segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Capítulo 9 - Um Amigo

Sentei-me na beira da cama pensando no que Ren
acabara de me contar. Olhando para o tigre agora, eu pensava,
ou talvez assim esperasse, que podia ter imaginado tudo aquilo.
Talvez a selva esteja me causando alucinações. Isso tudo é real?
Tem mesmo uma pessoa sob esse pelo?

O tigre se esticou todo no chão e descansou a cabeça

nas patas. Ele me olhou com seus magníficos olhos azuis por
um longo momento e imediatamente eu soube que aquilo era real.

Ren dissera que o xamã só voltaria ao anoitecer e ainda

faltavam várias horas até lá. A cama parecia convidativa. Seria
bom tirar um cochilo, mas eu estava imunda. Concluí que um
banho era a primeira coisa a fazer e fui investigar a banheira,
que precisava ser enchida à moda antiga - com um balde.

Dei início à árdua tarefa de bombear água para o balde,

despejá-la na banheira e começar tudo de novo. Parecia mais
fácil na televisão do que na vida real. Pensei que meus braços
fossem cair logo depois do terceiro balde, mas resisti à dor
sabendo como seria bom tomar um banho. Meus braços
cansados me convenceram de que encher a banheira até a
metade era mais do que suficiente.

Tirei os tênis e comecei a desabotoar a blusa. Já estava

na metade dos botões quando de repente percebi que tinha
uma plateia. Juntei os dois lados da blusa, fechando-a, e me
virei, dando de cara com Ren me observando.

- Que cavalheiro, hein!? Está quieto como um rato de

propósito, não é? Bem, não quero saber. É melhor você ir se
sentar lá fora enquanto eu tomo banho. - Agitei o braço no ar.
- Vá... fique de guarda ou qualquer outra coisa.

Abri a porta e Ren vagarosamente se arrastou para fora.

Apressei-me em me despir, entrei na água e comecei a esfregar
minha pele suja com o sabonete de ervas caseiro do xamã.

Depois de ensaboar meu cabelo e enxaguá-lo, recostei-me na

banheira por um instante, pensando: Onde eu fui me meter?
Por que o Sr. Kadam não me contou nada disso? O que eles
esperam que eu faça? Quanto tempo vou ficar presa nesta selva indiana?

As perguntas fervilhavam na minha cabeça,

afugentando pensamentos coerentes. Desistindo de tentar dar
um sentido a tudo aquilo, saí da banheira, me enxuguei, me
vesti e abri a porta para Ren, que estivera deitado com as costas apoiadas nela.

- Pode entrar agora. Já estou vestida.


Ren tornou a entrar enquanto eu me sentava na cama,

de pernas cruzadas, e começava a desembaraçar o cabelo.

- Fique sabendo, Ren, que vou dizer poucas e boas

ao Sr. Kadam depois que sairmos daqui. Aliás, você também
não irá se safar. Tenho mil perguntas para fazer. Pode se preparar.

Fiz uma trança em meu cabelo e o amarrei com uma

fita verde. Enfiando os braços debaixo da cabeça, me recostei
no travesseiro e fitei o teto de bambu. Ren pôs a cabeça no
colchão perto da minha e me olhou com a expressão de um
tigre que pede desculpas.

Eu ri e lhe fiz um carinho na cabeça, a princípio sem

jeito, mas ele se encostou mais e eu rapidamente superei a timidez.

- Está tudo bem, Ren. Não estou zangada. Só queria

que vocês dois tivessem confiado mais em mim.

Ele lambeu minha mão e se deitou no chão para

descansar. Virei-me de lado para observá-lo.

Devo ter caído no sono, pois quando abri os olhos

estava escuro na cabana, exceto por uma lamparina que
brilhava suavemente na cozinha. Sentado à mesa estava um velho.

Eu me sentei na cama e esfreguei os olhos sonolentos,

surpresa por ter dormido tanto tempo. O xamã estava ocupado,
tirando as folhas de várias plantas espalhadas sobre a mesa.
Quando me levantei, ele fez sinal para que eu me aproximasse.

- Olá, mocinha. Você dorme bastante. Muito

cansada. Muito, muito cansada.

Fui até a mesa, seguida por Ren. Ele bocejou, arqueou as

costas, alongou uma perna de cada vez e então se sentou aos meus pés.

- Está com fome? Coma. Boa comida, hein? Muito gostosa.


O homenzinho se levantou e serviu um pouco de um

aromático ensopado de legumes temperado com ervas que
borbulhava em uma panela no fogão a lenha. Ele colocou um
pedaço de pão chato na borda da tigela e voltou para a mesa.
Empurrando a tigela na minha direção, assentiu com
satisfação, então se sentou e continuou a desfolhar as plantas.

