terça-feira, 22 de outubro de 2013

Capítulo 15 - A Caçada

O magnífico tigre negro me fitava, com os olhos
amarelos brilhando, totalmente atentos, enquanto eu concluía
meu relato dos aspectos mais importantes da caverna de Kanheri.

Já era tarde da noite. A selva, tão barulhenta durante o

dia, estava agora silenciosa, exceto pelo crepitar da madeira no
fogo. Eu brincava com as orelhas macias de Ren. Seus olhos
ainda estavam fechados, e ele ronronava levemente, ou talvez
fosse mais exato dizer que roncava.

Voltando à forma humana, Kishan me olhou pensativo e disse:


- Parece muito... interessante. Só espero que você

não acabe se machucando ao longo desse processo. Seria mais
inteligente voltar para casa e nos deixar à mercê de nossa sorte.
Esse parece o início de uma longa missão, certamente repleta de perigos.
- Ren tem me protegido e, agora, com dois tigres
tomando conta de mim, sei que ficarei bem.

Kishan hesitou.


- Mesmo com dois tigres, as coisas podem dar

errado, Kelsey. E... eu não pretendo ir com vocês.
- Por que não? Nós sabemos como quebrar a
maldição. Pelo menos o primeiro passo. Kishan, eu não
entendo. Por que você não nos ajudaria... a ajudar você?

Kishan transferiu o peso para o outro lado do corpo e explicou.


- Por dois motivos. O primeiro é que me recuso a ter

mais alguma morte na minha consciência. Já causei muita dor
nesta vida. O segundo é... bem, eu simplesmente não acredito
que vamos ter êxito. Acho que vocês dois e o Sr. Kadam estão
apenas caçando fantasmas.
- Caçando fantasmas? Não entendi.

Kishan deu de ombros.


- Sabe, Kelsey, eu me acostumei à vida de tigre. Não

é uma existência tão ruim. Já aceitei que esta agora é a minha realidade.

Sua voz foi enfraquecendo e ele se perdeu em pensamentos.


- Kishan, será que não é você quem está caçando

fantasmas? Está se punindo ao ficar aqui na selva, não está?

O príncipe mais jovem se retesou. Seus olhos dourados

se voltaram para mim. Seu rosto ficou frio e indiferente.
Reconheci choque e dor em seus olhos. Minha observação o
magoou profundamente. Era como se eu tivesse arrancado um
curativo colocado com cuidado para cobrir as feridas do passado.

Pus minha mão sobre a dele e perguntei com delicadeza:


- Kishan, você não quer um futuro ou uma família?

Sei como é quando alguém que você ama morre. É solitário.
Você se sente despedaçado, como se nunca mais pudesse voltar a ser inteiro.

Eu não sabia quais seriam os efeitos de minhas palavras,

mas continuei assim mesmo:

- Saiba que não está sozinho. Tem pessoas de quem

pode cuidar e que cuidarão de você. Pessoas que lhe darão
muitas razões para continuar vivendo, como o Sr. Kadam, seu
irmão e eu. Pode até haver mais alguém para amar. Por favor,
vá conosco para Hampi.

Kishan desviou os olhos e falou de mansinho:


- Desisti de desejar coisas impossíveis há muito, muito tempo.


Agarrei a mão dele com mais força.


- Kishan, por favor, reconsidere.


Ele apertou a minha mão de volta e sorriu.


- Desculpe, Kelsey. - Ele se levantou e se

espreguiçou. - Agora, se você e Ren insistirem em se aventurar
nessa longa jornada, ele terá que caçar.
- Caçar?

Eu me encolhi. Ren não vinha comendo muito, pelo que eu vira.


- Ele pode estar comendo o suficiente para um

homem, mas não para um tigre. Ele é tigre na maior parte do
tempo e, para que esteja forte o bastante para protegê-la,
precisará comer mais. Algo grande, como um belo javali ou um búfalo.

Engoli em seco.


- Tem certeza?

- Sim. Ele está muito magro para um tigre. Precisa ganhar corpo.

Acariciei as costas de Ren. Dava para sentir suas costelas.


- Certo. Vou exigir que ele cace antes de partirmos.

- Ótimo. - Ele inclinou a cabeça e sorriu para mim.
Segurou meus dedos, dando adeus, e pareceu relutante em
soltá-los. Por fim, disse: - Obrigado, Kelsey, pela interessante conversa.

Com isso, voltou à forma de tigre negro e disparou selva adentro.


