terça-feira, 22 de outubro de 2013

Capítulo 16 - O Sonho de Kelsey

Tive outros sonhos perturbadores. Sozinha e perdida, eu
corria na escuridão. Não conseguia encontrar Ren e alguma
coisa maligna me perseguia. Eu precisava fugir. Dedos
estranhos e ávidos tentavam puxar minha roupa e meus
cabelos. Eles arranhavam minha pele e tentavam me arrastar e
me tirar do caminho. Eu sabia que, se conseguissem, iriam me
capturar e me destruir.

Dobrei uma esquina, entrei em um salão e vi um

homem sombrio e de aspecto malévolo, vestido com uma
luxuosa túnica ametista. Ele se debruçava sobre um sujeito
amarrado a uma grande mesa. De um canto escuro, vi quando
ele ergueu no ar uma faca curva e afiada, entoando baixinho
um cântico em uma língua que eu não compreendia.

De alguma forma eu sabia que tinha que salvar o

prisioneiro. Lancei-me contra o homem com a faca e puxei seu
braço, tentando arrancá-la dele. Minha mão começou a
queimar, brilhando vermelha, e centelhas crepitaram.

- Não, Kelsey! Pare!


Olhei para a mesa e arquejei. Era Ren! Seu corpo estava

dilacerado e ensanguentado, e as mãos encontravam-se presas acima da cabeça.

- Kells... saia daqui! Estou fazendo isso para que ele

não possa encontrá-la.
- Não! Não vou deixar você fazer isso, Ren.
Transforme-se em tigre. Fuja!

Ele sacudiu a cabeça freneticamente e disse em voz alta:


- Durga! Eu aceito! Faça-o agora!

- O quê? O que você precisa que Durga faça? - perguntei.

O homem recomeçou a entoar o cântico, dessa vez em

voz alta, e, apesar de meus fracos esforços para detê-lo, ergueu
a lâmina e a cravou no coração de Ren. Eu gritei. Meu coração
batia no mesmo ritmo dilacerado do dele. A cada batimento,
sua força diminuía, até que falhou e finalmente parou.

Lágrimas rolavam pelo meu rosto. Senti uma dor

terrível e lancinante. Eu via o sangue de Ren escorrer pela mesa
e empoçar no piso de ladrilhos. Desabei de quatro no chão,
sufocada por minhas emoções.

A morte de Ren era insuportável. Se ele estava morto,

então eu também estava. Eu me afogava na dor, não conseguia
respirar. Não me restava nenhuma vontade para me impelir.
Não havia nenhum incentivo, nenhuma voz me instando a
lutar, a nadar até a superfície, a me erguer acima da dor. Nada
podia me fazer respirar ou voltar a viver.

A sala desapareceu e eu me vi envolta na escuridão

mais uma vez. O sonho havia mudado. Eu usava um vestido
dourado e jóias. Sentada em uma linda cadeira sobre um
tablado alto, baixei os olhos e vi Ren de pé diante de mim. Sorri
para ele e estendi a mão, mas foi Kishan quem a segurou ao se sentar ao meu lado.

Olhei para Kishan, confusa. Ele dirigia um sorriso

presunçoso para Ren. Quando me virei novamente para Ren,
sua raiva o consumia e ele me fuzilou com olhos de ódio e desprezo.

Lutei para libertar minha mão da de Kishan, mas ele

não me soltava. Antes que eu conseguisse, Ren se transformou
em tigre e correu para a selva. Gritei, chamando por ele, mas
não me ouviu. Ele não queria me ouvir.

O vento açoitava o cortinado de cor creme e nuvens de

tempestade se aglomeravam, escurecendo o céu. Relâmpagos
caíam em vários pontos. Ouvi um rugido poderoso ecoar pela
paisagem. Era o impulso de que eu precisava. Arranquei minha
mão da de Kishan e corri para a tempestade.

A chuva começou a castigar o chão, tornando meu

avanço mais lento enquanto eu procurava Ren. Minhas lindas
sandálias douradas foram arrancadas, presas na lama espessa
criada pelo aguaceiro. Eu não conseguia encontrá-lo em lugar
nenhum. Tirei os cabelos encharcados dos olhos e gritei:

- Ren! Ren! Onde você está?


