
sobre elas. Ouvi um profundo suspiro de tigre e ele acomodou
a cabeça perto da minha. Quando acordei na manhã seguinte,
minha cabeça ainda estava apoiada nas patas macias de Ren,
mas eu havia me virado, enterrado meu rosto em seu peito e
enlaçado o pescoço dele com meu braço, aninhando-me como
se Ren fosse um bichinho de pelúcia gigante.

Eu me afastei, um pouco sem jeito. Quando me levantei

para me espreguiçar, apalpei com cuidado meu galo e fiquei
feliz ao ver que ele tinha diminuído bastante. Eu me sentia muito melhor.

Esfomeada, comi algumas barras de cereais e peguei um

pacote de aveia. Aqueci novamente na fogueira água suficiente
para um mingau de aveia e outro chocolate quente. Depois do
café da manhã, eu disse a Ren que podia partir em sua patrulha
e que eu iria lavar meu cabelo.

Ele esperou um pouco, observando meus movimentos

até se sentir tranquilizado, e então se foi, deixando-me por
minha própria conta. Apanhei um frasco pequeno do xampu
biodegradável que o Sr. Kadam colocara na mochila para mim.

Depois de vestir o maiô e um short e calçar os tênis,

desci até minha pedra do banho de sol. Fiquei à margem da
cachoeira, bem longe do lugar onde fora atingida pelas pedras,
e molhei e ensaboei com cuidado meu cabelo. Inclinando-me
ligeiramente na direção da água espumante, deixei-a enxaguar
o xampu. A água fria fez bem à minha cabeça dolorida.

Deslizando para o lado ensolarado da pedra, sentei-me

para escovar os cabelos. Quando terminei, fechei os olhos e
virei o rosto na direção do sol matinal, deixando-o me aquecer
enquanto meu cabelo secava. Esse lugar era um paraíso, não
havia como negar. Mesmo com um galo na cabeça e minha
aversão a acampamentos, eu conseguia apreciar a beleza à minha volta.

Não que eu não gostasse da natureza. Quando eu era

criança, adorava ficar ao ar livre com meus pais. Só que eu
gostava de dormir em minha própria cama depois de me
aventurar no meio do mato.

Ren voltou no meio do dia e se sentou ao meu lado

enquanto comíamos nosso almoço desidratado. Aquela era a
primeira vez que eu o via se alimentar como homem, sem
contar a manga. Mais tarde, vasculhei a bolsa em busca do meu
livro de poesia. Perguntei a Ren se ele queria que eu lesse para ele.

Ele havia se transformado novamente em tigre e eu não

ouvi nenhum grunhido ou sinal de protesto felino. Peguei o
livro e me sentei com as costas apoiadas em uma grande pedra.
Ele veio até mim e me surpreendeu transformando-se em
homem. Virou-se de costas e deitou a cabeça no meu colo antes
que eu pudesse dizer alguma coisa. Então suspirou
profundamente e fechou os olhos.

Eu ri e disse:


- Acho que isso significa sim, não é?


Mantendo os olhos fechados, ele murmurou:


- Sim, por favor.


Folheei o livro para escolher um poema.


- Ah, este parece apropriado. Acho que você vai

gostar. É um dos meus favoritos e também foi escrito por Shakespeare.

Comecei a ler, segurando o livro com uma das mãos

enquanto com a outra acariciava distraidamente o cabelo de Ren.


Soneto XVIII


Se te comparo a um dia de verão,

És por certo mais belo e mais ameno.
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Às vezes brilha o Sol em demasia,
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na eterna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.


- Isso foi... excelente. - Sua voz era suave. - Gosto desse Shakespeare.

- Eu também.

Eu estava folheando o livro à procura de outro poema quando Ren disse:


- Kelsey, talvez eu pudesse partilhar um poema do meu país... com você.


Surpresa, deixei de lado meu livro.


- Eu adoraria ouvir poesia indiana.


Ele abriu os olhos e fitou as árvores acima de nós.

Pegando minha mão, entrelaçou meus dedos nos dele e nossas
mãos descansaram em seu peito. Uma brisa leve soprava,
fazendo as folhas dançarem ao sol, tecendo um desenho de
sombras e luz em seu lindo rosto.

- Este é um poema antigo da índia. Faz parte de uma

epopeia que é contada desde que me entendo por gente.
Chama-se "Sakuntala" e o autor é Kalidasa.


Teu coração, de fato, eu não conheço: o meu, porém,

oh!

