sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Capítulo 18 - O Templo de Durga

O Sr. Kadam nos instruiu a esperar no carro enquanto
ele verificava se havia visitantes no templo. Ren enfiou a
cabeça entre os bancos e começou a dar cabeçadas no meu
ombro até eu me virar.

- É melhor você manter a cabeça abaixada. Alguém

pode vê-lo se não tomar cuidado - falei com uma risada.

O tigre branco emitiu um ruído.


- Eu sei. Também senti sua falta.


Depois de uns cinco minutos, um jovem casal saiu do

templo, entrou em um carro e partiu, e o Sr. Kadam retornou.

Saltei e abri a porta para Ren, que começou a se

esfregar em minhas pernas como um gato doméstico gigante à
espera da comida. Eu ri.

- Ren! Você vai me derrubar.


Mantive a mão em seu pescoço e ele se contentou com isso.


O Sr. Kadam deu uma risadinha e disse:


- Vocês dois podem ir dar uma olhada no templo

enquanto eu fico aqui de vigia para o caso de aparecerem outros visitantes.

O acesso ao templo era ladeado por pedras lisas cor de

terracota. O templo propriamente dito era da mesma cor, com
estrias de um sépia suave, rosa e bege claro. Árvores e flores
haviam sido plantadas em torno da área do templo e vários
caminhos saíam da entrada principal.

Subimos os degraus baixos de pedra até a entrada, que

era aberta e exibia colunas altas que sustentavam o caminho de
acesso. A soleira tinha altura suficiente apenas para que uma
pessoa de estatura mediana passasse. De ambos os lados da
abertura havia entalhes incrivelmente detalhados de deuses e deusas indianos.

Um aviso, escrito em várias línguas, dizia que devíamos tirar os sapatos.


O chão era coberto de poeira, então tirei também as

meias e as enfiei dentro dos tênis.

Lá dentro, o teto se expandia em um domo alto onde se

viam intricados entalhes com imagens de flores, elefantes,
macacos, o sol e deuses e deusas brincando. O piso era de pedra
e quatro colunas decorativas ligadas por arcos ornamentais se
erguiam a cada canto. As colunas ostentavam entalhes de
pessoas em vários estágios da vida e em várias ocupações no
ato de venerar Durga. Uma imagem da deusa podia ser vista no
topo das pilastras.

O templo era literalmente esculpido em uma colina

rochosa. Uma série de degraus levava do piso principal a três
direções. Escolhi o arco da direita e subi os degraus. A área
além dele estava danificada. Pedras quebradas e esfaceladas
espalhavam-se pelo piso. Pelo estado em que o espaço se
encontrava, eu não conseguia imaginar com que propósito poderia ter sido usado.

A área seguinte abrigava uma espécie de altar de pedra.

Uma pequena estátua quebrada, agora não identificável,
descansava sobre ele. Tudo era coberto por um pó sépia
espesso, cujas partículas cintilavam e pairavam no ar. Feixes de
luz desciam de rachaduras no domo e iluminavam o piso com
raios estreitos. Eu não ouvia Ren, mas cada movimento meu ecoava pelo templo vazio.

O ar lá fora era abafado, mas ali dentro estava apenas

morno e até fresco em alguns lugares, como se cada passo me
levasse a um clima diferente. Olhei para o piso e vi minhas
pegadas e as de Ren e pensei que deveria varrer o chão antes de
irmos embora. Não queríamos que as pessoas pensassem que
havia um tigre rondando o templo.

Depois de dar uma busca na área e não encontrar nada

importante, entramos no arco da esquerda e eu arquejei,
pasma. Um recesso escavado na pedra abrigava uma linda
estátua de pedra de Durga. Ela usava um imponente ornamento
de cabeça e tinha os oito braços dispostos em torno de seu torso
como penas de pavão. Segurava várias armas, uma das quais
erguida num gesto de defesa. Olhei mais de perto e vi que era a
gada, a maça. Enroscado em suas pernas estava Damon, o tigre
de Durga. Suas garras enormes se projetavam de uma pesada
pata, apontada para a garganta de um javali inimigo.

