No trajeto de volta para a cidade, o Sr. Kadam ouviu
com toda a atenção cada detalhe de nossa experiência no
templo de Durga e me metralhou com dezenas de perguntas.
Pediu detalhes que eu nem sequer tinha considerado
importantes. Por exemplo, ele quis saber que imagens as
outras três colunas do templo mostravam e eu nem me
lembrava de ter olhado para elas.
O Sr. Kadam estava tão absorto na história que seguiu
direto para o hotel, esquecendo-se de deixar Ren na selva.
Voltamos e acompanhei Ren até a mata. O Sr. Kadam ficou
feliz de continuar no Jeep e examinar a gada mais de perto.
Atravessei o mato alto com Ren até o começo das
árvores, dei um abraço nele e sussurrei:
- Pode ficar no meu quarto no hotel de novo, se quiser.
Vou guardar um pouco do jantar para você.
Beijei o alto de sua cabeça e o deixei lá, me olhando
enquanto eu me afastava.
No jantar, o Sr. Kadam usou a cozinha do hotel para
nos preparar omeletes vegetarianas com pão frito e suco de
papaia. Eu estava faminta e, olhando os outros pratos que
vinham da cozinha, fiquei muito grata pelo fato de o Sr.
Kadam gostar de cozinhar. Outra hóspede preparava alguma
coisa em uma panela grande e o cheiro deixava a desejar. Para
mim, parecia que ela estava cozinhando roupa suja.
Devorei um prato cheio e ainda pedi Sr. Kadam uma
segunda porção ao para comer no quarto, no caso de eu sentir
fome à noite. Ele ficou mais do que feliz em me atender e, por
sorte, não fez perguntas.
Deixei a gada aos cuidados do Sr. Kadam, mas descobri
que o bracelete de cobra não se soltava do meu braço, por
mais que eu tentasse deslizá-lo, puxá-lo ou arrancá-lo. O Sr.
Kadam temia que alguém tentasse roubá-lo de mim.
- Eu adoraria tirar Fanindra do braço - afirmei. -
Mas, se o senhor tivesse visto a forma como ela chegou até
aqui, também ia querer que ela permanecesse inanimada.
Reprimindo rapidamente esse pensamento, eu me
censurei por esquecer que Fanindra era um presente e uma
bênção divinos, e sussurrei um breve pedido de desculpas para ela.
Quando voltei para o quarto, vesti o pijama, o que deu
certo trabalho. Felizmente, eu tinha um de mangas curtas.
Prendi a bainha da manga numa das voltas de Fanindra para
que sua cabeça não ficasse coberta. Olhei para Fanindra no
espelho enquanto escovava os dentes.
Batendo levemente na cabeça da serpente, murmurei:
- Bem, Fanindra, espero que goste de água, porque
amanhã de manhã eu pretendo tomar um banho e, se ainda
estiver no meu braço, você vai comigo.
A serpente continuou imóvel, mas seus olhos de pedra
brilharam no espelho do quarto mal iluminado.
Depois de escovar os dentes, liguei o ventilador de
teto, arrumei o jantar de Ren na cômoda e subi na cama. O
corpo da serpente me incomodava no lado do corpo e eu tinha
dificuldade em encontrar uma posição confortável. Pensei que
nunca conseguiria dormir com aquela jóia enrolada no braço,
mas, por fim, acabei adormecendo.
Acordei no meio da noite com Ren arranhando a porta
de leve. Ansioso para ficar perto de mim, ele comeu
rapidamente e então me abraçou, me puxando para o seu colo.
Pressionou a face contra minha testa e começou a falar sobre
Durga e a gada. Parecia entusiasmado com o que a gada podia
fazer. Assenti, sonolenta, e mudei de posição, descansando
minha cabeça em seu peito.
Eu me sentia segura aconchegada em seus braços e era
um prazer ouvir o timbre da sua voz enquanto ele falava
suavemente. Mais tarde, ele passou a assoviar baixinho e eu
sentia o ritmo do forte batimento de seu coração de encontro ao meu rosto.
Depois de um tempo, ele parou e moveu os braços
enquanto eu emitia um protesto sonolento. Ajeitando meu
corpo inerte, ele me pegou no colo e me aconchegou em seu
peito. Semi-adormecida, murmurei que eu podia andar, mas
ele me ignorou, me colocou na cama e delicadamente ajeitou
meus braços e minhas pernas. Senti que ele depositava um
beijo leve em minha testa e me cobria com a colcha, e então apaguei.