Um raio atingiu uma árvore próxima com um poderoso

estrondo. Fragmentos da casca do tronco dispararam em todas
as direções quando a árvore se quebrou, e o tronco se retorceu
e se despedaçou. Quando desabou, os galhos me prenderam ao chão.

- Ren!


A água enlameada foi se juntando debaixo de mim. Fui

me contorcendo e contraindo meu corpo machucado e
dolorido até conseguir escorregar sob a árvore. O vestido
dourado estava rasgado e minha pele, coberta de arranhões ensanguentados.

- Ren! - gritei mais uma vez. - Por favor, volte! Preciso de você!


Eu estava tremendo de frio, mas continuei correndo no

meio da selva, tropeçando em raízes e atirando para o lado a
vegetação rasteira cinza e espinhenta. Gritando enquanto
corria, eu avançava por um caminho sinuoso entre as árvores, à procura dele.

- Ren, por favor, não me deixe! - eu suplicava, desesperada.


Finalmente avistei uma silhueta branca correndo em

meio às árvores e redobrei meus esforços para alcançá-lo. Meu
vestido se prendeu em um arbusto cheio de espinhos, mas eu
atravessei ferozmente, determinada a chegar até ele. Eu seguia
a trilha de raios que caíam na selva ali perto.

Não sentia medo dos raios, embora eles caíssem tão

perto que eu podia sentir o cheiro da madeira queimada. Os
raios me levaram a Ren. Eu o encontrei caído no chão. Grandes
marcas de queimaduras chamuscavam seu pelo branco onde os
raios o haviam atingido repetidamente. De alguma forma, eu
sabia que eu fizera aquilo. Eu era a responsável por sua dor.

Acariciei-lhe a cabeça e o pelo macio e sedoso do pescoço e gritei:


- Ren, eu não queria que fosse assim. Como isso pôde acontecer?


Ele assumiu a forma humana e sussurrou:


- Você perdeu a fé em mim, Kelsey.


Sacudi a cabeça, negando. As lágrimas escorriam pelo meu rosto.


- Não. Não perdi. Jamais!


Ele não conseguia me olhar nos olhos.


- Iadala, você me deixou.


Abracei-o em desespero.


- Não, Ren! Eu nunca vou deixá-lo.

- Mas deixou. Você foi embora. Era muito pedir que me esperasse? Que acreditasse em mim?

Solucei, desesperada.


- Mas eu não sabia. Eu não sabia.

- Agora é tarde demais, priyatama. Dessa vez, sou eu quem vai deixá-la.

Então fechou os olhos e morreu.


Sacudi seu corpo flácido.


- Não. Não! Ren, volte! Por favor, volte!


As lágrimas se misturavam com a chuva e borravam

minha visão. Furiosa, enxuguei-as e, quando tornei a abrir os
olhos, vi não só Ren como também meus pais, minha avó e o Sr.
Kadam. Estavam todos caídos no chão, mortos. Eu estava
sozinha e cercada pela morte.

Chorando, eu gritava sem parar:


- Não! Não pode ser! Não pode ser!


Uma angústia incontrolável penetrava o meu corpo. Eu

me sentia tão desesperada, tão sozinha! Agarrei-me a Ren e
fiquei embalando seu corpo para a frente e para trás,
inconscientemente tentando me confortar. Mas não encontrei nenhum alívio.

De repente, já não estava sozinha. Percebi que não era

eu quem embalava Ren, mas outra pessoa me embalava e me
abraçava. Despertei o suficiente para saber que estivera
dormindo, mas a dor do sonho ainda me envolvia.

Meu rosto estava molhado com lágrimas de verdade e a

tempestade também fora real. O vento aumentou de
intensidade entre as árvores lá fora, fazendo a chuva
inclemente bater na lona. Um raio atingiu uma árvore próxima
e iluminou brevemente a barraca. No lampejo, distingui o
cabelo escuro molhado, a pele dourada e uma camisa branca.

- Ren?


Senti seus polegares enxugando as lágrimas do meu rosto.


- Shh, Kelsey. Eu estou aqui. Não vou deixá-la, priya.