- Acho que ela também tinha um tigre para protegê-la, hein, Ren?


Parei na frente da estátua e Ren se sentou ao meu lado.

Enquanto a examinávamos, perguntei a ele:

- O que você acha que o Sr. Kadam espera que

encontremos aqui? Mais respostas? Como conseguimos a bênção dela?

Andei de um lado para outro diante da estátua

enquanto investigava as paredes, introduzindo o dedo
cautelosamente nas fendas. Estava procurando alguma coisa
incomum, sem muita certeza do que poderia ser. Depois de
meia hora, minhas mãos estavam manchadas, cheias de teias de
aranha e cobertas por uma poeira terracota. E eu não chegara a
lugar algum. Limpei as mãos na calça jeans e me sentei
pesadamente em um degrau de pedra.

- Desisto. Não sei o que devíamos estar procurando.


Ren se aproximou e descansou a cabeça no meu joelho.

Fiz um carinho em suas costas macias.

- O que vamos fazer agora? Continuamos procurando ou voltamos para o Jeep?


Olhei para a coluna de sustentação ao meu lado. Ela

mostrava um entalhe de pessoas adorando Durga - duas
mulheres e um homem fazendo uma oferenda de comida.
Pensei que deviam ser lavradores, pois havia tipos diferentes de
campos e pomares dominando o restante da pilastra. Rebanhos
de animais domésticos e instrumentos agrícolas também
tinham sido incluídos na cena. O homem carregava um feixe
de grãos pendurado no ombro. Uma das mulheres levava um
cesto de frutas e a outra trazia alguma coisa pequena na mão.

Eu me levantei para olhar mais de perto.


- Ren, o que você acha que ela tem na mão?


Dei um pulo. A mão quente do príncipe pegou a minha e a apertou de leve.


- Você devia me avisar antes de mudar de forma, sabia? - ralhei.


Ele riu e traçou as linhas do entalhe com o dedo.


- Não tenho certeza. Parece um tipo de sino.


Também cobri o entalhe com o dedo e murmurei:


- E se fizermos uma oferenda como essa a Durga?

- O que quer dizer?

- Por que não lhe oferecer alguma coisa, como frutas, e então tocar um sino?


Ele deu de ombros.


- Claro. Vale a pena tentar qualquer coisa.


Voltamos para o Jeep e contamos nossa ideia ao Sr.

Kadam. Ele pareceu entusiasmado.

- Excelente idéia, Srta. Kelsey! Não sei por que não pensei nisso.


Ele vasculhou nosso almoço e pegou uma maçã e uma banana.


- Quanto ao sino, não me ocorreu trazer um, mas

acredito que em muitos desses templos antigos haja um sino
instalado. Os discípulos os tangiam quando chegavam
convidados, quando em adoração e para convocar para uma
refeição. Talvez encontrem algum por lá.

Novamente no templo, Ren procurou na área do altar

enquanto eu começava a remexer os escombros na outra sala.

Uns 15 minutos depois, ouvi:


- Kelsey, aqui! Encontrei!


Corri até Ren, que me mostrou uma parede estreita na

quina da sala que não podia ser vista da porta do templo.

Prateleiras rasas haviam sido escavadas na pedra como

minúsculos recessos. Na do alto, bem além do meu alcance,
mas ainda no de Ren, encontrava-se um diminuto sino de
bronze enferrujado, coberto por teias de aranha e poeira. Ele
tinha um pequeno anel na parte superior para que pudesse ser
pendurado em um gancho.

Ren o pegou na prateleira e usou a camisa para limpá-

lo. Tirando a fuligem e a poeira, ele o sacudiu, emitindo um
tilintar etéreo. Ren sorriu e me ofereceu a mão, voltando
comigo à estátua de Durga.

- Acho que você deve fazer a oferenda, Kells. - Ele

afastou o cabelo dos olhos. - Você é a protegida de Durga, afinal.