Algum tempo depois, abri os olhos sobressaltada. A
serpente dourada havia desaparecido! Corri para acender a luz
e a vi descansando na mesinha de cabeceira. Ela ainda estava
imóvel, mas agora se encontrava enrodilhada com a cabeça
descansando no alto do corpo. Eu a observei, desconfiada, por
um instante, mas Fanindra não se moveu.
Estremeci, pensando em uma cobra viva coleando
sobre o meu corpo enquanto eu dormia. Ren ergueu sua
cabeça de tigre e me olhou, preocupado. Dei-lhe tapinhas
carinhosos e disse que estava bem e que Fanindra tinha se
deslocado durante a noite. Pensei em pedir a Ren que
dormisse entre mim e a serpente, mas decidi que precisava ser
corajosa. Então virei de lado e me enrolei bem na colcha para
evitar que qualquer coisa estranha acontecesse aos meus
membros sem o meu conhecimento.
Também disse a Fanindra que ficaria muito grata se ela
não deslizasse pelo meu corpo quando eu não estivesse ciente
disso e que preferiria que isso não acontecesse em hipótese
nenhuma, se ela pudesse evitar.
Ela não se moveu nem piscou os olhos verdes.
E por acaso cobras piscam? Refletindo sobre essa
questão profunda, virei de lado e adormeci facilmente.
Pela manhã, Ren já tinha partido e Fanindra não se
movera, então resolvi tomar um banho. Estava de volta ao
quarto, secando os cabelos com a toalha, quando percebi que
Fanindra havia mudado de forma novamente. Dessa vez,
estava retorcida em arcos como antes, pronta para ser
colocada em meu braço.
Apanhei-a gentilmente e deslizei seu corpo inflexível
pela extensão do meu braço, onde ela se acomodou. Dessa vez,
quando tentei tirá-la, ela deslizou com facilidade.
Colocando-a de novo no braço, eu disse:
- Obrigada, Fanindra. Vai ser muito mais fácil se eu puder tirá-la quando precisar.
Não tinha certeza, mas pensei ter visto seus olhos de
esmeralda brilharem por um instante.
Eu estava acabando de trançar meus cabelos e amarrá-
los com uma fita verde que combinava com os olhos de
Fanindra quando ouvi uma batida na porta. Era o Sr. Kadam,
que se encontrava ali de pé, com o cabelo recém-lavado e a barba aparada.
- Pronta para partirmos, Srta. Kelsey? - perguntou, pegando minha bolsa.
Fizemos o check-out e deixamos o hotel, seguindo
para a selva a fim de pegar Ren. Esperamos vários minutos e
então ele surgiu em disparada do meio das árvores e correu
até o carro. Dei uma risada nervosa.
- Dormiu um pouco demais hoje, hein?
Ele provavelmente havia corrido o caminho todo de
volta. Dirigi-lhe um olhar sugestivo, esperando que
entendesse nas entrelinhas o que eu queria de fato ter dito:
"Você devia ter saído mais cedo!"
No caminho para Hampi, paramos em uma barraca de
frutas e comprei uma vitamina de iogurte chamada lassi e uma
barra de cereais para cada um de nós. Bebi metade da
vitamina e ofereci o restante a Ren. Ele enfiou a cabeça entre
os dois bancos dianteiros e lambeu o que restava no copo. Sua
língua comprida também fez questão de lamber minha mão
"acidentalmente" algumas vezes.
O Sr. Kadam indicou que estávamos nos aproximando
de Hampi e apontou para uma grande construção a distância.
- A estrutura alta e cónica que você vê adiante é
chamada de Templo de Virupaksha - explicou ele. - E a
construção mais conhecida de Hampi, que foi fundada há dois
mil anos. Logo passaremos pela caverna Sugriva, onde dizem
que as jóias de Sita foram escondidas.
- As jóias ainda estão lá?
- Nunca foram descobertas, o que também é uma
das razões de a cidade ter sido saqueada por caçadores de
tesouros com tanta frequência - afirmou o Sr. Kadam. Então
ele parou no acostamento da estrada para que Ren saltasse. -
Vai haver muitos turistas ali durante o dia, portanto Ren pode
esperar aqui enquanto andamos pelo local à procura de pistas.