Ren ainda estava dormindo com a cabeça no meu colo,

então fiquei sentada quieta um pouco mais. Tracei as listras em
suas costas e olhei seus arranhões. Onde apenas uma hora
antes existiam cortes abertos, a pele já estava quase totalmente
recuperada. As unhadas no rosto e no olho tinham
desaparecido. Não restava nem mesmo uma cicatriz.

Quando minhas pernas estavam completamente

adormecidas por causa do peso de Ren, me levantei para
aumentar o fogo. Ele se virou de lado e continuou dormindo.

Aquela luta deve ter tirado muito de sua energia. Kishan

tem razão. Ele precisa mesmo caçar. Deve conservar sua força.

Depois de jantar, eu estava pronta para dormir também.

Peguei minha colcha, enrolei-a em torno do corpo e me deitei
perto de Ren. Seu peito roncava, mas ele não acordou; apenas
rolou para mais perto de mim. Usando suas costas como
travesseiro, adormeci olhando as estrelas no céu.

Acordei com a manhã já avançada. Olhei ao redor, à

procura de Ren, mas não o vi em parte alguma. O fogo estava
alto, porém, como se ele tivesse acabado de colocar mais lenha.
Virei-me de bruços para me desvencilhar da colcha e senti os
músculos das costas doloridos.

Ouvi pegadas macias e Ren enfiou o focinho no meu rosto.


- Ah, não se preocupe comigo. Vou ficar aqui

deitada até minha coluna se realinhar.

Ele se virou e começou a pisar nas minhas costas com

suas patas de tigre. Eu ri dolorosamente enquanto tentava
sugar o ar de volta aos meus pulmões. Era como um gatinho
muito pesado afiando as garras em um sofá humano.

- Obrigada, Ren, mas você é pesado demais - guinchei. - Está me deixando sem ar.


Suas patas de tigre se ergueram das minhas costas e

foram substituídas por mãos fortes e quentes. Ren passou a
massagear minha região lombar e meus pensamentos voltaram
à embaraçosa discussão do beijo. Meu rosto começou a
queimar e meu corpo se retesou.

- Relaxe, Kelsey. Suas costas estão cheias de nós. Deixe-me tirá-los.


Tentei não pensar em Ren e me lembrei de quando

experimentei uma massagem feita por uma mulher de meia-
idade. Na verdade, foi uma experiência dolorosa e eu nunca
voltei para uma segunda sessão.

A massagem de Ren era completamente diferente. Ele

era delicado e aplicava uma pressão moderada com a palma
das mãos. Esfregava em um padrão circular descendo pela
coluna, encontrava os pontos de tensão e trabalhava os

músculos até eles aquecerem e relaxarem. Quando terminou

com as costas, deslizou os dedos pela coluna até a gola da blusa
e começou a massagear meus ombros e meu pescoço, o que fez
correr arrepios por todo o meu corpo.

Envolvendo com os dedos o arco do pescoço, ele

amassou, apertou e comprimiu os músculos, atenuando as
dores lenta e metodicamente. Por fim, a pressão se abrandou
ate quase se tornar uma carícia. Suspirei, desfrutando a sensação.

Quando ele parou, testei as costas, sentando-me

devagar. Ele ficou de pé e me segurou sob o cotovelo para me
dar equilíbrio enquanto eu me levantava.

- Está se sentindo melhor, Kelsey?


Sorri para ele.


- Estou. Muito obrigada.


Enlacei seu pescoço em um abraço afetuoso. Seu corpo

pareceu enrijecer. Ele não me abraçou de volta. Eu me afastei e
vi que seus lábios estavam comprimidos, e ele evitava o meu olhar.

- Ren?


Ele tirou meus braços de seu pescoço, segurou minhas

mãos à sua frente e finalmente olhou para mim.

- Fico feliz que esteja se sentindo melhor.


Então se afastou, indo para o outro lado da fogueira, e

se transformou em tigre.

Isso não é nada bom, pensei. O que aconteceu? Ele

nunca me deu um gelo antes. Ainda deve estar com raiva de
mim por causa da história do beijo. Ou talvez esteja aborrecido
por causa de Kishan. Não sei como consertar isso. Não sou boa
em conversar sobre relacionamentos. O que posso dizer para acertar as coisas?

Em vez de falar sobre nós, nosso relacionamento ou o

beijo que não aconteceu, resolvi mudar de assunto. Pigarreei.

- É... Ren, você precisa caçar antes de partirmos. Seu

irmão mencionou isso e acho sensato considerar a sugestão.

Ele simplesmente bufou e se deitou de lado.