Com grande alívio e um soluço, estendi os braços e

envolvi o pescoço de Ren. Ele deslizou o corpo mais para dentro
da barraca, saindo da chuva, me puxou para o seu colo e me
apertou mais em seus braços. Acariciou meu cabelo e sussurrou:

- Quietinha agora. Mein aapka raksha karunga. Eu

estou aqui. Não vou deixar nada acontecer com você, priyatama.

Ele continuou a me acalmar com palavras de sua língua

nativa até eu sentir que o sonho desvanecia. Após alguns
minutos, estava suficientemente recuperada para me afastar,
mas fiz a escolha consciente de ficar onde estava. Eu gostava da
sensação de seus braços à minha volta.

O sonho me fez tomar consciência de como me sentia

sozinha. Desde a morte de meus pais, ninguém havia me
abraçado dessa forma. É claro que eu abraçava meus pais
adotivos e seus filhos, mas nenhum deles conseguira atravessar
minhas defesas. Eu não deixava alguém extrair de mim
emoções tão profundas fazia muito tempo.

Foi nesse momento que eu soube que Ren me amava.


Senti meu coração se abrir para ele. Eu já amava e

confiava na sua parte tigre. Isso era fácil. Mas reconhecia agora
que o homem precisava ainda mais desse amor. Para Ren, era
algo que não experimentava havia séculos - se é que algum dia
o experimentou. Assim, eu o abracei com força e não o larguei
até que soube que seu tempo havia acabado.

- Obrigada por estar aqui - sussurrei em seu ouvido.

- Fico feliz por você fazer parte da minha vida. Por favor, fique
na barraca comigo. Não há razão para você dormir lá fora na chuva.

Beijei seu rosto e tornei a me deitar, cobrindo-me com a

colcha. Ren se transformou em tigre e deitou-se ao meu lado.
Eu me aconcheguei em suas costas e mergulhei em um sono
tranquilo e sem sonhos, apesar da tempestade rugindo lá fora.

No dia seguinte acordei, me espreguicei e saí da

barraca. O sol havia evaporado a água da chuva e
transformado a selva molhada em uma sauna a vapor. Galhos e
folhas arrancados pela tempestade se espalhavam pelo chão do
acampamento. Um fosso encharcado de água cinzenta, cercado
por pedaços de madeira enegrecida e carbonizada, era tudo o
que restava de nossa fogueira.

A cachoeira despencava com mais velocidade que o

normal, empurrando destroços para o lago agora lamacento.

- Nada de banho hoje - falei, cumprimentando Ren,

que havia assumido sua forma humana.
- Não tem importância. Vamos ao encontro do Sr.
Kadam. É hora de retomar nossa jornada - replicou ele.
- Mas e quanto a Kishan? Você não conseguiu
convencê-lo a vir conosco?
- Kishan deixou clara sua posição. Quer ficar aqui, e
eu não vou implorar a ele. Quando toma uma decisão,
raramente muda de idéia.
- Mas, Ren...
- Está decidido.

Ele se aproximou de mim e puxou minha trança. Então

sorriu e me deu um beijo na testa. O que acontecera entre nós
durante a tempestade havia consertado nossa ruptura
emocional e eu estava feliz por ele ter voltado a ser meu amigo.

- Venha, Kells. Vamos arrumar tudo.


Só levei alguns minutos para desmontar a barraca e

guardar as coisas na mochila. Estava aliviada por voltar para
junto do Sr. Kadam e da civilização, mas não me agradava
deixar Kishan daquele jeito. Eu nem tivera a chance de me despedir.

Na saída, passei pelos arbustos floridos e fiz as

borboletas levantarem voo novamente. Não havia tantas quanto
no dia em que chegamos. Elas se agarravam às folhas
encharcadas e batiam as asas lentamente ao sol, secando-as.

Algumas alçaram vôo para o céu e Ren esperou pacientemente

enquanto eu as observava. Suspirei quando tomamos a trilha
de volta para a estrada onde o Sr. Kadam estava acampado.
Embora eu detestasse longas caminhadas e acampamentos,
aquele lugar era especial.

Meu tigre ia à frente, como sempre, e eu o seguia,

tentando evitar suas pegadas lamacentas e caminhar em
terreno mais seco. Para passar o tempo, mencionei a Ren a
conversa com Kishan sobre a vida no palácio e disse que ele
carregara uma sacola cheia de comida na boca para que eu não morresse de fome.