Voltaremos para buscá-lo no começo da noite.
Estacionamos diante do portão. O Sr. Kadam me
conduziu à primeira e maior estrutura, o Templo de
Virupaksha. Tinha aproximadamente a altura de um prédio de
10 andares e se assemelhava a uma casquinha de sorvete
gigante de cabeça para baixo. Apontando para lá, o Sr. Kadam
descreveu a arquitetura do templo.
- Ele conta com pátios, sacrários e portões em todos
aqueles edifícios laterais. Lá dentro, tem um santuário
interno, onde há salões com colunas e claustros, que são
longas galerias com arcos dando para um pátio central. Venha,
vou lhe mostrar.
Enquanto andávamos pelo templo, o Sr. Kadam me
lembrou de que estávamos procurando uma passagem para
Kishkindha, um mundo governado por macacos.
- Talvez haja outra marca de mão. A profecia de
Durga também menciona serpentes.
Mais cobras, pensei, me encolhendo. Um portal para
um mundo mítico? As coisas estão ficando cada vez mais
estranhas à medida que mergulho fundo nesta aventura.
No decorrer do dia, fiquei tão deslumbrada com as
ruínas que esqueci completamente nosso propósito ali. Tudo o
que eu via era impressionante. Paramos em outra estrutura
chamada Carruagem de Pedra. Tratava-se de uma escultura
em pedra de um templo em miniatura erguido sobre rodas,
que tinham o formato de flores de lótus e até podiam girar
como pneus comuns.
Outra construção, o Templo de Yithala, ostentava
lindas estátuas de mulheres dançando. Ouvimos o guia de
turismo explicar o significado das 56 colunas do templo.
- Quando batemos nelas, as colunas vibram e
produzem sons semelhantes às notas musicais - disse o guia.
Ficamos quietos por um momento para ouvir as
colunas zumbirem e vibrarem enquanto ele batia de leve na
pedra. Os tons musicais mágicos soavam, elevavam-se no ar e
iam enfraquecendo aos poucos até se transformarem em
silêncio. O som desaparecia muito antes de as vibrações cessarem.
Paramos em outra edificação chamada Banho da
Rainha. O Sr. Kadam destacou suas características.
- O Banho da Rainha era um lugar onde o rei e suas
esposas podiam relaxar. Havia apartamentos em torno do
centro. Sacadas se projetavam de edifícios retangulares e as
mulheres se sentavam, apreciando a vista do tanque de banho.
Um aqueduto despejava água no reservatório de tijolos e
também havia um pequeno jardim na lateral, bem aqui, onde
as mulheres podiam descansar e fazer piqueniques.
Ele fez uma breve pausa e depois retomou suas explicações:
- O tanque tinha cerca de 15 metros de
comprimento e 1,80 metro de profundidade. Despejava-se
perfume na água para deixá-la mais cheirosa e espalhavam-se
pétalas de flores na superfície. Fontes no formato de lótus
também cercavam o tanque. Ainda se pode ver algumas delas.
Um canal cercava toda a estrutura e a construção era
fortemente guardada, de forma que somente o rei podia entrar
e se divertir com as mulheres. Todos os outros homens eram proibidos de entrar.
Franzi a testa.
- Humm, se o rei era o único homem a entrar,
como é que o senhor sabe tantos detalhes sobre o tanque das mulheres?
Ele coçou a barba e sorriu.
Chocada, sussurrei:
- Sr. Kadam! O senhor invadiu o harém do rei?
Ele deu de ombros.
- Era um rito de passagem para um jovem tentar
entrar no Banho da Rainha e vários morreram tentando. Por
acaso sou um dos poucos bravos que sobreviveram à experiência.
Eu ri.
- Bom, preciso dizer que minha opinião sobre o
senhor mudou completamente. Entrar em um harém? Quem
diria? - Dei mais alguns passos e então me virei. - Espere aí. O
senhor disse que era um rito de passagem, não disse? Então
Ren e Kishan...?
Ele parou e ergueu as mãos.
- É melhor a senhorita perguntar diretamente a
eles. Não quero falar o que não devo.
- Humpf - resmunguei. - Essa pergunta acabou de
ir para o topo da minha lista.