- Estou falando sério. Prometi a ele que você iria e...

não vou sair desta selva até que tenha caçado. Kishan disse que
você está magro demais para um tigre e que precisa comer um
javali ou algo assim.

Ren foi até uma árvore e começou a esfregar as costas nela.


- Suas costas estão coçando? Posso coçar para você -

ofereci. - É o mínimo que devo fazer depois dessa massagem.

O tigre branco parou de se esfregar por um momento e

olhou para mim, então deitou-se no chão e rolou, ficando de
costas, empurrando o corpo para a frente e para trás enquanto
as patas arranhavam o ar.

Magoada por ele me dispensar dessa forma, gritei:


- Você prefere esfregar as costas na terra a me

deixar coçá-las para você? Ótimo! Faça isso então, mas ainda
assim não vou embora antes de você caçar!

Dei meia-volta, agarrei a mochila, entrei na barraca e  fechei o zíper.


Meia hora depois, espiei lá fora. Ren havia

desaparecido. Suspirei e comecei a recolher mais madeira para aumentar nosso estoque.

Eu arrastava um tronco pesado até a fogueira quando

ouvi uma voz vinda da floresta. Kishan estava encostado em
uma árvore me observando. Ele assoviou.

- Quem diria que uma garota tão pequena pudesse ter músculos tão fortes?


Eu o ignorei e terminei de arrastar o tronco, então

limpei as mãos e me sentei para beber água.

Kishan sentou-se ao meu lado, um tanto perto demais, e

dobrou as longas pernas à frente do corpo. Eu lhe ofereci uma
garrafa de água e ele a pegou.

- Não sei o que você disse, Kelsey, mas funcionou. Ren foi caçar.


Fiz uma careta.


- Ele falou alguma coisa?

- Só que eu deveria tomar conta de você enquanto
estivesse ausente. Uma caçada pode levar vários dias.
- Verdade? Eu não tinha a menor ideia de que podia
ser tão demorada. - Hesitei. - Então... Ren não se importa que
você fique aqui enquanto ele está fora?
- Ah, ele se importa - ele deu uma risadinha - mas
quer ter certeza de que você está em segurança. Pelo menos
confia em mim para isso.
- Bom, acho que no momento ele está com raiva de nós dois.

Kishan me olhou com curiosidade, uma sobrancelha

arqueada.

- Como assim?

- Digamos apenas que tivemos um mal-entendido.

O rosto de Kishan endureceu.


- Não se preocupe, Kelsey. Tenho certeza de que,

qualquer que seja o motivo da raiva dele, é bobagem. Ele é
muito estourado.


Suspirei e sacudi a cabeça com tristeza.


- Não, é tudo culpa minha mesmo. Eu sou difícil, um

estorvo, e às vezes deve ser um saco me ter por perto. Ele deve
estar acostumado à companhia de mulheres mais experientes e sofisticadas.

Kishan me olhou, desconfiado.


- Pelo que sei, Ren não tem tido a companhia de

mulher nenhuma. Devo confessar que agora estou
extremamente curioso em relação ao motivo de sua briga. Seja
ele qual for, não vou mais tolerar nenhum comentário depre-
ciativo a seu respeito. Ele tem sorte de ter você e é melhor que
esteja ciente disso. - Ele sorriu. - Naturalmente, se vocês

tiveram mesmo um desentendimento, você será sempre bem-

vinda a ficar comigo.
- Obrigada pela oferta, mas não quero viver na selva.

Ele riu.


- Por você, eu até consideraria uma mudança de

ares. Você, meu encanto, é um prêmio pelo qual vale a pena lutar.

Eu ri e o soquei de leve no braço.


- Você é um grande sedutor. Mas dizer que vale a

pena lutar por mim? Acho que vocês dois estão vivendo como
tigres há tempo demais. Não sou nenhuma beldade, ainda mais
depois de uns tempos aqui na selva. Ainda nem decidi o que
quero fazer da vida. O que levaria alguém a lutar por mim?

Aparentemente Kishan levou minhas perguntas

retóricas a sério. Depois de refletir por um momento, ele
respondeu:

- Para começar, nunca encontrei uma mulher tão

dedicada a ajudar outras pessoas. Você arrisca a própria vida
por alguém que conheceu faz apenas algumas semanas. Você é
auto confiante, corajosa, inteligente e compreensiva. Eu a acho
charmosa e, certamente, linda.

O príncipe de olhos dourados pegou uma mecha do

meu cabelo. Corei diante de sua avaliação, bebi um pouco da
minha água e então disse baixinho:

- Não fico tranquila sabendo que ele está zangado comigo.