Cruel, o amor aquece de dia e de noite; e todas as

minhas virtudes estão em ti centradas.

Tu, ó esguia donzela, o amor apenas aquece; mas a mim

ele queima; como a estrela do dia apenas sufoca a fragrância
da flor noturna, mas extingue o próprio orbe da lua.

Este meu coração, oh, tu que és de todas as coisas a que

lhe é mais cara, não terá nenhum propósito que não seja tu.



- Ren, é lindo!


Seus olhos se voltaram para mim. Ele sorriu e ergueu a

mão para tocar o meu rosto. Meu pulso se acelerou e meu rosto
queimou ao seu toque. De repente tive plena consciência de
que meus dedos ainda estavam entrelaçados nos cabelos dele e
de que minha mão se encontrava pousada em seu peito.
Rapidamente os recolhi, apoiando-os no colo. Ele se sentou,
apoiando-se em uma só mão, o que trouxe aquele rosto lindo
para muito perto do meu. Seus dedos deslizaram até o meu
queixo e ele inclinou meu rosto de modo que os meus olhos
encontrassem o azul intenso dos seus.

- Kelsey?

- Sim? - sussurrei.
- Eu queria sua permissão... para beijá-la.

Opa. Alerta vermelho! A sensação confortável que eu

desfrutava havia apenas alguns minutos com o meu tigre tinha
desaparecido. Eu me senti extremamente nervosa e aflita.
Minha perspectiva girou 180 graus. É claro que eu tinha
consciência de que um coração de homem batia dentro do
corpo de tigre, mas, de alguma forma, eu havia empurrado esse
conhecimento para o fundo da mente.

O fato de que ele era um príncipe explodiu em minha

mente. Eu o fitei, atônita. Ele era, para ser sincera, muita areia
para o meu caminhãozinho. Eu jamais considerara a
possibilidade de um relacionamento com ele.

Sua pergunta me forçou a reconhecer que meu tigre de

estimação, com quem eu me sentia totalmente à vontade, era,
na verdade, um modelo de masculinidade. Meu coração
martelava no peito. Vários pensamentos cruzavam minha
mente ao mesmo tempo, mas o predominante era: eu gostaria
muito de ser beijada por Ren.

Outros pensamentos se insinuavam nos limites da

minha consciência, como: é muito cedo, nós mal nos
conhecemos, talvez ele só esteja se sentindo sozinho. Mas deixei
que fossem levados para longe. Ignorando a cautela, decidi que
queria, sim, que ele me beijasse.

Ren chegou um milímetro mais perto de mim. Fechei os

olhos, respirei fundo e então... esperei. Quando abri os olhos,
ele ainda me fitava; estava mesmo esperando minha permissão.
Não havia nada no mundo que eu quisesse mais naquele
momento do que ser beijada por aquele homem lindo. Mas eu
arruinei tudo. Por alguma razão, me fixei na palavra permissão.

- O que... é... o que você quer dizer com querer

minha permissão? - perguntei, nervosa.

Ele me olhou com curiosidade, o que me deixou ainda

mais em pânico. Eu não só nunca beijara um garoto antes como
nunca encontrara um que eu quisesse beijar até conhecer Ren.
Assim, em vez de beijá-lo, fiquei aturdida e comecei a
apresentar razões para não fazê-lo.

- Garotas precisam ser arrebatadas - balbuciei - e

pedir permissão é tão... tão... antiquado. Não é espontâneo. Não
combina com paixão. Se você tem que pedir, então a resposta é... não.

Que idiota!, pensei comigo. Acabei de dizer a este lindo

e gentil príncipe de olhos azuis que ele é antiquado.

Ren me olhou durante um longo momento, longo o

suficiente para que eu visse a dor em seus olhos, antes de
varrer de seu rosto qualquer expressão. Levantou-se
rapidamente, fez uma mesura formal e declarou baixinho:

- Não vou lhe pedir de novo, Kelsey. Peço desculpas pelo meu atrevimento.


Então se transformou em tigre e desapareceu na selva,

deixando-me sozinha para me recriminar por minha estupidez.

- Ren, espere! - gritei.


Mas era tarde demais. Ele se fora.


Não posso acreditar que o insultei dessa forma! Ele vai

me odiar! Como pude fazer isso com ele? Eu sabia que só tinha
dito aquelas coisas porque estava nervosa, mas isso não era
desculpa. O que ele quis dizer com "Não vou lhe pedir de
novo"? Eu quero que ele me peça de novo.