Seguimos para um tour pela Casa da Vitória, o Lotus
Mahal e o Mahanavami Dibba, mas não vimos nada
particularmente interessante ou extraordinário ali. O Palácio
dos Nobres era um lugar para encontros diplomáticos, onde
funcionários do alto escalão jantavam e bebiam vinho. A
Balança do Rei era um edifício usado pelos reis para pesar
ouro, dinheiro e grãos comercializados, e também para
distribuir doações aos pobres.
Meu local favorito foram os Estábulos dos Elefantes.
Uma estrutura comprida e cavernosa, que em seu auge havia
abrigado 11 elefantes. O Sr. Kadam explicou que os elefantes
não eram usados em batalhas, mas em rituais. Faziam parte da
criação particular do rei - altamente treinados e empregados
em vários tipos de cerimônia. Com frequência eram vestidos
em tecido dourado e jóias, e sua pele era pintada. O edifício
tinha 10 domos de diferentes formas e tamanhos que
repousavam no topo dos aposentos de cada elefante. Ele
explicou que outros elefantes eram mantidos também para
fazer trabalho servil e de construção, mas que a criação
particular era especial.
Uma grande estátua de Ugra Narasimha foi a última
coisa que vimos. Quando perguntei ao Sr. Kadam o que
representava, ele não respondeu. Deu a volta na estrutura,
examinando-a de muitos e variados ângulos enquanto
pensava e murmurava baixinho para si mesmo.
Protegi os olhos contra o sol e estudei o topo.
Tentando obter a atenção do Sr. Kadam, repeti:
- Quem é ele? É um sujeito bem feio.
Dessa vez o Sr. Kadam respondeu:
- Ugra Narasimha é um deus meio homem, meio
leão, embora também possa assumir outras formas. Ele deveria
parecer assustador e impressionante. É mais famoso por matar
um poderoso rei demônio. O interessante é que o rei demônio
não podia ser morto nem na terra nem no ar, durante o dia ou
a noite, nem do lado de dentro nem do lado de fora, nem por
homem nem por animal, nem por qualquer objeto.
- Parece que vocês têm muitos demônios difíceis de
matar perambulando pela índia. Então, como foi que ele
exterminou o rei demônio?
- Ah, Ugra Narasimha foi muito esperto. Ele pegou
o rei demônio, colocou-o no colo e então o matou no
crepúsculo, em uma soleira de porta, com suas garras.
- Hum, muito esperto.
- Se olhar com atenção, vai ver que ele está sentado
sobre uma serpente de sete cabeças enrodilhada e que essas
cabeças se arqueiam acima dele, com os capelos dilatados,
fornecendo sombra para o deus.
Contraí o braço e espiei minha serpente dourada.
Fanindra ainda era uma joia inanimada.
O Sr. Kadam voltou a murmurar para si mesmo e ficou
examinando a estátua de Ugra Narasimha por muito tempo.
- O que está procurando, Sr. Kadam?
- Parte da profecia diz: "Deixe as serpentes guiarem
você." Antes, pensei que se referisse apenas à sua serpente
dourada, mas talvez o plural seja importante.
Juntei-me a ele procurando uma entrada secreta ou
uma marca de mão como a que eu havia encontrado antes,
mas não vi nada. Tentamos parecer tão despreocupados
quanto os outros turistas enquanto estudávamos a estátua.
Por fim, desistindo, o Sr. Kadam disse:
- Acho que pode ser uma boa ideia você e Ren
retornarem aqui esta noite. Tenho uma suspeita de que a
entrada para Kishkindha esteja por aqui, perto desta estátua.
Levamos o jantar para Ren. Arranquei pedaços do
frango tandoori para ele, que comeu cuidadosamente em
minha mão, e contei-lhe sobre as diferentes construções que
tínhamos investigado no templo.
O Sr. Kadam nos explicou que as ruínas eram fechadas
aos visitantes no fim do dia, a menos que houvesse um evento especial acontecendo.
- Durante a noite, há guardas de vigia, atentos a
caçadores de tesouros. Na verdade - completou ele -, os
caçadores de tesouros são responsáveis por grande parte da
destruição que se vê nas ruínas hoje. Eles procuram ouro e
jóias, mas essas coisas foram levadas de Hampi há muito
tempo. Os tesouros atuais de Hampi são exatamente o que eles estão destruindo.