Algumas coisas, porém, não dividi com Ren,

especialmente o que Kishan me contara sobre Yesubai. Eu não
queria que Ren ficasse pensando nela, mas também sentia que
era Kishan quem precisava conversar sobre o assunto com Ren.
Em vez disso, tagarelei sobre ter ficado entediada na selva e haver assistido à caçada.
De repente, Ren se transformou em homem, agarrou meus braços e explodiu:

- Você viu o quê?


Confusa, repeti:


- Vi a... a caçada. Pensei que você soubesse. Kishan não lhe falou?


Rangendo os dentes, ele disse:


- Não, não falou!


Desviei-me dele e subi em uma série de pedras.


- Ah. Mas não importa. Eu estou bem. Consegui voltar.


Ren agarrou meu cotovelo e me colocou no chão à sua frente.


- Kelsey, você está me dizendo que não só assistiu à

caçada como também voltou para o acampamento sozinha?

Ren estava mais do que furioso.


- Foi - falei, com voz esganiçada.

- A próxima vez que vir Kishan, eu vou matá-lo. -
Ele apontou o dedo para o meu rosto. - Você poderia ter sido
atacada! Não posso nem citar todas as criaturas perigosas que
vivem na selva. Você nunca mais vai sair do meu lado!

Ele segurou minha mão e me puxou pela trilha. Eu

podia sentir a tensão irradiando de seu corpo.

- Ren, eu não entendo. Você e Kishan não conversaram depois de sua... refeição?


- Não - resmungou ele. - Cada um foi para o seu

lado. Voltei direto para o acampamento. Kishan ficou perto da...
comida um pouco mais. Não devo ter sentido seu cheiro por  causa da chuva.
- Kishan ainda deve estar me procurando. Talvez devêssemos voltar.
- Não. Seria bem feito para ele. - Ren riu
acintosamente. - Sem um cheiro para rastrear, é provável que
ele leve dias até descobrir que partimos.
- Ren, você devia voltar lá e dizer a ele que estamos
indo embora. Ele o ajudou na caçada. É o mínimo que podia fazer.
- Kelsey, nós não vamos voltar. Ele é um tigre adulto
e pode tomar conta de si mesmo. Além disso, eu estava me
virando bem sem ele.
- Não, não estava. Eu vi a caçada, lembra? Ele o
ajudou a abater o antílope. Kishan disse que você não caçava
havia mais de 300 anos. Por isso fomos atrás de você. Ele disse
que sabia que precisaria da ajuda dele.

Ren franziu a testa, mas não disse nada.


Parei e coloquei a mão em seu braço.


- Não é sinal de fraqueza precisar de ajuda às vezes.


Ele resmungou, dispensando meu comentário, mas

prendeu minha mão em seu braço e recomeçou a andar.

- Ren, o que exatamente aconteceu com você há 300 anos?


Ainda carrancudo, ele não respondeu. Eu o cutuquei

com o cotovelo e sorri, encorajando-o. A carranca lentamente
desapareceu de seu lindo rosto e a tensão foi deixando seus
ombros. Ele suspirou, correu a mão pelos cabelos e explicou:

- E muito mais fácil para um tigre negro caçar do

que para um tigre branco. Eu não me misturo à vegetação na
selva. Quando ficava com muita fome e frustrado com a
dificuldade de caçar animais selvagens, às vezes me aventurava
em um vilarejo e roubava uma cabra ou uma ovelha. Eu
tomava cuidado, mas logo se espalharam os rumores de que
havia um tigre branco na região. Não só os fazendeiros
queriam me afugentar dali como também havia caçadores de
grandes animais selvagens que buscavam a emoção de
capturar um animal exótico.
- Nossa, você correu muito perigo! - observei.
- Eles espalharam armadilhas para mim por toda a
selva e muitas criaturas inocentes foram mortas. Sempre que
eu encontrava uma, eu a desarmava. Um dia, cometi um erro
idiota. Havia duas armadilhas bem perto uma da outra, mas eu
me concentrei na óbvia, que era do tipo padrão: um pedaço de
carne pendurado sobre um buraco. Eu estava estudando o
buraco, tentando calcular uma forma de pegar a carne, e
tropecei em um arame oculto, disparando uma chuva de
espigões e flechas que desabou sobre mim vinda do topo da
árvore. Saltei para o lado para me esquivar a uma lança, mas a
terra sob meus pés cedeu e eu caí no buraco.
- Alguma das setas atingiu você? - perguntei, ansiosa.
- Sim. Várias me arranharam, mas eu sarei rápido.
Felizmente, o buraco não tinha estacas de bambu, mas era
benfeito e fundo o bastante para que eu não conseguisse sair.
- O que fizeram com você?
- Depois de alguns dias, os caçadores me
encontraram. E me venderam para um colecionador de
animais selvagens. Quando me mostrei difícil, ele me vendeu
para outro, que me vendeu para um terceiro, e assim por
diante. Por fim, acabei em um circo na Rússia e desde então fui
passando de circo em circo. Sempre que as pessoas suspeitavam
da minha idade ou me machucavam, eu causava problemas
suficientes para provocar uma venda rápida.