Repassei mil vezes na mente as minhas palavras e

pensei em todas as coisas que poderia ter dito e que me trariam
um resultado melhor. Coisas como "Pensei que você nunca
pediria" ou "Eu estava prestes a lhe fazer a mesma pergunta".

Eu poderia simplesmente tê-lo agarrado e beijado

primeiro. Até mesmo um simples "Sim" teria funcionado. Mas
não, eu tinha que ficar dissertando sobre permissão.

Ren me deixou sozinha o resto do dia, o que me deu

bastante tempo para me martirizar.

No fim da tarde, eu estava sentada na minha pedra

ensolarada com o diário aberto, caneta na mão, admirando a
paisagem, absolutamente infeliz, quando ouvi um barulho na
selva perto do nosso acampamento.

Arquejei de susto quando um grande felino negro

emergiu do meio das árvores. Ele circulou a barraca e parou
para farejar minha colcha. Então foi até a fogueira e se sentou
ao lado dela, sem o menor medo. Depois de alguns minutos,
saltou para o meio das árvores, só para reaparecer na clareira
vindo pelo outro lado. Fiquei parada, imóvel, torcendo para que
ele não tivesse me visto.

Era muito maior que a pantera que me atacara perto da

caverna de Kenhari. A medida que se aproximava de onde eu
estava sentada, pude distinguir listras pretas retintas em um
manto de pelo escuro. Olhos brilhantes e dourados
esquadrinhavam o acampamento. Eu nunca ouvira falar de um
tigre negro, mas aquele certamente era um tigre! Ele não devia
ter me visto, pois, após circular o acampamento e farejar o ar
algumas vezes, desapareceu novamente na selva.

Ainda assim, por segurança, fiquei sentada na pedra

por muito tempo para ter certeza de que ele tinha ido embora de vez.

Comecei a me sentir dolorida por ficar na mesma

posição e, como não tinha ouvido mais nenhum ruído, concluí
que já era seguro sair dali. No mesmo instante, um rapaz
surgiu do meio da selva. Ele se aproximou de mim, atrevido,
olhou-me de cima a baixo e disse:

- Ora, ora, ora. Quantas surpresas.


Vestia camisa e calça pretas. Era muito bonito e mais

moreno que Ren. Sua pele era da cor de bronze antigo e os
cabelos muito pretos, mais compridos que os de Ren, só que
igualmente penteados para trás, afastados do rosto, e levemente ondulados.

Seus olhos eram dourados com pontos cor de cobre.

Tentei identificar aquela cor. Nunca tinha visto nada igual.
Eram como ouro de pirata - a cor de dobrões de ouro. Na
verdade, pirata era uma boa palavra para descrevê-lo. Parecia
o tipo de homem que pode ser encontrado decorando a capa de
um romance histórico, no papel de um moreno sedutor.
Enquanto ele sorria para mim, seus olhos se enrugavam
ligeiramente nos cantos.

Eu soube na hora para quem estava olhando: o irmão de

Ren. Ambos eram muito bonitos e exibiam a mesma postura
majestosa. Tinham a mesma altura, mas, enquanto Ren era
magro e musculoso, o irmão era mais forte, com braços mais
poderosos. Pensei que ele devia ter puxado mais ao pai, ao
passo que Ren, com seus traços asiáticos mais proeminentes -
os olhos azuis um pouco amendoados e a pele dourada -,
certamente puxara à mãe.

Estranhamente, eu não sentia medo, embora

reconhecesse um sinal de perigo. Era quase como se sua parte
tigre houvesse sobrepujado o homem.

- Antes que diga qualquer coisa, saiba que eu sei

quem você é - declarei. - E sei o que você é.

Ele avançou e rapidamente cobriu a distância que nos

separava. Então segurou o meu queixo, erguendo meu rosto
para seu cuidadoso exame.

- E quem ou o que você acha que sou, meu encanto?


Sua voz era grave, suave e sedosa. O sotaque era mais

acentuado que o de Ren e ele hesitava, como se não usasse a
voz havia muito tempo.

- Você é o irmão de Ren, aquele que o traiu e roubou sua noiva.


Seus olhos se estreitaram e eu senti uma pontada de

medo. Ele estalou a língua.

- Tsc, tsc, tsc. Ora, ora. O que aconteceu com os seus

modos? Ainda nem fomos devidamente apresentados e você já
está fazendo graves acusações contra mim. Meu nome é
Kishan, o infeliz irmão caçula desse de quem você fala.

Ele ergueu um cacho do meu cabelo e o esfregou entre

os dedos antes de inclinar a cabeça.