O Sr. Kadam achava que era melhor nos deixar em um
local do outro lado das colinas, onde não havia estradas
levando para Hampi nem tampouco guardas.
- Mas, se não há estradas, como vamos chegar lá? - perguntei, temendo a resposta do Sr. Kadam.
Ele sorriu.
- Uma das razões por que comprei o Jeep, Srta.
Kelsey, é ele ser off-road. - Ele esfregou as mãos, animado. -
Vai ser emocionante!
Gemi e murmurei:
- Ótimo. Já me sinto enjoada.
- A senhorita vai precisar carregar a gada em sua
mochila. Acha que consegue?
- Claro. Não é tão pesada assim.
Ele parou o que estava fazendo e me olhou, atônito.
- O que quer dizer com não é tão pesada? Na verdade, é muito pesada.
Ele a desembrulhou e a ergueu com as duas mãos, forçando os músculos.
- Isso é estranho - murmurei, intrigada. - Eu me
lembro de tê-la achado leve para o tamanho.
Fui até ele e peguei a gada de suas mãos, e ficamos
ambos chocados que eu pudesse levantá-la com uma só mão.
Ele a pegou de volta e tentou erguê-la da mesma forma, e
novamente cambaleou sob o peso da arma.
- Para mim, parece pesar uns 20 quilos.
Tornei a pegá-la.
- Para mim, talvez uns dois ou quatro.
- Impressionante - admirou-se ele.
- Não tinha idéia de que pesasse tanto - acrescentei, perplexa.
O Sr. Kadam tornou a pegar a arma da minha mão,
envolveu-a em um cobertor macio e então a colocou em
minha mochila. Entramos novamente no Jeep e ele nos
conduziu por uma via secundária, que se transformou em
estrada de terra, em seguida de cascalho e então em duas
linhas de poeira, que por fim desapareceram completamente.
Ele nos deixou sair e montou um miniacampamento,
assegurando-me que Ren conseguiria encontrar o caminho de
volta. Também me deu uma pequena lanterna, uma cópia da
profecia e acrescentou um aviso:
- Não use a lanterna a menos que isso seja essencial.
Há guardas de segurança andando pelas ruínas à noite.
Fiquem alerta. Ren pode farejar sua aproximação, então vocês
não devem ter problemas. Além disso, sugiro que Ren
permaneça como tigre o máximo possível para o caso de você
precisar dele mais tarde.
O Sr. Kadam apertou meus ombros e sorriu.
- Boa sorte, Srta. Kelsey. Lembre-se de que podem
não encontrar nada. Talvez seja necessário começar tudo de
novo amanhã à noite, mas temos bastante tempo. Não se
preocupe. Não estamos sob nenhuma pressão.
- Está bem. Lá vamos nós!
Comecei a andar atrás de Ren. A noite sem lua
permitia que as estrelas brilhassem ainda mais no céu negro e
aveludado. Por mais bonito que fosse, desejei que houvesse
lua. Felizmente, o pelo branco de Ren era fácil de seguir.
Buracos pontilhavam o terreno e eu precisava andar com
extremo cuidado. Seria uma péssima hora para cair e quebrar
o tornozelo. Eu não queria nem pensar em que tipos de
criatura haviam feito aqueles buracos.
Depois de alguns minutos tropeçando, uma luz
esverdeada começou a brilhar à minha frente. Olhei à volta e
por fim percebi que a luz vinha dos olhos de Fanindra. Ela
iluminava o campo escuro para mim, proporcionando um tipo
especial de visão noturna. Tudo estava claramente delineado,
mas ainda assim parecia assustador, como se eu estivesse
atravessando um terreno alienígena em algum estranho planeta verde.
Depois de quase uma hora de caminhada, chegamos
aos limites das ruínas. Ren reduziu a marcha e farejou o ar.
Uma brisa fresca soprava nos morros e abrandava o calor da
noite. Ele devia ter concluído que não havia perigo, pois
continuou em frente em ritmo acelerado.