Fiz uma careta.


- Pode ser, mas está se esquecendo de que eu sou

uma estrangeira e você é um príncipe da Índia. Certamente
sabe melhor do que eu o que está fazendo.

Ele deu de ombros.


- Nunca fui devoto de Durga. Não conheço o processo.

- O que você venera ou venerava?
- Eu participava dos rituais e das festas religiosas do
meu povo, mas meus pais queriam que Kishan e eu
decidíssemos por nós mesmos em que acreditar. Eles tinham
uma grande tolerância em relação a diferentes ideologias
religiosas, pois eram de duas culturas diferentes. E você?
- Não voltei à igreja depois da morte dos meus pais.

Ele apertou minha mão e propôs:


- Acho que nós dois precisamos encontrar um

caminho para a fé. Eu acredito que exista algo maior, um poder
benigno no universo que guia todas as coisas.
- Como você continua tão otimista quando está
preso a um corpo de tigre há séculos?

Ele limpou a poeira no meu nariz com a ponta do dedo.


- Meu atual nível de otimismo é uma aquisição relativamente nova. Venha.


Ele sorriu, beijou minha testa e me puxou para longe da coluna.


Nós nos aproximamos da estátua e Ren começou a

limpar o tigre. Parecia um bom ponto de partida. Desdobrei o
guardanapo em que o Sr. Kadam havia envolvido as frutas e
comecei a livrar a estátua de anos de poeira. Depois de termos
limpado todo o pó e as teias de aranha de Durga e seu tigre,
inclusive dos oito braços, limpamos a base e o estrado em que
se encontrava. Na base da estátua, Ren encontrou uma pedra
ligeiramente escavada que parecia uma tigela. Concluímos que
devia ser ali que as pessoas deixavam suas oferendas.

Coloquei a maçã e a banana na tigela e me posicionei

diante da estátua. Ren ficou de pé ao meu lado e segurou minha mão.

- Estou nervosa - gaguejei. - Não sei o que dizer.

- Bom, eu começo e você acrescenta o que achar natural.

Ele tocou o sininho três vezes. Seu tilintar ecoou pelo templo cavernoso.


Em voz alta e clara, Ren disse:


- Durga, viemos pedir sua bênção para nossa busca.

Nossa fé é fraca e simples. Nossa tarefa é complexa e
misteriosa. Por favor, nos ajude a encontrar a compreensão e a força.

Ele olhou para mim. Engoli em seco, tentei umedecer

meus lábios secos e acrescentei:

- Por favor, ajude esses dois príncipes da Índia.

Devolva-lhes o que lhes foi tirado. Ajude-me a ser forte e sábia
o bastante para fazer o que for necessário. Ambos merecem a
chance de ter uma vida.

Agarrei a mão de Ren com firmeza e esperamos.


Outro minuto se passou, e mais outro. Ainda assim nada

aconteceu. Ren me abraçou brevemente e disse que precisava
voltar à forma de tigre. Beijei seu rosto e ele começou a mudar.
No momento em que voltou a ser um tigre, a sala começou a
vibrar e as paredes de repente se sacudiram. Um trovão
ensurdecedor soou no templo, seguido por várias explosões de luz branca.

Um terremoto! Seremos enterrados vivos!


Pedras pequenas e grandes despencavam do teto e uma

das grandes colunas rachou. Eu caí e Ren saltou sobre mim,
protegendo meu corpo dos escombros.

O tremor foi parando e o estrondo cessou. Ren se

afastou de mim enquanto eu me erguia devagar, cambaleando.
Tornei a olhar para a estátua, atônita. Uma parte da parede de
pedra havia se quebrado, espatifando-se em centenas de pedaços.

Na parede onde a pedra estivera agora via-se a marca

de uma mão. Andei até lá e Ren grunhiu baixinho. Tracei o
contorno da mão com o dedo e olhei para Ren. Reunindo
coragem, ergui minha mão e a coloquei na marca. Senti que a
pedra ficava quente, da mesma forma que na caverna de
Kanheri. Minha pele fulgurava, como se alguém segurasse uma
lanterna debaixo da minha mão. Fascinada, fiquei olhando as
veias azuis que apareciam enquanto minha pele se tornava transparente.