- Sou obrigado a dar crédito a Ren. Ele sempre

consegue se cercar de belas mulheres.

Eu estava prestes a me afastar dele quando ouvi um

bramido vindo das árvores e vi Ren entrar ruidosamente no
acampamento e saltar, rosnando para o ar. Seu irmão me fez
ficar de lado e então saltou também, metamorfoseando-se no
tigre negro que eu vira antes.

Ren estava além da fúria. Rugia tão alto que eu sentia as

vibrações percorrerem o meu corpo. Os dois tigres colidiram
no ar com um estampido explosivo e desabaram com força no
chão. Eles rolaram na grama, enfiando as garras nas costas um
do outro e mordendo sempre que tinham chance.

Corri e me pus o mais longe possível deles. Parei perto

da cachoeira, atrás de uns arbustos. Gritei para que parassem,
mas eles faziam tanto barulho que abafavam a minha voz. Os
dois grandes felinos rolaram, afastando-se, e se encararam.
Ficaram abaixados junto ao solo, as caudas agitadas, prontos
para atacar. Então começaram a circundar a fogueira, mantendo-a entre eles.

No momento, rosnavam ameaçadoramente, aferrados

em um combate de olhares. Decidi que essa era a melhor hora
para intervir, quando as garras estavam no chão e não no ar.

Aproximei-me lentamente dos dois tigres, mantendo-me mais perto de Ren.


Reunindo coragem, supliquei:


- Por favor, parem com isso. Vocês são irmãos. Não

importa o que aconteceu no passado. Precisam conversar. Foi
você quem quis procurá-lo - lembrei a Ren. - Agora é sua
chance de conversar, de lhe dizer o que precisa dizer.

Olhei para Kishan.


- E quanto a você, Ren está cativo há muitos anos e

estamos trabalhando numa forma de ajudar vocês dois. Devia ouvi-lo.

Ren se transformou em homem.


- Você está certa, Kelsey - disse asperamente. - Eu

vim, de fato, conversar, mas vejo que ainda não posso confiar
nele. Não existe o menor... vestígio de consideração. Eu nunca deveria ter vindo aqui.
- Mas, Ren...

Ren se movimentou à minha frente e cuspiu, furioso, no tigre negro.


- Vaslyata karanã! Badamãsa! Estou cercando você

há dois dias! Você não tinha o direito de vir aqui sabendo que
eu não estava! E, se tiver amor à vida, nunca mais vai tocar em Kelsey!

O irmão de Ren também voltou à forma humana, deu

de ombros e disse calmamente:

- Eu queria ver o que você estava protegendo tão

ferozmente. Tem razão. Estou seguindo você há dois dias,
chegando perto o bastante para ver o que está aprontando, mas
me mantendo longe o suficiente para poder me aproximar de
você em meus termos. Quanto a ficar aqui para ouvi-lo, não há
nada que você tenha a dizer que possa me interessar, Murkha.

Kishan esfregou o maxilar e sorriu enquanto traçava

com o dedo os longos arranhões deixados por sua luta com
Ren. Virou-se para mim com um movimento rápido e, com
uma olhadela para o irmão, acrescentou:

- A menos que queira falar sobre ela. Estou sempre

interessado em suas mulheres.

Ren me afastou e respondeu com um rugido de ultraje.

Transformando-se em pleno ar, ele tornou a atacar o irmão. Os
dois rolaram pelo acampamento mordendo-se e arranhando-
se, batendo em árvores e caindo sobre pedras pontiagudas. Ren
atacou o irmão com a pata, mas acabou atingindo uma árvore,
deixando marcas profundas e dentadas no tronco grosso.

O tigre negro partiu em disparada mata adentro, com

Ren em seu encalço. Os rugidos de fúria deles ecoaram pelas
árvores, assustando um bando de aves, que decolou grasnando.
A briga prosseguiu com os dois indo de uma parte da selva
para outra. Eu podia ver por onde seguiam, de pé em minha
pedra, observando as árvores sacudirem na selva e
acompanhando a procissão de aves irritadas, afugentadas de seus poleiros.

Ren finalmente retornou ao acampamento com o irmão

quase que o cavalgando, cravando as garras em suas costas e
mordendo-lhe o pescoço. Ren ergueu-se nas patas traseiras e se
livrou do irmão. Então saltou sobre uma pedra grande
debruçada sobre o lago e virou-se, encarando-o.