Era uma história terrível, de partir o coração. Eu me

afastei dele e, quando tornei a me aproximar, ele entrelaçou os
dedos nos meus e continuou a caminhar.

- Por que o Sr. Kadam não o comprou e o levou para casa? - indaguei.

- Ele não podia. Alguma coisa sempre surgia para
evitar que isso acontecesse. Todas as vezes que ele tentava me
comprar do circo onde eu estava, os proprietários se recusavam
a vender por qualquer que fosse o valor oferecido. Uma vez ele
mandou outras pessoas me comprarem e isso também não
funcionou. O Sr. Kadam chegou a contratar gente para me
roubar, mas os homens foram capturados. A maldição era
quem dava as cartas, não nós. Quanto mais ele tentava
interferir, pior ficava minha situação. Acabamos descobrindo
que o Sr. Kadam podia pôr no meu caminho compradores em
potencial com um interesse genuíno. Ele conseguia induzir
pessoas boas a me comprar, mas somente se não tivesse a
intenção de ele mesmo ficar comigo.

Eu ouvia atenta cada palavra de sua história. E o

encorajava a continuar, balançando a cabeça.

- O Sr. Kadam cuidava para que eu me mudasse

com frequência suficiente, de modo que as pessoas não
percebessem a minha idade - prosseguiu. - Ele me visitava de
tempos em tempos para que eu soubesse como entrar em
contato com ele, mas não havia nada que pudesse de fato fazer.
No entanto, nunca deixou de tentar descobrir uma maneira de
quebrar a maldição. Dedicava todo o seu tempo a pesquisar
soluções. Suas visitas significavam tudo para mim. Acho que
teria perdido minha humanidade sem ele.

Ren deu um tapa em um mosquito atrás de seu pescoço e refletiu:


- Assim que fui capturado, pensei que seria fácil

escapar. Eu simplesmente esperaria que a noite caísse e abriria
o trinco da jaula. Mas, assim que me tornei cativo, fiquei
permanentemente preso à forma de tigre. Não conseguia mais
me transformar em homem... até que você apareceu.

Ele segurou um galho para que eu pudesse passar por baixo e eu perguntei:


- Como foi passar todos esses anos no circo?


Tropecei em uma pedra e Ren estendeu os braços para

me equilibrar. Quando me firmei novamente, ele soltou minha
cintura e me ofereceu a mão outra vez.

- Entediante, na maior parte do tempo. Às vezes os

proprietários eram cruéis e eu era chicoteado, espancado e
espetado. Tive sorte, porém, porque sarava depressa e era
esperto o bastante para fazer os truques que outros tigres se
recusavam a fazer. Um tigre naturalmente não quer saltar por
uma argola em chamas ou ter a cabeça de um homem em sua
boca. Tigres odeiam o fogo, por isso devem ser ensinados a
temer o domador mais do que as chamas.
- Parece horrível!
- Os circos daquela época eram mesmo horríveis. Os
animais eram colocados em jaulas pequenas demais. Relações
familiares naturais se rompiam e os bebês eram vendidos. Nos
primeiros tempos, a comida era ruim, as jaulas ficavam
imundas e os animais eram machucados, levados de cidade em
cidade e deixados ao ar livre em lugares e climas aos quais não
estavam acostumados. Não viviam muito.