O ensopado tinha um cheiro divino, principalmente

depois de eu ter comido apenas barras de cereais por um dia e meio.

O xamã estalou a língua.


- Qual seu nome?

- Kelsey - murmurei enquanto mastigava.
- Quel-si. Você tem bom nome. Forte.
- Obrigada pela comida. Está deliciosa!

Ele grunhiu em resposta e fez um gesto com a mão, dispensando o elogio.


- Qual é o seu nome? - perguntei.

- Meu nome imenso. Me chame Phet.

Phet era um homem pequeno, magro, moreno e

enrugado, com uma coroa de cabelos crespos grisalhos
circundando a parte posterior da cabeça. A careca lustrosa
refletia a luz da lamparina. Usava uma túnica verde-
acinzentada, tecida rusticamente, e sandálias. Um sarongue
estava displicentemente jogado sobre seus ombros e me
surpreendia que o traje fino se mantivesse sobre sua frágil figura.

- Phet, me desculpe por invadir a sua casa. Ren me trouxe aqui. Sabe...

- Ah, Ren, o seu tigre. Sim, Phet sabe por que vocês
estão aqui. Anik disse que você e Ren vinham, então fui ao lago
Suki hoje para... preparação.

Servi-me mais um pouco de ensopado enquanto ele me

trazia um copo de água.

- Você se refere ao Sr. Kadam? Ele lhe disse que

viríamos?
- Sim, sim. Kadam disse Phet. - O xamã empurrou
para um lado as plantas, abrindo espaço no canto da mesa, e
então apanhou uma gaiolinha que abrigava um raro e
pequenino pássaro vermelho. - Muitos pássaros no lago Suki,
mas este muito extraordinário.

Ele se inclinou para a gaiola, estalou a língua para a ave

e agitou o dedo. Então começou a assobiar e falou alegremente
com o pássaro em sua língua nativa. Voltando sua atenção para mim, disse:

- Phet demorou dia todo para capturar. Pássaro tem canto liiin-do.

- Ele vai cantar para nós?
- Quem sabe? Às vezes pássaro nunca canta, a vida
toda. Só canta para pessoa especial. Quel-si é pessoa especial?

Ele riu ruidosamente, como se tivesse contado uma piada engraçadíssima.


- Phet, como se chama este pássaro?

- Ele é da ninhada de Durga.

Terminei meu ensopado e pus a tigela de lado.


- Quem é Durga?


Ele sorriu.


- Ah. Durga liiin-da deusa e Phet - apontando para

si mesmo - é humilde criado. Pássaro canta para Durga e mulher especial.

Ele tornou a apanhar suas folhas e continuou trabalhando.


- Então você é um sacerdote de Durga?

- Sacerdote instrui outra pessoa. Phet existe sozinho. Serve sozinho.
- Você gosta de viver só?
- Sozinho mente raciocina, ouve coisas, vê coisas. Mais gente, vozes demais.

Um bom argumento. Também não me importo de ficar

sozinha. O único problema é que, se você está sempre sozinho, sente-se solitário.

- Humm. Seu pássaro é muito bonito.


Ele assentiu e começou a trabalhar silenciosamente.


- Posso ajudá-lo com as folhas? - perguntei.


Ele abriu um sorriso largo, revelando a ausência de

vários dentes. Seus olhos quase desapareceram em meio às
profundas rugas morenas.

- Você me ajudar? Sim, Quel-si. Observe Phet. Imite. Você experimenta.


Ele segurou o caule de uma planta e correu os dedos

para baixo, até arrancar todas as folhas. Então me entregou um
galho com minúsculas folhas, que parecia um tipo de alecrim.
Arranquei as folhas perfumadas e empilhei-as na mesa.
Trabalhamos juntos por um tempo.

Aparentemente, Phet colhia as ervas como meio de vida.

Ele me mostrou as diferentes plantas que havia apanhado e me
disse seus nomes e para que eram usadas. Também tinha a
coleção seca, que pendia do teto, e passou algum tempo
descrevendo cada um dos itens. Alguns nomes me soavam
familiares, mas outros eu nunca ouvira.

Ele subiu em um banquinho, catou algumas plantas

secas e as substituiu por frescas. Então pegou um pilão e,
depois de me ensinar a triturar as ervas, transferiu-me a tarefa
de moer vários tipos delas.

Phet abriu um jarro que tinha gotas duras e douradas

de resina. Cheirei o interior do pote e comentei:

- Eu me lembro deste cheiro na selva. É aquela coisa

grudenta que escorre das árvores, não é?
- Muito bem, Quel-si. Seu nome olíbano. Vem da árvore Boswellia.
- Olíbano? Eu sempre me perguntei o que era isso.