Recuperando-se, o tigre negro saltou sobre Ren, que

pulou para bloqueá-lo. O movimento acabou derrubando ambos no lago.

Fiquei na margem assistindo à luta. Um tigre emergia

violentamente da água e atacava o outro, empurrando-o para
baixo. As garras laceravam caras, costas e a pele sensível das
barrigas enquanto os dois grandes felinos se agrediam.
Nenhum dos dois parecia dominar o outro.

Quando eu achava que eles não iriam mais parar, o

combate pareceu abrandar. Kishan arrastou o corpo exausto
para fora da água, afastou-se alguns passos e desabou na
grama. Arfando pesadamente, ele descansou por um minuto
antes de começar a lamber as patas.

Ren então saiu da água. Ele se colocou entre mim e o

irmão e vergou-se aos meus pés. Arranhões profundos
cobriam-lhe o corpo e o sangue vertia de cortes que se
destacavam contra o pelo branco. Um talho medonho ia de sua
fronte ao queixo, atravessando o olho direito e o focinho. Um
grande furo causado por uma mordida em seu pescoço
sangrava lentamente.

Desviei-me dele e corri para pegar a mochila,

vasculhando-a até encontrar o kit de primeiros socorros, abri-
lo e tirar um pequeno frasco de álcool medicinal e um grande
rolo de gaze. Minha aversão a sangue e ferimentos foi deixada
de lado quando o instinto protetor tomou conta de mim. Eu
sentia mais medo por eles do que deles e sabia que os dois
precisavam de ajuda. De alguma forma, encontrei coragem.

Dirigindo-me primeiro a Ren, lavei com água o

cascalho e a terra dos ferimentos e então despejei álcool
medicinal na gaze e pressionei sobre a ferida mais feia. Ele não
parecia mortalmente ferido, desde que eu conseguisse deter o
sangramento, mas havia vários cortes profundos. Na lateral de
seu corpo a pele estava tão dilacerada que parecia ter passado
por um moedor de carne.

Ele gemeu baixinho quando fui de suas costas para o

pescoço e limpei o furo ali aberto. Peguei uma atadura grande
no kit, passei álcool nela, pressionei-a sobre o flanco
machucado de seu corpo e apertei para deter o sangramento.
Ren rugiu de leve com a dor. Deixei a atadura no lugar. Por
fim, limpei sua cara, murmurando palavras tranquilizadoras
enquanto trabalhava na testa e no focinho, tomando o cuidado
de evitar o olho. Não parecia mais tão ruim. Talvez eu tivesse
imaginado que era pior do que na realidade.

Fiz o melhor que pude, mas estava preocupada com

uma possível infecção, principalmente no flanco e no olho de
Ren. Uma lágrima rolou pelo meu rosto quando eu pressionava
a gaze em sua testa.

Ele lambia meu pulso enquanto eu trabalhava. Fiz um

carinho em sua cara e sussurrei:

- Ren, isso é horrível. Queria que nada disso tivesse

acontecido. Sinto muito. Deve doer demais. - Uma lágrima caiu
em seu focinho. - Vou cuidar do seu irmão agora.

Enxuguei os olhos e peguei outro rolo de gaze. Segui o

mesmo processo com o tigre negro. O talho mais feio e aberto
ia do pescoço até o peito, por isso fiquei bastante tempo nessa
área. Uma mordida profunda em suas costas estava cheia de
terra. A princípio, sangrava profusamente, o que devia ser bom,
pois o sangue ajudava a limpar o ferimento. Apliquei pressão
por alguns minutos, até o sangramento diminuir o suficiente
para que eu pudesse limpar o lanho. Suas costas estremeceram
e ele grunhiu quando passei álcool no local.

Mantive a gaze sobre a ferida e mais lágrimas pingaram do meu queixo.


- Este aqui precisa de pontos. - Funguei. Então,

dirigindo-me aos dois tigres, ralhei: - Vocês dois
provavelmente vão ter infecção e suas caudas vão cair.

Kishan emitiu um resmungo que mais parecia uma

risada, o que me fez enrijecer e sentir um pouco de raiva.

- Espero que vocês dois fiquem contentes em saber

que limpar feridas me apavora. Odeio sangue. Além do mais,
para seu governo, eu decido quem vai ou não me tocar. Não
sou um novelo de lã que possa ser disputado por dois gatos.
Tampouco sou a pessoa por quem no fundo estão brigando. O
que aconteceu entre vocês dois acabou há muito tempo e
espero de coração que aprendam a perdoar um ao outro.