Kishan deu de ombros e recolheu a mão, parecendo

aborrecido por eu ter conduzido a conversa de volta a Ren.

- É, tenho sido alvo de sua raiva e aprendi a não

subestimar sua capacidade de guardar ressentimento.
- Kishan, posso lhe fazer uma pergunta... pessoal?

Ele deu uma risadinha e esfregou o maxilar.


- Estou às ordens.

- É sobre a noiva de Ren.

Sua fisionomia se entristeceu e ele murmurou, tenso:


- O que você quer saber?


Hesitei por um momento.


- Ela era bonita?

- Sim, era.
- Você pode me falar um pouco sobre ela?

Seu rosto relaxou e seus olhos se perderam na selva. Ele

correu a mão pelos cabelos e falou em tom meditativo e baixo:

- Yesubai era fascinante. A garota mais linda que já

conheci. Na última vez em que a vi, ela vestia uma sharara
dourada brilhante com um cinto cheio de pedras preciosas que
tilintavam, e tinha os cabelos presos com uma corrente
dourada. Estava muito elegante naquele dia, vestida como uma
noiva em todo o seu esplendor. A última visão que tive dela é
algo que jamais vou esquecer.
- Como ela era fisicamente?
- Tinha o rosto oval, adorável, lábios cheios e
rosados, cílios e sobrancelhas escuros, e olhos violeta
impressionantes. Era miúda, sua cabeça batia em meu ombro.
Se soltava os cabelos, sempre os cobria com um lenço, mas
eram lisos, sedosos, negros como as asas de um corvo e iam até
a altura dos joelhos.

Fechei os olhos e imaginei essa mulher perfeita com

Ren. A visão me atravessou com uma emoção que eu nem sabia
ser capaz de sentir. Ela perfurou meu coração, abrindo uma
fenda em seu centro.

Kishan prosseguiu:


- No instante em que a vi, eu soube que a queria.

Que não teria outra senão ela.
- Como vocês se conheceram? - perguntei.
- Ren e eu não podíamos participar de uma batalha
ao mesmo tempo, para evitar que fôssemos os dois mortos e não
mais houvesse um herdeiro do trono. Assim, enquanto Ren
estava fora lutando, eu fiquei preso em casa, treinando com
Kadam, estudando estratégia militar e trabalhando com os
soldados.

Ele me olhou, para ver se eu estava prestando atenção, e

continuou:

- Um dia, quando voltava para casa depois do

treinamento com armas, resolvi pegar um atalho, atravessando
os jardins. E lá estava Yesubai, de pé perto de uma fonte, de
onde ela havia acabado de colher uma flor de lótus. O lenço
pendia de seus ombros. Perguntei-lhe quem era e ela
rapidamente se virou, cobriu o rosto e os cabelos, e baixou os
olhos para o chão.
- Foi quando você se deu conta de quem ela era? - perguntei.

- Não. Ela fez uma mesura, me disse seu nome e

então correu para o palácio. Presumi que fosse a filha de um
dignitário visitante. Quando voltei ao palácio, comecei
imediatamente a perguntar sobre ela e logo descobri que um
arranjo havia sido feito para que se casasse com meu irmão. Fui
tomado por um ciúme insano. Eu estava sempre em segundo
plano em relação a ele. Ren tinha todas as coisas que eu queria
na vida. Era o filho favorito, o político mais apto, o futuro rei e,
também, o homem que iria se casar com a garota que eu queria.

Seu tom de voz ia mudando, ficando mais irritado. Mas

eu não quis interrompê-lo.

- Ele nem mesmo a conhecia - vociferou ele. - E eu

nem sabia que meus pais estavam procurando uma noiva para
Ren! Ele tinha apenas 21 anos, e eu, 20. Perguntei a meu pai se
ele poderia alterar o arranjo para que eu fosse o noivo de
Yesubai. Argumentei que podiam encontrar outra princesa
para Ren. Até me ofereci para procurar uma noiva para ele.
- O que o seu pai disse?
- Ele estava totalmente concentrado na guerra
naquela época. Eu lhe disse que Ren não se importaria, mas
meu pai não deu ouvidos às minhas súplicas. Afirmou que o
arranjo feito com o pai de Yesubai era irrevogável. Disse que o
pai dela insistira para que ela se casasse com o herdeiro do
trono a fim de que viesse a ser a próxima rainha.