O desenho de hena de Phet ressurgiu e reluziu

vermelho. Faíscas crepitantes saltavam de meus dedos, que
formigavam. Ouvi um tigre grunhir, mas não era Ren. Era
Damon, o tigre de Durga!

Os olhos do tigre brilharam amarelos. A pedra se

transformou de rocha dura em carne viva e pelo alaranjado e
preto. Ele arreganhou os dentes rosnando para Ren, que recuou
um passo e rugiu enquanto seu pelo se eriçava em torno do
pescoço. De repente, o tigre parou, se sentou e olhou para sua dona.

Tirei minha mão da marca e comecei a me afastar.

Lentamente, fui recuando até me encontrar atrás de Ren.

Calafrios percorriam minhas costas e eu tremia de medo. A

estátua rígida começou a respirar e a pedra bege claro se dissolveu em carne.

A deusa Durga era uma linda mulher indiana, porém

com pele de ouro. Vestida em uma túnica de seda azul, fez um
movimento e eu ouvi o sussurro do tecido deslizando. Jóias de
todos os tipos adornavam cada braço. Elas cintilavam e
resplandeciam. Reflexos das cores do arco-íris encheram o
templo e incidiam de um ponto a outro quando ela se movia.
Prendi a respiração enquanto ela piscava, abrindo os olhos, e
baixava os oito braços. Durga cruzou dois pares deles diante do
peito e inclinou a cabeça, observando-nos.

Ren se aproximou e esfregou a lateral do corpo em

mim. Isso me tranquilizou e eu me senti muito grata por sua
presença. Pousei a mão em suas costas e senti os músculos
tensos debaixo da minha palma. Ele estava pronto para saltar,
para atacar se fosse preciso.

Ficamos os quatro contemplando uns aos outros em

silêncio durante um tempo. Durga parecia especialmente
interessada em minha mão, que no momento acariciava as
costas de Ren. Por fim, ela falou.

Um de seus braços dourados se estendeu e gesticulou em nossa direção.


- Bem-vinda ao meu templo, filha.


Eu queria perguntar por que era sua protegida e por

que ela me chamava de filha. Eu nem sequer era indiana. Phet
dissera a mesma coisa e essa idéia ainda me desconcertava, mas
achei que era melhor ficar calada.

Ela apontou para a tigela a seus pés e disse:


- Sua oferenda foi aceita.


Baixei os olhos para a tigela. As frutas tremeluziram,

faiscaram e então desapareceram. Durga deu tapinhas na
cabeça de seu tigre por um instante, parecendo esquecer que estávamos ali.

Continuei em silêncio.


Ela olhou para mim e sorriu. Sua voz ecoou pela caverna como um sino tilintando.


- Vejo que você tem seu próprio tigre para ajudá-la em tempos de guerra.


Minha voz soou fraca e frágil comparada ao seu tom

potente e melódico:

- Ah... sim. Este é Ren, mas ele é mais do que apenas um tigre.


Ela sorriu para mim e eu me vi arrebatada por seu esplendor.


- Eu sei quem ele é e que você o ama quase tanto

quanto eu amo o meu Damon. Não é?

Ela puxou afetuosamente a orelha de seu tigre enquanto

eu, muda, assentia com a cabeça.

- Vocês vieram buscar minha bênção e minha

bênção eu darei. Cheguem mais perto e a aceitem.

Ainda amedrontada, aproximei-me ligeiramente,

arrastando os pés. Ren colocou seu corpo entre mim e a deusa e
manteve a atenção voltada para o tigre.

Durga ergueu seus oito braços e fez um gesto para que

eu me aproximasse mais um pouco. Dei alguns passos. Ren
ficou cara a cara com Damon. Ambos se farejaram
ruidosamente enquanto franziam o focinho, demonstrando que
a posição não lhes agradava.