Pensativo, ele prosseguiu:


- Hoje existem mais estudos e esforços para

prolongar a vida dos animais e melhorá-la. Viver enjaulado me
fez pensar por muito tempo em minhas relações com outras
criaturas, especialmente elefantes e cavalos. Meu pai tinha
milhares de elefantes que foram treinados para a batalha ou
para levantar objetos pesados e no passado tive um garanhão
que eu adorava cavalgar. Preso em minha jaula dia após dia, eu
me perguntava se ele sentia o mesmo que eu. Imaginava-o em
sua baia, entediado, esperando que eu aparecesse para soltá-lo.

Ren apertou a minha mão e se transformou novamente em tigre.


Eu me perdi em meus pensamentos. Como devia ter sido

difícil viver enjaulado. Ren precisou suportar séculos nessa
condição. Estremeci e continuei andando atrás dele.

Depois de passada mais de uma hora, tornei a falar:


- Ren? Tem uma coisa que não compreendo. Onde

estava Kishan? Por que ele não o ajudou a escapar?

Ren saltou sobre um enorme tronco caído. No meio do

salto, ele se transformou em pleno ar, caindo no chão do outro
lado, silenciosamente, sobre dois pés. Estendi a mão para que
ele me ajudasse a me firmar quando eu começava a transpor o tronco.

- Naquela época, Kishan e eu tentávamos evitar um

ao outro o máximo possível. Ele não sabia o que ocorrera até
Kadam encontrá-lo. Quando eles entenderam o que tinha
acontecido, era tarde demais para fazer qualquer coisa. Kadam
havia tentado, sem sucesso, me libertar, então persuadiu Kishan
a se manter escondido enquanto procurava descobrir o que
fazer. Como eu disse, ele tentou me libertar me comprando e
contratando ladrões durante séculos. Nada funcionou até você
aparecer. Por alguma razão, depois que você desejou que eu
vivesse em liberdade, eu pude ligar para ele.

Ren riu.


- Quando me transformei em homem de novo pela

primeira vez depois de séculos, pedi a Matt que fizesse uma
ligação a cobrar para mim. Disse a ele que eu fora assaltado e
que precisava entrar em contato com meu patrão. Ele me
explicou como funcionava o telefone e o Sr. Kadam chegou pouco depois.

Ren tornou a se transformar em tigre e prosseguimos.

Ele caminhava ao meu lado e eu mantinha a mão em seu cangote.

Depois de andar por várias horas, Ren parou de repente

e farejou o ar. Sentou-se e se pôs a olhar para a selva. Fiquei
alerta quando alguma coisa sacudiu os arbustos. Primeiro
surgiu um focinho preto em meio à vegetação rasteira, seguido
pelo restante do tigre negro.

Eu sorri, feliz.


- Kishan! Você mudou de idéia. Está vindo conosco? Fico tão feliz!


Kishan se aproximou de mim e estendeu uma pata que se transformou em mão.


- Olá, Kelsey. Não, não mudei de idéia. Mas fico feliz

de encontrá-la em segurança.

Kishan lançou um olhar malévolo a Ren, que não

perdeu tempo em assumir a forma humana também.

Ren empurrou o ombro de Kishan e gritou:


- Por que você não me disse que ela estava lá? Ela

viu a caçada, e você a deixou sozinha e desprotegida!

Kishan reagiu, empurrando o peito de Ren.


- Você foi embora antes que eu pudesse dizer

qualquer coisa. Se isso faz você se sentir melhor, passei a noite
toda procurando por ela. Vocês arrumaram tudo e partiram sem me dizer nada.

Eu me pus entre eles e pedi:


- Por favor, açalmem-se. Ren, eu concordei com

Kishan que acompanhá-lo seria mais prudente e ele cuidou
bem de mim. Fui eu quem resolvi assistir à caçada e fui eu
quem escolhi voltar para o acampamento sozinha. Portanto, se
você vai ficar com raiva de alguém, fique com raiva de mim.

Virei-me para Kishan.


- Sinto muito ter feito você me procurar a noite toda

no meio de uma tempestade. Não me dei conta de que ia chover
ou de que isso fosse apagar o meu rastro. Peço desculpas.

Kishan sorriu e beijou minha mão, enquanto Ren grunhia, ameaçador.


- Desculpas aceitas. Então, o que achou?

- Da chuva ou da caçada?
- Da caçada, é claro.
- Ah, foi...
- Ela teve pesadelos - Ren disse ao irmão com aspereza.