Ele estendeu os braços ao longo do tronco no qual

estávamos apoiados e continuou:

- Ela partiu alguns dias depois e foi levada em

caravana ao encontro de Ren, para assinar documentos e
participar da cerimônia de noivado. Ficou lá com ele apenas
algumas horas, mas a viagem levou uma semana. Foi a semana
mais longa da minha vida. Então ela retornou ao palácio para
esperar. Por ele.

Seus olhos dourados encaravam os meus.


- Yesubai ficou três meses em nosso palácio,

aguardando, e eu tentei evitá-la o mais que pude, mas ela se
sentia solitária e queria companhia. Convidou-me para um
passeio pela área do castelo e eu concordei, relutante, achando
que podia manter meus sentimentos sob controle. Disse a mim
mesmo que em breve ela seria minha irmã, mas quanto mais eu
a conhecia, mais perdidamente me apaixonava por ela e mais
ressentido ficava. Uma noite, quando caminhávamos pelos

jardins, ela admitiu para mim que queria que eu fosse seu noivo.

- Nossa! E o que você fez?
- Fiquei exultante! Logo tentei tomá-la nos braços,
mas Yesubai me repeliu. Ela era muito rígida em relação aos
protocolos. Em nossos passeios, até fazia uma dama de
companhia nos seguir a uma distância discreta. Ela me
implorou que esperasse, prometendo que encontraríamos uma
forma de ficar juntos. Eu me sentia insensatamente feliz e
determinado a fazer tudo que fosse preciso para que aquela mulher fosse minha.

Segurei a mão dele. Ele apertou a minha e continuou:


- Ela disse que havia tentado deixar de lado seus

sentimentos por mim pelo bem da família, pelo bem do reino,
mas que não podia evitar me amar. A mim... não a Ren. Pela
primeira vez na vida, eu era o escolhido. Yesubai e eu éramos
ambos muito jovens e apaixonados. Quando se aproximava a
data da volta de Ren, ela foi ficando desesperada e insistiu para
que eu falasse com seu pai. Isso era inapropriado, é claro, mas
eu estava doente de amor e concordei, decidido a fazer
qualquer coisa para deixá-la feliz.

- O que disse o pai de Yesubai?

- Concordou em me dar a mão dela em casamento
se eu aceitasse certas condições.
- Foi quando vocês combinaram a captura de Ren,
certo? - perguntei.

Ele estremeceu.


- Foi. Na minha cabeça, Ren era um obstáculo que

eu precisava transpor para me casar com Yesubai. Eu o
coloquei em perigo para poder tê-la. Em minha defesa, o
combinado era que os soldados iam escoltá-lo até o palácio do
pai dela e que então mudaríamos os planos do noivado.
Obviamente, as coisas não correram de acordo com o
planejado.
- O que aconteceu com Yesubai? - perguntei, séria.
- Um acidente - respondeu ele baixinho. - Ela foi
empurrada, caiu e quebrou o pescoço. Morreu em meus
braços.

Apertei sua mão.


- Sinto muito, Kishan. - Embora eu não tivesse

certeza se queria saber, resolvi perguntar assim mesmo: -

Kishan, uma vez perguntei ao Sr. Kadam se Ren amava Yesubai.

Ele nunca me deu uma resposta objetiva.

Kishan riu com amargura.


- Ren amava o que ela representava. Yesubai era

linda, desejável e seria uma companheira e uma rainha
maravilhosa, mas ele nem a conhecia. Nas cartas, ele insistia
em chamá-la de Bai e queria que ela o chamasse de Ren. Ela
odiava aquilo. Achava que apenas as castas inferiores usavam
apelidos.

A princípio, me senti aliviada, mas em seguida me

lembrei da descrição que Kishan fizera de Yesubai. Não é
porque um homem não conhece bem uma mulher que não é
capaz de desejá-la. Ren ainda podia nutrir sentimentos pela noiva perdida.

Um leve tremor percorreu o braço de Kishan e eu soube

que seu tempo na forma humana tinha chegado ao fim.

- Obrigada por me fazer companhia, Kishan. Tenho

tantas outras perguntas... Queria que você pudesse conversar
comigo por mais tempo.
- Vou ficar aqui com você até Ren voltar. Talvez
possamos conversar novamente amanhã.

- Eu gostaria muito.


O perturbado rapaz se transformou no tigre negro e

encontrou um lugar confortável para um cochilo. Resolvi
escrever um pouco em meu diário.

Sentia-me péssima em relação à morte de Yesubai. Abri

um uma página em branco, mas acabei desenhando dois tigres
com uma linda garota de cabelos longos entre eles. Traçando
uma linha que ia da garota a cada tigre, deixei escapar um
suspiro. Era difícil pôr os sentimentos em ordem no papel
quando ainda não os organizara na cabeça.