Olhos dourados se fixaram nos meus e eu expliquei:


- Ren e eu estamos aqui para tentar quebrar a

maldição. O Sr. Kadam está nos ajudando e temos uma boa
ideia de por onde começar. Vamos levar quatro oferendas para
Durga e, em troca, vocês dois poderão voltar a ser homens.
Agora que você sabe por que estamos aqui, podemos voltar ao
Sr. Kadam e partir. Acho que os dois precisam ir a um hospital.

Ren resmungou e começou a lamber as patas. O tigre

negro rolou de lado para me mostrar um extenso arranhão que
ia do pescoço até a barriga. Limpei esse também. Quando
terminei, guardei o frasco de álcool na mochila. Enxuguei os
olhos na manga da blusa e dei um pulo quando me virei e dei
de cara com o irmão de Ren atrás de mim, na forma humana.

Ren se levantou, alerta, e o observou com cuidado,

desconfiado de cada movimento de Kishan. A cauda de Ren se
agitava de um lado para outro e um grunhido profundo saiu de seu peito.

Kishan baixou os olhos para Ren, que havia se

aproximado ainda mais, e então olhou de volta para mim.
Kishan estendeu a mão e, quando a apertei, ele levou a minha
aos lábios e a beijou. Então fez uma mesura profunda, cheio de pose.

- Posso perguntar o seu nome?

- Meu nome é Kelsey. Kelsey Hayes.
- Bem, Kelsey, prezo todos os esforços que você fez
por nós. Peço desculpas se a assustei mais cedo. Estou - ele
sorriu - fora de forma quando se trata de conversar com
moças. Quanto a essas oferendas que vocês vão fazer a Durga,
faria a gentileza de me falar mais sobre elas?

Ren grunhiu, infeliz.


Assenti.


- Kishan. É esse o seu nome?

- Meu nome completo é Sohan Kishan Rajaram, mas
pode me chamar de Kishan se quiser. - Ele me dirigiu um
sorriso branco deslumbrante, ainda mais brilhante pelo
contraste com a pele escura. Então me ofereceu o braço. - Pode
se sentar e conversar comigo, Kelsey?

Havia algo de muito charmoso em Kishan. Fiquei

surpresa ao perceber que imediatamente confiei nele. Tinha
um dom semelhante ao do irmão. Como Ren, possuía a
capacidade de deixar uma pessoa à vontade. Talvez fosse o
treinamento diplomático que ambos receberam. Talvez fosse a
criação que tiveram da mãe. O que quer que fosse me fez
reagir com simpatia. Sorri para ele.

- Adoraria.


Ele prendeu meu braço sob o dele e caminhou comigo

até a fogueira. Ren tornou a rosnar e Kishan dirigiu-lhe um
sorriso pretensioso. Percebi que ele se contraiu ao se sentar,
então lhe ofereci uma aspirina.

- Não devíamos levar vocês dois a um médico? Acho

que você pode precisar de pontos e Ren...
- Obrigado, mas não é necessário. Não precisa se
preocupar com nossos pequenos incômodos.
- Eu não chamaria esses ferimentos de pequenos incômodos, Kishan.

- A maldição nos ajuda a sarar rapidamente. Você

vai ver. Vamos nos recuperar em pouco tempo por nossa
própria conta. Ainda assim, foi bom ter uma jovem tão
adorável cuidando de meus ferimentos.

Ren parou diante de nós e parecia um tigre infartando.


- Ren, seja civilizado - repreendi-o.


Kishan abriu um largo sorriso e esperou que eu me

acomodasse. Então chegou mais perto e descansou o braço no
tronco atrás dos meus ombros. Ren enfiou-se entre nós,
empurrando rudemente o irmão para o lado com a cabeça
peluda e criando um espaço maior, onde ficou. Sentou-se no
chão e descansou a cabeça no meu colo.

Kishan franziu a testa, mas eu comecei a falar,

relatando as coisas pelas quais Ren e eu tínhamos passado.
Contei-lhe do encontro com Ren no circo e como ele me
enganou para me trazer à Índia. Falei sobre Phet, a caverna de
Kanheri e a descoberta da profecia, e disse que estávamos a caminho de Hampi.

Absorta na história, eu acariciava a cabeça de Ren. Ele

fechou os olhos e ronronou, e então adormeceu. Falei durante
quase uma hora, mal percebendo as sobrancelhas erguidas e a
expressão pensativa de Kishan ao nos observar juntos. Não
notei sequer quando ele se transformou novamente em tigre.

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