Atravessamos as ruínas, abrindo caminho em direção à
estátua de Ugra Narasimha. As ruínas que haviam me
parecido magníficas durante o dia agora pairavam acima de
mim, lançando sombras escuras. Os belos arcos e colunas que
admirara agora eram bocas negras escancaradas esperando
para me devorar. A brisa suave que eu apreciara mais cedo
assoviava e gemia ao serpentear pelas passagens e portas,
como se antigos fantasmas anunciassem a nossa presença.
Os pelinhos na minha nuca se eriçavam enquanto eu
imaginava olhos nos vigiando e demônios espreitando em
corredores escuros. Quando finalmente nos aproximamos da
estátua, Ren começou a investigar, farejando e procurando fissuras ocultas.
Passada uma hora de procura improdutiva, eu estava
pronta para desistir, voltar para junto do Sr. Kadam e dormir um pouco.
- Estou exausta, Ren. Pena que não temos
oferendas e um sino. Talvez a estátua ganhasse vida.
Ele se sentou ao meu lado e eu acariciei sua cabeça.
Então ergui os olhos para a estátua e uma idéia surgiu em minha cabeça.
- Um sino - murmurei. - Será que...
Eu me levantei e corri para o Templo de Vithala, com
suas colunas musicais. Adivinhando o que fazer, bati de leve
em uma delas três vezes, torcendo para que nenhum guarda
ouvisse, e corri de volta para a estátua. Os olhos da serpente
de sete cabeças agora refletiam uma luz vermelha e uma
pequena escultura de Durga havia surgido na lateral da estátua.
- É isso! O sinal de Durga! Muito bem, acertamos
uma coisa. O que fazer agora? Uma oferenda? - gemi de
frustração. - Não temos nada para ofertar!
A boca da estátua metade homem, metade leão se
abriu e uma névoa fina e cinzenta começou a jorrar dela.
Baforadas do vapor frio e fumarento desceram pelo corpo da
estátua, derramaram-se até o chão e começaram a se expandir
em todas as direções. Os olhos vermelhos da cobra logo eram
a única coisa que eu conseguia distinguir. Mantive a mão na
cabeça de Ren para me tranquilizar.
Resolvi escalar a escultura de pedra e procurar algum
sinal na cabeça da estátua. Ren grunhiu, contrariado, mas eu o
ignorei e comecei a subir. De nada adiantou, pois não
encontrei nada que nos fizesse avançar. Ao pular da estátua,
calculei mal a distância até o chão e tropecei. Ren
imediatamente se pôs ao meu lado. Nada me aconteceu, a não
ser ter uma unha quebrada, mas me ver envolta naquela
neblina era apavorante.
Nesse exato momento, enquanto olhava minha unha,
lembrei-me da história que o Sr. Kadam contara sobre Ugra Narasimha.
- Ren, talvez, se repetirmos as ações de Ugra
Narasimha, a estátua nos conduza ao próximo passo. Vamos
tentar reencenar a famosa tarefa de Ugra Narasimha.
Ele roçou em minha mão na escuridão.
- Muito bem, são cinco partes. A primeira coisa de
que precisamos é de um ser metade homem e metade animal,
portanto este é você. Fique aqui perto de mim. Você pode ser
Ugra Narasimha e eu serei o rei demônio. Em seguida,
precisamos ficar em um lugar que não é nem dentro nem fora,
então vamos procurar algum degrau ou portal.
Tateei em torno da estátua.
- Acho que havia um pequeno portal aqui, perto da estátua.
Estendi a mão e senti o umbral de pedra. Ambos nos
colocamos sob ele.
- A terceira parte era nem dia nem noite. O
crepúsculo já passou. Acho que posso tentar usar a lanterna. -
Acionei a lanterninha, acendendo-a e apagando-a, torcendo
para que aquilo fosse suficiente. - Então havia a parte sobre as
garras. Que você de fato tem. Humm, acho que você precisa
me arranhar. A história diz matar, mas me arranhar pode ser suficiente.
Então me encolhi.
- Talvez você precise tirar um pouco de sangue de mim.
Ouvi seu peito roncar, protestando.
- Está tudo bem. Só um arranhãozinho. Nada de mais.
Ele grunhiu baixinho novamente, ergueu a pata e a
colocou com delicadeza em meu braço. Eu o vira caçar a certa
distância e também vira suas garras durante a luta com
Kishan. Quando a lanterna iluminou suas garras estendidas,
não pude deixar de sentir medo. Fechei os olhos e ouvi um
grunhido suave quando ele se moveu, mas não senti nada.