Ren não voltou naquele dia e Kishan dormiu a tarde

inteira. Passei por ele fazendo barulho várias vezes, mas ele
continuava dormindo.

- Grande protetor - murmurei. - Eu podia

desaparecer na selva e ele nem ia ficar sabendo.

O grande tigre negro bufou de leve, provavelmente

tentando me dizer que, mesmo dormindo, sabia o que estava
acontecendo.

Acabei lendo em silêncio pelo restante da tarde,

sentindo falta de Ren. Mesmo como tigre, eu tinha a sensação
de que ele estava sempre me ouvindo e que conversaria comigo se pudesse.

Depois do jantar, fiz um carinho na cabeça de Kishan e

me retirei para a barraca. Enquanto acomodava a cabeça em
meus braços, não pude deixar de notar o grande espaço vazio
ao meu lado, onde Ren costumava dormir.

Os quatro dias seguintes repetiram o mesmo padrão.

Kishan mantinha-se por perto, saía em patrulha algumas vezes
por dia e então voltava para se sentar ao meu lado na hora do
almoço. Depois, transformava-se em homem e me deixava
importuná-lo com perguntas sobre a vida no palácio e a cultura de seu povo.

Na manhã do quinto dia, a rotina mudou. Kishan

assumiu a forma humana assim que saí da barraca.

- Kelsey, estou preocupado com Ren. Ele se foi já faz

muito tempo e eu não captei seu cheiro em minhas patrulhas.
Suspeito que não tenha tido sorte em sua caçada. Ele não caça
desde que foi capturado, mais de 300 anos atrás.
- Você acha que ele está ferido?
- É uma possibilidade, mas lembre-se sempre de que
saramos rapidamente. Não existem muitas feras aqui dispostas
a machucar um tigre, mas há caçadores e armadilhas. É melhor que eu vá atrás dele.
- Você acha que vai ser fácil encontrá-lo?
- Se ele foi esperto, deve ter se mantido próximo do
rio. A maioria dos bandos de animais se reúne perto da água.
Por falar em comida, percebi que a sua estava acabando. Na
noite passada, enquanto você dormia, encontrei o Sr. Kadam
em seu acampamento perto da estrada e trouxe mais alguns
daqueles pacotes de comida desidratada.

Ele apontou para uma sacola ao lado da barraca.


- Você deve ter carregado isso na boca por todo o caminho. Obrigada.


Ele sorriu.


- Ao seu inteiro dispor, meu encanto.


Eu ri.


- É melhor carregar uma sacola nos dentes por

vários quilômetros do que ter os dentes de Ren cravados em
você por me deixar morrer de fome, não é?

Kishan franziu a testa.


- Eu fiz por você, Kelsey. Não por ele.


Pus a mão em seu braço.


- Bem, obrigada.


Ele pressionou a mão sobre a minha.


- Aap ke liye. Pelo seu bem, qualquer coisa.

- Você disse ao Sr. Kadam que demoraríamos um
pouco mais?
- Sim, expliquei a situação. Não se preocupe. Ele está
confortavelmente acampado perto da estrada e irá esperar o
tempo necessário. Agora quero que pegue algumas garrafas de
água e comida. Vou levar você comigo. Eu a deixaria aqui, mas
Ren diz que você se mete em confusão quando deixada sozinha.

Ele tocou meu nariz.


- Isso é verdade, bilauta? Não consigo imaginar uma

jovem encantadora como você se metendo em confusão.
- Eu não me meto em confusões. Elas é que me perseguem.

Ele riu.


- Deu para notar.

- Apesar do que vocês, tigres, pensam, eu sou capaz
de cuidar de mim mesma, sabia? - falei, em tom ligeiramente rabugento.

Kishan apertou meu braço.


- Vai ver que nós, tigres, gostamos de cuidar de você.


Partimos sem demora por uma trilha na direção do alto

da queda d’água. Era uma subida lenta mas constante, e
minhas pernas começaram a protestar quando nos
aproximávamos do topo. Kishan me deixou descansar um
pouco. Olhei a selva ali de cima e divisei nosso diminuto
acampamento lá embaixo, numa pequena clareira.

Continuamos a seguir o rio até chegarmos a um grande

tronco de árvore que havia caído, indo de uma margem à
outra. Estava sem galhos e a correnteza havia arrancado sua
casca, deixando o tronco liso e perigoso para atravessar. A água
corria com violência e de vez em quando espirrava acima da
ponte improvisada.