A deusa os ignorou, sorrindo para mim, e anunciou:


- O prêmio que vocês procuram está escondido no

reino de Hanuman. Meu sinal irá lhes indicar o portão. O
domínio de Hanuman tem muitos perigos. Você e seu tigre
devem permanecer juntos para atravessá-lo em segurança. Se
vocês se separarem, enfrentarão grande perigo.

Seus braços começaram a se mover e eu dei um curto

passo para trás. Ela prendeu uma concha no cinto e então
começou a girar as armas nas mãos. Passando-as de braço em
braço, inspecionou cada uma delas atentamente. Quando
chegou àquela que queria, parou. Olhou com amor para a
arma e correu uma das mãos livres por sua lateral.

Era a gada. Ela a segurou diante de si e indicou que eu

devia pegá-la. Estendi o braço, envolvi o cabo com a mão e a
ergui, trazendo-a em minha direção. Parecia feita de ouro, mas,
estranhamente, não era pesada. Na verdade, eu conseguia
segurá-la facilmente com uma só mão.

Corri a mão pela arma. Era mais ou menos do

comprimento do meu braço. O punho era retorcido e
entalhado em uma espiral dourada. O cabo era uma barra de
ouro lisa e fina, de 5 centímetros de largura, que terminava em
uma esfera pesada com uns 6 centímetros de diâmetro.
Minúsculas jóias de cristal pontilhavam toda a superfície da
esfera. Fiquei perplexa ao me dar conta de que provavelmente eram diamantes.

Agradeci a Durga, que me sorria com benevolência. Ela

ergueu um braço e apontou para a coluna, então assentiu, encorajando-me.

- Quer que eu vá até a coluna? - perguntei, apontando também.


Ela indicou a gada em minha mão e então tornou a olhar para a coluna.


Arquejei.


- Ah, quer que eu a teste?


A deusa assentiu e começou a acariciar a cabeça de seu tigre.


Voltei-me para a coluna e ergui a gada como um bastão

de beisebol. Respirei fundo, fechei os olhos e brandi a arma.
Esperei que ela atingisse a pedra, repercutisse e fizesse vibrar
meus braços dolorosamente. Errei. Ou pelo menos foi o que pensei.

Tudo aconteceu em câmera lenta. Um estrondo sacudiu

o templo e um fragmento de pedra atravessou o ar como um
míssil. Ele atingiu a coluna com um eco e se estilhaçou,
explodindo em um milhão de pedaços. Fiquei olhando a poeira
arenosa cair sobre a pilha de destroços. A coluna exibia agora um imenso sulco.

Minha boca estava escancarada de espanto. Voltei-me

para a deusa, que me dirigia um sorriso, orgulhosa.

- Acho que vou ter que tomar muito cuidado com esta coisa.


Durga assentiu e explicou:


- Use a gada quando necessário para se proteger,

mas espero que ela seja manejada principalmente pelo
guerreiro ao seu lado.

Fiquei imaginando como um tigre poderia usar uma

gada e então pousei a arma com cuidado no chão de pedra.
Quando ergui os olhos, Durga havia estendido outro braço
delicado adornado com uma serpente dourada tão viva quanto
a própria deusa. A língua da serpente se projetava sem parar e
ela sibilava, enroscada no bíceps da deusa.

- Esta, porém, é para você - anunciou Durga, e eu

observei com horror a serpente dourada lentamente se
desenroscar de seu braço e atravessar o estrado. Então parou,
ergueu a cabeça, elevando do chão metade do corpo, e projetou
a língua, experimentando o ar à sua volta. Os olhos pareciam
minúsculas esmeraldas. Quando dilatou as laterais do pescoço
no revelador capelo, eu tremi, percebendo que se tratava de
uma naja. Os traços normais da naja ainda estavam lá, mas, em
vez de escamas marrons e pretas, as manchas do capelo eram
bege, âmbar e creme, espiraladas em um fundo dourado. A pele
da barriga era de um branco leitoso e a língua, da cor do marfim.