Corri o feixe da lanterna por toda a extensão das
minhas pernas e não vi sangue nenhum. Eu sabia que ele
havia feito alguma coisa, pois ouvira suas garras rasgando a
carne. Imediatamente desconfiei de uma coisa e virei a
lanterna para o seu corpo branco, procurando ver onde ele se machucara.
- Ren! Deixe-me ver. Foi sério?
Ele ergueu a perna e vi rasgões onde as garras haviam
atravessado o pelo até a carne. O sangue gotejava no chão.
Eu estava zangada.
- Sei que você pode sarar rápido, mas tinha que se
cortar tão fundo, Ren? Sabe que de qualquer modo pode não
funcionar se eu não sangrar. Reconheço o seu sacrifício, mas
ainda quero que você me arranhe. Sou eu que estou represen-
tando o rei demônio, então me arranhe... de preferência não
tão fundo assim.
Mas ele não erguia a pata. Precisei me curvar e
praticamente erguer eu mesma a pesada pata. Quando
finalmente a posicionei em meu braço, ele retraiu as garras.
- Ren, por favor, coopere - implorei. - Isso já é difícil demais.
Ele expôs as garras até a metade e arranhou de leve o
meu braço, mal deixando uma marca.
- Ren! Faça logo, por favor. Agora.
Ele emitiu um grunhido baixo de desaprovação e me
arranhou com mais força. As garras dessa vez deixaram
vergões vermelhos na extensão do meu antebraço. Dois dos
arranhões sangravam ligeiramente.
- Obrigada.
Eu me encolhi e ajustei o foco da lanterna para ver
novamente seus arranhões, que a essa altura estavam quase
cicatrizados. Satisfeita, passei para o último item.
- Agora, o último requisito é que o rei demônio não
pode estar nem no céu nem na terra. Ugra colocou o demônio
em seu colo, o que significa, eu acho, que vou ter que... me sentar nas suas costas.
Que constrangedor. Embora Ren fosse um tigre
grande, eu tinha consciência de que ele era um homem e não
achava certo fazer dele um animal de carga. Tirei a mochila e
a pousei no chão, pensando no que poderia fazer para deixar a
situação menos embaraçosa. Reunindo coragem para me
sentar em suas costas, tinha acabado de concluir que não seria
assim tão ruim se eu me sentasse de lado, quando meus pés escorregaram.
Ren havia assumido a forma humana e me tomara nos
braços. Eu me debati por um momento, protestando, mas ele
se limitou a me lançar um olhar - do tipo que queria dizer que
nem adiantava eu tentar discutir. Calei a boca. Ele se inclinou
para pegar a mochila, pendurou-a nos dedos e perguntou:
- O que vem em seguida?
- Não sei. Isso foi tudo que o Sr. Kadam me contou.
Ele me ajeitou nos braços, foi se posicionar no portal
novamente e examinou dali a estátua.
- Não vejo nenhuma mudança - murmurou.
Ele me segurava, protetor, enquanto olhava a estátua e,
tenho que admitir, parei completamente de me importar com
o que estávamos fazendo. Os arranhões em meu braço, que
latejavam um instante atrás, não me incomodavam mais. Eu
me deixei desfrutar da sensação de me aninhar junto ao seu
peito musculoso. Que garota não ia querer ser tomada nos
braços por um homem lindo de morrer? Permiti que meu
olhar subisse até seu rosto maravilhoso. Ocorreu-me então
que, se eu fosse esculpir um deus de pedra, escolheria Ren
como modelo. Esse tal Ugra metade leão, metade homem não
chegava nem aos pés dele.
Por fim, ele percebeu que eu o observava e disse:
- Kells? Estamos aqui quebrando uma maldição, lembra?
Limitei-me a sorrir de volta, me sentindo uma boba.
Ele arqueou uma sobrancelha para mim.
- Em que você estava pensando agora?
- Nada importante.
Ele sorriu.
- Então saiba que você está numa posição perfeita
para que eu lhe faça cócegas e que não tem como fugir. Vamos, fale.
Caramba. O sorriso dele é luminoso mesmo no meio
da névoa. Eu ri, nervosa.
- Se me fizer cócegas, vou me debater com
violência, o que fará você me deixar cair e estragar o que
estamos tentando fazer.