Kishan saltou no tronco e o atravessou. A árvore

sacudiu-se para cima e para baixo sob seu peso, mas parecia
bastante estável. Ele desceu suavemente do outro lado e então
se virou para observar a minha travessia. Não sei como reuni
coragem e pus um pé na frente do outro. Era como andar na
corda bamba do Sr. Maurizio - com o agravante de ser bastante escorregadia.

- Kishan! - gritei, nervosa, para o outro lado. - Já

pensou que atravessar este tronco pode ser um pouco mais
fácil para um tigre com garras do que para uma garota de tênis
carregando uma mochila pesada? Se eu cair, esteja pronto para um mergulho!

Depois que alcancei o outro lado em segurança, soltei

um profundo suspiro de alívio. Continuamos a andar e, uns
cinco quilômetros depois, Kishan finalmente captou o cheiro de
Ren, que seguimos por mais duas horas, quando então ele me
permitiu um bom descanso enquanto saía em patrulha para
tentar encontrar Ren.

Meia hora depois ele voltou e disse:


- Tem um grande rebanho de antílopes negros numa

clareira a cerca de um quilômetro daqui. Ren está à espreita
deles, sem sucesso, há três dias. Os antílopes são extremamente
rápidos. Em geral o tigre escolhe um filhote ou um animal
machucado, mas nesse grupo há apenas adultos.
- E o que vai acontecer? - perguntei, nervosa.
- Eles estão inquietos e sobressaltados porque sabem
que Ren está de tocaia. O rebanho está se mantendo junto, o
que dificulta a vida dele. Além disso, como vem caçando há
vários dias, está muito cansado. Vou levar você a um lugar
seguro a favor do vento, onde poderá descansar enquanto ajudo Ren na caçada.

Concordei e tornei a colocar a mochila nas costas. Ele

me conduziu por entre as árvores, subindo um grande morro.
Kishan se deteve para farejar o vento várias vezes ao longo do
caminho. Depois de subirmos algumas centenas de metros, ele
encontrou um lugar onde eu podia acampar e partiu para
ajudar Ren.

Passado algum tempo, eu estava completamente

entediada. Não dava para ver muita coisa de onde eu me
encontrava.

Eu já havia bebido uma garrafa inteira de água e

começava a me sentir inquieta quando resolvi dar uma volta
para me orientar e explorar a área. Observei cuidadosamente
as formações rochosas e usei a bússola para ter certeza de que
sabia onde estava.

Escalando um pouco mais o morro, avistei uma grande

pedra que se projetava acima da linha das árvores. A rocha era
plana no topo e protegida por uma grande árvore. Subi nela e
fiquei impressionada com a vista. Subi um pouco mais e me
sentei. O rio serpenteava lá embaixo, avançando para um lado
e para outro em um ritmo preguiçoso. Recostei-me no tronco
da árvore e desfrutei a brisa.

Uns 20 minutos depois, um movimento lá embaixo

chamou minha atenção. Um animal grande surgiu do meio das
árvores. Várias outras criaturas o seguiram. A princípio, pensei
que fossem cervos, mas então percebi que deviam ser alguns
dos antílopes dos quais Kishan falara. Perguntei-me se seriam
do mesmo bando que Ren e Kishan estavam seguindo. A parte
superior do corpo dos animais era escura e a inferior, branca.
Tinham queixo branco e círculos também brancos em torno
dos grandes olhos castanhos.

Os machos ostentavam dois longos chifres retorcidos

que se projetavam do topo da cabeça como antenas de tevê. Os
chifres dos antílopes maiores eram mais imponentes e mais
retorcidos que os dos menores. O pelo dos animais ia do
castanho-claro ao marrom-escuro.

Eles bebiam água do rio, agitando a cauda branca. Os

machos maiores montavam guarda enquanto os outros se
refrescavam. As fêmeas tinham cerca de um metro e meio de
altura e os machos, incluindo os chifres, tinham 30 ou 50
centímetros a mais. Quanto mais eu olhava para seus chifres
impressionantes, mais nervosa me sentia por causa de Ren.

Não é de admirar que esteja tendo dificuldade para pegar um deles.


O bando pareceu relaxar e alguns dos animais até

começaram a pastar. Esquadrinhei as árvores à procura de Ren,
mas não consegui vê-lo em lugar nenhum. Fiquei observando o
bando por muito tempo. Os animais eram lindos.