Ele tirou uma lasquinha e me entregou.


- Aqui, Quel-si. Prove.

- Você quer que eu coma isso? Pensei que fosse um perfume.
- Pegue, Quel-si. Experimente.

Ele colocou um pedaço em sua própria língua e eu segui seu exemplo.


O aroma era picante e o sabor, doce. A textura era a de

uma goma grudenta. Phet mascou com seus poucos dentes e sorriu para mim.

- Gosto bom, Quel-si? Agora respire longo.

- Respirar longo?

Ele demonstrou inspirando profundamente e assim eu

fiz. Ele me deu um tapa nas costas que teria feito com que eu
cuspisse a goma, se ela não estivesse grudada em meus dentes.

- Está vendo? Bom para estômago, hálito bom, sem

preocupações. - Ele me entregou o pequeno jarro de olíbano. -
Guarde este. Muito útil para você.

Eu lhe agradeci e depois de guardar o jarro em minha mochila voltei ao pilão.


- Quel-si, você fez viagem longa, sim? - perguntou ele.

- Ah, sim, muito, muito longa.

Contei-lhe como conheci Ren no Oregon e falei sobre a

viagem para a índia com o Sr. Kadam. Também descrevi a
perda do caminhão, nossa caminhada pela selva e terminei
com o momento em que encontramos sua casa.

Phet assentia e ouvia, atento.


- E seu tigre nem sempre é tigre. Estou correto dizendo isso?


Olhei para Ren.


- Sim, você está correto.

- Você quer ajudar o tigre?
- Quero. Estou zangada por ele ter me enganado,
mas entendo por que fez isso. - Baixei a cabeça e dei de ombros. - Só quero que ele seja livre.

Nesse momento, o passarinho vermelho começou a

cantar lindamente e continuou cantando pelos minutos seguintes.

Phet fechou os olhos, escutando com uma expressão de

puro êxtase, e assoviou baixinho, acompanhando. Quando a
ave parou de cantar, ele abriu os olhos e se virou para mim, sorrindo.

- Quel-si! Você muito especial! Sinto alegria! Phet

ouviu canto de Durga! - Ele se levantou, alegre, e começou a
guardar todas as plantas e os jarros. - No momento, você deve
descansar. Nascer do sol importante amanhã. Phet precisa
rezar na noite e você precisa dormir. Embarcar em sua
travessia amanhã. Dura e difícil. À primeira luz, Phet ajuda
você na companhia do tigre. Segredo de Durga vai ser
revelado. Agora vá dormir.

- Acabei de tirar um bom cochilo e ainda não estou

com sono. Não posso ficar com você e fazer mais perguntas?
- Não. Phet vai rezar. Preciso expressar
agradecimento a Durga pelo privilégio da bênção imprevista.
Seu sono essencial. Phet faz infusão para aumentar sono de Quel-si.

Ele colocou várias folhas em uma xícara e despejou

água fervente sobre elas. Depois de um minuto, me entregou a
xícara e indicou que eu bebesse. Tinha cheiro de chá de hortelã
com um toque de um condimento semelhante ao cravo. Dei um
gole e gostei do sabor. Ele me enxotou para a cama e mandou
Ren me acompanhar. Depois de diminuir a intensidade do
lampião, pôs uma sacola no ombro, sorriu para mim e saiu,
fechando a porta silenciosamente.

Deitei-me na cama pensando que dormir seria

impossível, mas sem muita demora mergulhei em um sono
relaxante e sem sonhos.

Na manhã seguinte, Phet me acordou cedo batendo palmas bem alto.


- Olá, Quel-si e Ren. Phet reza enquanto vocês

dormem. Como consequência, Durga faz milagre. Vocês
precisam acordar! Preparem-se e nós conversamos.
- Certo, Phet, vou me apressar.

Puxei a cortina à minha volta e me arrumei.


Na cozinha, Phet preparava ovos e já servira um grande

prato deles no chão para Ren. Lavei as mãos com o sabonete de
ervas e me sentei à mesa. Desmanchei a trança e penteei os
cabelos ondulados com os dedos.

Ren parou de comer, engoliu seu bocado de ovos e

ficou me olhando atentamente enquanto eu trabalhava em meu cabelo.

- Ren, pare de me olhar! Coma os ovos. Você deve estar morrendo de fome.


Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e ele finalmente

se voltou para sua comida. Phet também me serviu um prato
contendo uma pequena salada com uma estranha variedade de
verduras de sua horta e uma bela omelete. Então ele se sentou
para conversar conosco.