Fiz uma careta e concordei com um movimento da cabeça.


- Bom, pelo menos meu irmão está bem alimentado.

Provavelmente semanas se passariam antes que ele matasse uma presa sozinho.
- Eu estava indo muito bem sem você!

Kishan sorriu, com deboche.


- Não, você não ia conseguir pegar nem uma tartaruga manca sem mim.


Ouvi o soco antes de vê-lo. Foi uma pancada forte, do

tipo que eu pensava que só acontecesse no cinema. Ren me
conduzira habilmente para o lado e então socara o irmão.

Kishan se afastou, esfregando o maxilar, mas encarou Ren com um sorriso.


- Tente de novo, irmão.


Ren ficou carrancudo, mas não disse nada. Ele

simplesmente pegou a minha mão e começou a andar com
passos rápidos, me puxando com ele através da selva. Eu tinha
quase que correr para acompanhá-lo.

O tigre negro passou zunindo por nós e com um salto

se interpôs em nosso caminho. Kishan mudou novamente para
a forma humana e disse:

- Esperem. Tenho uma coisa para dizer a Kelsey.


Ren franziu a testa, mas eu pus a mão em seu peito.


- Ren, por favor.


Ele correu o olhar do irmão para mim e sua expressão

se suavizou. Então soltou minha mão, tocou meu rosto
brevemente e se afastou alguns passos enquanto Kishan se aproximava.

- Kelsey, quero que fique com isto - anunciou

Kishan, levando as mãos ao pescoço para retirar uma corrente
oculta sob a camisa preta. Depois de a colocar em torno do
meu pescoço e prender o fecho, ele disse: - Acho que você sabe
que este amuleto irá protegê-la da mesma forma que o de Ren protege Kadam.

Manuseei a corrente e puxei o pendente quebrado para olhá-lo mais de perto.


- Kishan, tem certeza de que quer que eu o use?


Ele sorriu jovialmente.


- Meu encanto, seu entusiasmo é contagiante. Um

homem não pode estar perto de você e permanecer indiferente
à sua causa. E, embora eu vá continuar na selva, esta será
minha pequena contribuição para seus esforços.

Sua expressão ficou séria.


- Quero que se cuide, Kelsey. Tudo o que sabemos

com certeza é que o amuleto tem o poder de dar uma vida
longa a seu portador. Mas isso não significa que você não possa
ser ferida ou mesmo morta. Fique atenta.

Ele segurou meu queixo e eu fitei seus olhos dourados.


- Não quero que nada lhe aconteça, bilauta.

- Vou tomar cuidado. Obrigada, Kishan.

Kishan fitou Ren, que inclinou a cabeça em discreto

consentimento, e então voltou o olhar para mim, sorriu e disse:

- Vou sentir sua falta, Kelsey. Venha me visitar.


Eu o abracei brevemente e lhe ofereci o rosto para um

beijo. No último segundo, Kishan desviou o rosto e me deu um rápido selinho.

- Seu trapaceiro! - exclamei, surpresa.


Então ri e lhe dei um soco de leve no braço.


Ele apenas sorriu e piscou para mim.


Ren cerrou os punhos e uma expressão sombria tomou

conta de seu lindo rosto. Kishan, porém, o ignorou e disparou
em direção à selva. Sua risada ecoou em meio às árvores e
tornou-se um rugido rouco quando ele se transformou no tigre negro.

Ren veio até mim, pegou o pendente e o esfregou,

pensativo, entre os dedos. Pus a mão em seu braço, temendo
que ele ainda pudesse estar zangado por causa de Kishan. Ele
deu um leve puxão em minha trança, sorriu e pousou um beijo
afetuoso em minha testa.

Transformando-se novamente no tigre branco, ele me

conduziu pela selva por mais meia hora até que, com alívio, vi
que finalmente havíamos chegado à rodovia.

Depois de esperarmos ali até não haver mais trânsito,

atravessamos correndo para o outro lado e desaparecemos em
meio à vegetação. Seguimos o faro de Ren por mais uma
pequena distância e por fim encontramos uma barraca de
estilo militar. Corri para abraçar o homem que saiu de dentro dela

- Sr. Kadam! Como estou contente em ver o senhor!


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