O ataque foi rápido e despachou o grupo em rápida

debandada. Kishan, uma faixa negra atravessando a paisagem,
isolou um grande macho, que disparou numa direção diferente
da do bando, o que deve ter sido seu erro fatal - ou então um
ato de grande bravura para afastar o predador do grupo.

Kishan perseguiu o antílope, encurralando-o em um

bosque, saltou em suas costas, enterrou as garras dianteiras no
flanco do animal e mordeu sua coluna. Nesse momento, Ren
surgiu em disparada do meio das árvores, indo até o animal e
mordendo uma das patas dianteiras. De alguma forma, o
antílope se contorceu e conseguiu escapar de Kishan,
derrubando-o. O tigre negro começou então a andar em
círculos em torno dele, procurando outra oportunidade para saltar.

O antílope apontou os longos chifres para Ren, que se

movimentava de um lado para outro. O animal acuado
continuava concentrado, sempre se protegendo com os chifres.
Suas orelhas se contraíam para a frente e para trás, atentas aos
ruídos de Kishan, que havia se posicionado furtivamente atrás dele.

Kishan saltou e desferiu um golpe com a garra contra a

anca do animal. A força do golpe derrubou o antílope. Vendo a
oportunidade, Ren saltou para morder-lhe o pescoço. O
antílope se retorcia, tentando se erguer, mas os dois tigres
levavam vantagem.

Pensei que a ação toda fosse ser rápida, mas a caçada

levou bem mais tempo do que eu esperava. Era como se Ren e
Kishan estivessem exaurindo o animal, envolvendo-o numa
macabra dança da morte. Os tigres também pareciam
cansados. Aparentemente haviam gasto toda a energia na
caçada, consumindo suas forças. O ato de matar era um
processo quase indolente.

O antílope lutava com valentia. Ele deu vários coices e

atingiu os dois tigres com seus cascos. Os tigres atacavam com
as mandíbulas até que por fim o animal parou de se mover.

Quando tudo terminou, Ren e Kishan descansaram,

arfando pesadamente. Kishan foi o primeiro a começar a
comer. Tentei não olhar. Eu não queria, mas não pude evitar. Era fascinante.

Kishan firmou as garras no antílope e cravou os dentes

fundo em seu corpo. Usando a força da mandíbula, arrancou
um naco de carne ainda quente de onde o sangue pingava. Ren
seguiu seu exemplo. Era horrível, nauseante e perturbador.
Tremores percorriam meu corpo, mas eu não conseguia
desviar os olhos.

Terminada a refeição, os movimentos dos irmãos

tornaram-se lentos, como se eles estivessem drogados ou
sonolentos, o que me fez imaginar se não seria uma sensação
semelhante à que se tem após uma farta ceia de Natal. Eles se
deitaram perto da refeição, voltando de vez em quando a ela
para lamber as partes mais suculentas. Uma nuvem escura de
moscas gigantes surgiu no ar. Devia haver centenas delas
naquele enxame, todas zumbindo em torno do cadáver fresco.

Quando os insetos os cercaram, imaginei as moscas

pousando no animal morto e nas caras sangrentas de Kishan e
de Ren. Foi quando fui vencida e não pude mais olhar.

Apanhei minha mochila e deslizei pelo morro

acidentado, cobrindo em instantes a distância até o local em
que Kishan me deixara. Segui então para nosso acampamento
original, com mais medo de encarar os dois tigres do que de me
perder. Eu não tinha certeza se conseguiria enfrentar Kishan
ou Ren depois do que acabara de ver.

Restando apenas umas duas horas de luz do dia, parti a

passos rápidos, cheguei ao tronco sobre o rio e o atravessei
antes que o sol se pusesse. Meu ritmo diminuiu durante os
últimos quilômetros. A noite caía e no céu haviam surgido
nuvens de chuva. Borrifos atingiam meu rosto e a trilha
tornou-se molhada e escorregadia, mas o verdadeiro aguaceiro
só desabou depois que eu já havia chegado ao acampamento.

Eu me perguntei se a chuva estaria caindo sobre os

tigres e concluí que isso seria bom, pois lavaria o sangue de
suas caras e espantaria as moscas. Involuntariamente, estremeci.

Naquele momento, pensar em comida me repugnava.

Entrei na barraca e comecei a cantar músicas alegres de O
Mágico de Oz a fim de afastar da mente as imagens
perturbadoras que tinha visto, na esperança de que me
ajudassem a adormecer. Mas o tiro saiu pela culatra, porque,
quando dormi, sonhei com o Leão Covarde dilacerando Dorothy.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!