Ele se inclinou, aproximando a boca de meu ouvido, e então sussurrou:
- Parece um desafio interessante, rajkumari.
Poderemos experimentá-lo mais tarde. E, só para registrar,
Kelsey, eu não a deixaria cair.
A maneira como ele disse meu nome provocou um
arrepio nos meus braços. Quando baixei os olhos para esfregá-
los, percebi que a lanterna estava apagada. Tornei a acendê-la,
mas a estátua continuava a mesma. Desistindo, sugeri:
- Nada está acontecendo. Talvez devêssemos esperar até o amanhecer.
Ele deu uma risada rouca enquanto seu nariz brincava
com minha orelha e afirmou baixinho:
- Eu diria que alguma coisa está acontecendo, mas
não do tipo que vá abrir o portal.
Ele seguiu uma trilha de beijos suaves e vagarosos da
minha orelha ao pescoço. Suspirei e inclinei o pescoço para
lhe dar melhor acesso. Com um último beijo, ele gemeu e
ergueu a cabeça com relutância.
Desapontada com a interrupção, perguntei:
- O que significa rajkumari?
Ele riu baixinho, me colocou no chão com cuidado e disse:
- Significa princesa. Vamos procurar um lugar para
dormir algumas horas. Vou correr e avisar ao Sr. Kadam que
estamos planejando esperar até o amanhecer para tentar de novo.
Ele pegou minha mão e me levou a um local gramado
e escondido. Assim que me acomodei, ele partiu. Dobrei a
colcha sob a cabeça e tentei dormir. Insone até a sua volta, por
fim me aconcheguei ao seu corpo de tigre e adormeci.
Acordei ao sentir que era deslocada, aninhada nos
braços de Ren. Ele estava me carregando de volta ao portal.
- Você não precisa me carregar. Eu posso andar - murmurei, sonolenta.
Ele sorriu.
- Você estava cansada e eu não tive coragem de acordá-la. Além do mais, já estamos aqui.
Ainda estava escuro lá fora, mas, a leste, o horizonte
começava a clarear. A estátua estava como a tínhamos deixado
- os olhos vermelhos da serpente brilhando e a névoa
vertendo de sua boca. Paramos no portal por um instante e
senti algo se retorcer e se mover. Era Fanindra, que
subitamente ganhou vida, cresceu até seu tamanho normal e
se desenroscou do meu braço.
Ren me aproximou do chão para que ela baixasse
delicadamente para a terra. Ela serpenteou na direção da
estátua e encontrou uma forma de subir até o topo, onde as
cabeças da cobra descansavam.
Dos degraus, nós a vimos avançar sinuosamente em
torno das sete cabeças. À medida que passava, elas também
ganhavam vida e se contorciam de um lado para outro.
Podíamos ver as voltas do corpo sobre as quais a estátua
repousava se transformarem aos poucos em carne coberta por escamas.
Fanindra refez seu caminho, deslizando na minha
direção. Enrodilhando o corpo em uma espiral, ela enrijeceu e
encolheu de volta ao formato do bracelete de ouro. Ren me
colocou no chão e a pegou. Então a deslizou cuidadosamente
pelo meu braço, sorriu para mim, traçou com os dedos os
arranhões no meu braço e franziu a testa. Ele roçou um beijo
de leve em minha pele e virou tigre outra vez.
Em seguida, nos aproximamos da estátua, onde o torso
coleante da cobra agora se agitava e se deslocava. O corpo em
espiral da cobra se levantou e lentamente ergueu a estátua
cada vez mais alto no ar, até que um buraco escuro surgiu
debaixo dela. A imagem do deus macaco se elevou de modo a
haver espaço suficiente para que Ren e eu descêssemos pela abertura.
Espiando o buraco, vi uma série de degraus de pedra
que desapareciam na escuridão do solo. A boca da estátua de
repente parou de lançar a névoa e, em vez disso, começou a
sugá-la de volta. A névoa se precipitou em nossa direção,
subindo à boca da estátua e depois mergulhando no fosso
abaixo. Engoli em seco e voltei a lanterna na direção dos
degraus. Passamos entre as espessas dobras da cobra, e Ren e
eu descemos para o nevoeiro de sombras turvas.
Tínhamos encontrado a entrada para Kishkindha.
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