A cobra se insinuou para mais perto de mim. Ren

recuou alguns passos quando ela deslizou entre suas patas.

Eu estava apavorada, com a boca seca. Ergui os olhos

para a deusa, que tinha um sorriso sereno no rosto enquanto
observava seu bichinho de estimação se aproximar de mim.

A cobra foi até o meu tênis, disparou a língua mais uma

vez e enrolou a cabeça na minha perna. Ela circulou minha
panturrilha e enroscou o corpo diversas vezes. Eu podia sentir
seus músculos apertando minha perna com firmeza enquanto
seu corpo se ondulava e ela subia devagar. Minhas pernas e
meus braços tremiam, e eu oscilava como uma flor sob chuva
forte. Ouvi a mim mesma choramingar. Ren emitiu um ruído
entre um grunhido e um ganido, aparentemente sem saber o
que fazer para me ajudar. A serpente alcançou o alto da minha
coxa. Meus cotovelos estavam imobilizados e meus braços
tremiam quando os abri um pouco, afastando-os do corpo. A
serpente apertou minha coxa com a parte inferior de seu corpo
e estendeu a cabeça na direção da minha mão.

Observei fascinada e horrorizada ela alcançar meu

pulso e rapidamente saltar para o braço. Enroscando-se,
continuou seu lento progresso braço acima. As escamas eram
frias e lisas. A serpente me prendia, como um torno poderoso. A
medida que apertava meu braço e subia, o fluxo do meu
sangue era interrompido e então recomeçava, como se eu
houvesse colocado um torniquete naquele membro.

Quando a maior parte de seu corpo estava presa em

torno da porção superior do meu braço, a cobra estendeu a
cabeça até meu ombro e roçou-a em meu pescoço. Sua língua
se projetou e experimentou o suor salgado que ali brotava,
fazendo meu lábio inferior tremer. Gotas de suor escorriam
pelo meu rosto enquanto eu respirava pesadamente. Eu podia
sentir-lhe a cabeça passeando em meu pescoço, roçando em
meu queixo, e então, lá estava ela, com o pescoço dilatado,
fitando meu rosto com seus olhos de jóias. No instante em que
pensei que eu fosse desmaiar, ela voltou para o braço,
enroscou-se mais duas vezes e então imobilizou-se, com a
cabeça voltada para Durga.

Cautelosamente, baixei os olhos para olhá-la e fiquei

estupefata ao ver que ela havia se transformado em uma jóia.
Parecia um daqueles braceletes de cobra que os antigos
egípcios usavam. Seus olhos de esmeralda observavam o espaço
à frente sem piscar.

Hesitante, estendi meu outro braço para tocá-la. Ainda

podia sentir as escamas lisas, mas seu toque era metálico, não
de matéria viva. Estremeci e virei-me para a deusa.

Como a gada, a serpente era relativamente leve. Agora

que eu tinha coragem suficiente para olhá-la mais de perto,
pude perceber que a cobra havia encolhido. A grande serpente
diminuíra de tamanho até se tornar um pequeno bracelete enroscado.

- Ela se chama Fanindra, a Rainha das Serpentes -

informou a deusa. - É um guia e irá ajudar vocês a encontrar o
que procuram. Ela pode conduzi-los por vias seguras e irá
iluminar seu caminho através da escuridão. Não tenha medo,
pois ela não lhe deseja nenhum mal.

A deusa estendeu a mão para acariciar a cabeça imóvel

da cobra e recomendou:

- Ela é sensível às emoções das pessoas e anseia por

ser amada pelo que é. Tem um propósito, assim como todos os
seus filhos, e devemos aprender a aceitar que todas as criaturas,
por mais assustadoras que possam ser, são de origem divina.

Inclinei a cabeça e declarei:


- Tentarei superar o meu medo e lhe dar o respeito que ela merece.

- Isso é tudo o que peço - disse a deusa, sorrindo.