- Quel-si, eu sou homem facilitador agora. Durga

falou comigo. Ela vai ajudar vocês. Numerosos anos passados,
Anik Kadam procura remédio para confortar Ren. Eu digo a ele
Durga aprecia o tigre, mas ninguém pode aliviá-lo. Ele me
pergunta o que pode fazer. Naquela noite, Phet sonha com dois
tigres, um pálido como a lua; outro negro, à semelhança da
noite. Durga fala baixinho no meu ouvido. Ela diz apenas
garota especial pode quebrar maldição. Phet sabe: garota
protegida de Durga. Ela luta pelo tigre. Eu digo Anik: atento
garota especial da deusa. Dou indicação: garota sozinha, cabelo
castanho, olhos escuros. Devotada ao tigre e sua palavra
poderosa como melodia da deusa. Ajuda tigre ser livre outra
vez. Eu digo Anik: descubra protegida de Durga e traga para mim.

Ele colocou as mãos morenas e deformadas sobre a

mesa e se inclinou para mim.

- Quel-si, Phet percebe você excepcional protegida de Durga.

- Phet, do que você está falando?
- Você guerreira forte, bonita, como Durga.

- Eu? Uma guerreira forte e bonita? Acho que você está com a garota errada.


Ren rosnou baixo e Phet estalou a língua.


- Não. O passarinho de Durga canta para você. Você

garota certal Não jogue fora o destino, como erva daninha!
Flor preciosa. Paciência. Espere florescer.
- Está bem, Phet, vou dar o melhor de mim. O que
tenho que fazer? Como posso quebrar a maldição?
- Durga ajuda você na caverna Kanheri. Use chave para abrir câmara.
- Que chave? - perguntei.
- Chave é célebre Selo do Império Mujulaain. Tigre
sabe. Encontre lugar subterrâneo na caverna. Selo é chave.
Durga leva você à resposta. Liberta tigre.

Comecei a tremer incontrolavelmente. Aquilo era

demais para absorver de uma só vez. Mensagens em cavernas
secretas, ser a favorita de uma deusa indiana e partir em uma
aventura na selva com um tigre? Eu me sentia assoberbada.
Minha mente gritava: Não é possível! Não é possível! Como foi
que fiquei presa nessa situação bizarra? Ah, sim. Eu me voluntariei.

Phet me observava com curiosidade. Ele pôs a mão

sobre a minha. Era quente e delicada, e me acalmou instantaneamente.

- Quel-si, acredite em você mesma. Você mulher forte. Tigre protege você.


Baixei os olhos para Ren, que estava sentado no piso de

bambu, me olhando com uma expressão preocupada.

- Eu sei que ele vai cuidar de mim. E quero muito

ajudá-lo a quebrar a maldição. É só um pouquinho... assustador.

Phet apertou minha mão e Ren levou uma pata ao meu

joelho. Reprimi o medo e o empurrei para o fundo da mente.

- Então, Phet, aonde vamos agora? À caverna?

- Tigre sabe aonde ir. Siga tigre. Pegue Selo. Devem
partir logo. Antes de ir, Quel-si, Phet confere a você marca da deusa e reza.

Phet apanhou um pequeno arranjo de folhas que

havíamos selecionado na noite anterior. Ele o agitou no ar em
torno da minha cabeça, descendo por cada um dos meus
braços, enquanto cantava baixinho. Então arrancou uma
folhinha e a levou aos meus olhos, nariz, boca e testa. Depois
voltou-se para Ren e cumpriu o mesmo ritual.

Em seguida, levantou-se e trouxe um pequeno jarro

contendo um líquido marrom. Ele tirou um galho fino que fora
despojado das folhas e o mergulhou levemente no jarro.
Tomando minha mão direita, começou a fazer desenhos
geométricos. O líquido tinha um cheiro pungente e os
arabescos que ele desenhou me lembravam os desenhos de hena nas mãos.

Quando chegou ao fim, virei a mão de um lado para

outro, admirando a habilidade necessária para criar o
elaborado trabalho de arte. Os padrões que ele desenhou
cobriam o dorso da minha mão direita, assim como a palma e as pontas dos dedos.

- Para que serve isso? - perguntei.

- Este símbolo poderoso. Marca permanece muitos dias.

Phet reuniu todas as folhas e os galhos, atirou-os no

velho fogão a lenha de ferro fundido e pairou acima dele por
um momento, a fim de inalar a fumaça. Em seguida, virou-se
para mim, fazendo uma mesura.

- Quel-si, agora hora de partir.


Ren saiu pela porta. Curvei-me em retribuição a Phet e então o abracei rapidamente.


- Obrigada por tudo. Agradeço de coração sua hospitalidade e sua generosidade.


Ele sorriu calorosamente para mim e apertou minha

mão. Apanhei minha bolsa, a mochila, abaixei-me para passar
pela porta e saí, seguindo Ren.

Sorrindo, Phet foi até a portinha e acenou em despedida.


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