Quando Durga recolhia os braços e começava a voltar à

posição original, ela baixou os olhos para mim e para Ren.

- Posso lhes dar um conselho antes de partirem?

- É claro que sim, Deusa - falei.
- Lembrem-se de se manterem juntos. Se forem
separados, não confiem em seus olhos. Usem o coração. Ele lhes
dirá o que é real e o que não é. Quando obtiverem o fruto,
escondam-no bem, pois existem outros que desejam pegá-lo e
usá-lo para o mal e com propósitos egoístas.
- Mas não devemos lhe trazer o fruto de volta como oferenda?

A mão que acariciava o tigre se imobilizou em seu pelo

e a carne endureceu até se tornar áspera e cinza.

- Vocês já fizeram sua oferenda. O fruto tem outro

propósito, do qual tomarão conhecimento no devido tempo.
- E quanto aos outros presentes, às outras oferendas?

Eu estava desesperada por saber mais e era óbvio que

meu tempo estava se esgotando.

- Podem me fazer as outras oferendas em meus

outros templos, mas os presentes vocês devem guardar até...

Seus lábios vermelhos detiveram-se no meio da frase e

seus olhos se turvaram e se tornaram globos sem visão mais
uma vez. Durga e também suas jóias de ouro e roupas
brilhantes desbotaram até se tornarem outra vez uma escultura.

Estendi a mão e toquei a cabeça de Damon, e então

limpei a poeira das mãos na calça jeans depois de roçar a mão
em uma orelha arenosa. Ren se aproximou de mim e eu corri
os dedos por suas costas peludas, absorta em pensamentos. O
som de seixos caindo me tirou de meus devaneios.

Dei um abraço no pescoço de Ren, apanhei

cuidadosamente a gada e caminhamos até a entrada do templo.

Ele ficou parado ali alguns minutos enquanto eu pegava um

galho de árvore e apagava suas pegadas.

Quando atravessávamos o caminho de terra de volta ao

Jeep, fiquei surpresa ao ver que o sol havia percorrido um
longo caminho no céu.

Tínhamos passado um bom tempo no santuário, mais

tempo do que eu havia pensado. O Sr. Kadam cochilava no
veículo estacionado à sombra, com as janelas abertas. Ele se
sentou rapidamente e esfregou os olhos quando nos aproximamos.

- O senhor sentiu o terremoto? - perguntei.

- Terremoto? Não. Aqui fora está silencioso como
uma igreja. - Ele riu de sua própria piada. - O que aconteceu lá dentro?

O Sr. Kadam desviou os olhos do meu rosto para os

meus novos presentes e arquejou, surpreso.

- Srta. Kelsey! Posso?


Entreguei-lhe a gada. Ele estendeu as duas mãos,

hesitante, e a pegou de mim. Pareceu ter um pouco de
dificuldade com o peso, o que me fez pensar se, em sua idade
avançada, não era mais fraco do que parecia. Interesse erudito
e puro prazer se refletiam em seu rosto.

- É linda! - exclamou.


Assenti.


- Devia vê-la em ação. - Pousei minha mão em seu

braço. - O senhor estava certo. Decididamente recebemos a
bênção de Durga. - Apontei para a serpente enroscada em meu
braço. - Diga oi para Fanindra.

Ele estendeu um dedo para tocar a cabeça da cobra. Eu

me encolhi, torcendo para que ela não se reanimasse, mas
Fanindra permaneceu imóvel. Ele parecia hipnotizado pelos objetos.

Puxei-lhe o braço.


- Venha, Sr. Kadam, vamos embora. Vou lhe contar

tudo no carro. Além do mais, estou morrendo de fome.

O Sr. Kadam riu, radiante. Envolvendo cuidadosamente

a gada em um cobertor, ele a guardou na traseira do carro.
Então foi até o lado do carona e abriu a porta para mim e para
Ren. Entramos, afivelei meu cinto e partimos na direção de
Hampi. Durga havia se manifestado e nós tínhamos um fruto
dourado para buscar. Estávamos prontos.

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