sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Capítulo 20 - Provações

Descemos com cautela os degraus de pedra, totalmente
dependentes da fraca iluminação da minha pequena lanterna.
Quando alcançamos a base, os olhos de Fanindra começaram a
brilhar, dando ao túnel uma sinistra iluminação verde-azulada.

Parei e reli em voz alta a profecia de Durga:








No pé da página havia as anotações do Sr. Kadam em
sua costumeira e elegante letra cursiva. Também as li em voz
alta:

- Não tenho a menor idéia de quais possam ser esses

perigos - murmurei. - Tomara que os espinhentos sejam algum
tipo de planta.

Começamos a andar e eu tagarelei durante todo o

tempo sobre que tipo de animal poderia ter espinhos.

- Vejamos. Há os estregossauros. Humm, talvez

sejam estegossauros. Bom, seja lá qual for o nome, tem aquela
espécie de dinossauro. Também tem os dragões e porcos-
espinhos, e não podemos esquecer os lagartos de chifres. Talvez
fosse melhor tirar a gada da mochila, hein?

Parei e peguei a arma. A caminhada provavelmente já

seria bastante difícil sem arrastar por aí o bastão, mas eu me
sentia melhor tendo-o à mão.

O túnel logo se transformou em um caminho de pedras

e quanto mais andávamos, mais iluminado ele ia se tornando.
Os olhos de Fanindra se turvaram e sua luz se apagou. Por fim
tornaram-se simples esmeraldas cintilantes outra vez. Algo
estranho estava acontecendo.

Eu não sabia dizer de onde vinha a luz. Parecia filtrar-

se de algum lugar acima de nós. Literalmente, estávamos
seguindo uma luz no fim do túnel. Eu tinha a sensação de estar
em um dos meus pesadelos, no qual não estava claro, mas
também não estava escuro. E neles uma sensação maligna de
tocaia atravessava meu subconsciente e uma força poderosa me
perseguia, obstruía meu progresso e feria aqueles de quem eu
mais gostava.

Os rolos de névoa pareciam nos seguir. Enquanto

andávamos, eles se agitavam à frente para impedir nossa visão
do caminho. Quando paramos, a neblina se acumulou e passou
a nos circundar como pequenas nebulosas girando em nossa
órbita. A névoa fria e cinzenta explorava nossa pele com dedos
gélidos, como se procurasse um ponto fraco.

O corredor começou a parecer diferente. Em vez de

caminhar na pedra, meus pés agora afundavam ligeiramente
na terra úmida e eu ouvia o ruído que meus tênis produziam
ao esmagar a grama baixa. As paredes estavam cobertas de
musgo, que em seguida se transformou em hera e logo em
pequenas plantas semelhantes a samambaias. Eu me
perguntava como elas podiam sobreviver nesse ambiente
úmido e sombrio.

As paredes se afastavam cada vez mais, até que eu não

consegui mais vê-las. O teto se abriu para um céu cinzento.
Não havia profundidade nele e no entanto eu não via seu fim.
Era como se estivéssemos em outro planeta.

Nosso caminho se tornou descendente e tive que me

concentrar no pé que eu levava à frente. Entramos em uma
floresta cheia de plantas e árvores estranhas, que oscilavam nas
raizes, como se o vento as empurrasse. Mas eu não sentia o
menor sinal de brisa. As árvores eram tão compactas e os
arbustos tão densos que ficou difícil ver o caminho, que logo
desapareceu totalmente.

Ren se mantinha na frente e ia abrindo uma trilha com

seu corpo. As árvores tinham galhos longos que se curvavam
até o chão, como salgueiros-chorões. Seus ramos eram leves e
faziam cócegas em minha pele quando eu passava. Ergui a mão
para coçar meu pescoço e percebi que estava molhado.

Devo estar suando. Estranho, não me sinto cansada.

Talvez tenha caído um pouco de água de um galho. Alguma
coisa lambuzava minha mão. A luz esverdeada dava ao líquido
uma aparência marrom. O que é isto? Seiva da árvore? Não! É
sangue!

Arranquei uma folha delicada para olhar mais de perto.

Ao examiná-la, fiquei surpresa em ver minúsculas agulhas
cobrindo sua face inferior. Estendi um dedo para tocar uma
delas e as agulhas cresceram, elevando-se na direção do meu
dedo. Movi o dedo para a frente e para trás, e as agulhas o
acompanharam, como um ímã.

- Ren, pare! Os galhos estão nos arranhando. Eles têm

agulhas na parte de baixo que seguem nossos movimentos. São
eles os perigos espinhentos da profecia!

Quando ele parou, os galhos finos lentamente baixaram

e se enroscaram em seu pescoço e em sua cauda. Ele deu um
salto e os arrancou com violência da árvore.

- Precisamos correr ou eles vão nos enredar! - gritei.


Ele redobrou os esforços para romper a vegetação
densa. Corri atrás dele. A floresta parecia prosseguir
eternamente, sem nenhum sinal de espaçamento entre as
árvores. Depois de mais uns 15 minutos, reduzi o ritmo,
exausta. Eu não conseguia mais correr.

- Ren, não posso ir mais rápido - falei, arfando. -

Continue sem mim. Ultrapasse a linha das árvores. Você pode
conseguir.

Ele parou, deu meia-volta e voltou correndo para o meu
lado. Os galhos começaram a serpentear e envolver com os
ramos anelados seu corpo de tigre.

Ele rugiu e rolou, então atacou os galhos com as garras,

o que os fez recuar por um momento. Senti um deles se
enroscando em meu braço e sabia que tinha acabado para
mim. Lágrimas brotaram de meus olhos e eu me ajoelhei para
acariciar o rosto de Ren.

- Ren, vá - implorei. - Por favor, vá sem mim.


Ele se transformou e colocou a mão sobre a minha.


- Temos que ficar juntos, lembra? Não vou deixá-la, Kelsey. Eu nunca vou deixar você.


Ele me dirigiu um sorriso triste.


Engoli em seco e assenti enquanto ele removia

gentilmente o galho anelado do meu braço e dava um tapa,
afastando outro que se estendia para o meu pescoço.

- Venha.


Ele tirou a gada da minha mão e começou a batê-la nos
galhos, mas eles simplesmente tentavam envolver seus dedos
verdes e afiados em torno da arma, indiferentes a seu poder.
Então Ren foi até um tronco e o atingiu com força.

A árvore se contraiu de imediato. Os galhos se

recolheram e envolveram o tronco, protetores. Ren se pôs à
minha frente e me avisou que esperasse perto da árvore ferida.
Então deu alguns passos à frente e girou a gada.

Ele golpeava o tronco das árvores, deixando feridas

abertas no caminho. Eu o seguia a certa distância enquanto ele
avançava aos poucos pela floresta. Os galhos aparentavam
saber o que ele pretendia e o atacavam ferozmente, mas Ren
parecia ter uma dose de energia infindável.

Eu estremecia ao ver cortes e arranhões surgirem em

cada pedaço nu de sua pele. Suas costas logo ficaram laceradas,
a camisa rasgada e ensanguentada. Ele parecia ter sido
brutalmente chicoteado.

Por fim, chegamos aos limites da floresta traiçoeira e

paramos em uma clareira. Ele me puxou para além do alcance
dos galhos e deixou que seu corpo desabasse no chão. Dobrou-
se, suando e arfando por causa do esforço. Tirei uma garrafa de
água da mochila e lhe ofereci. Ele bebeu tudo de um gole só.

Inclinei-me para examinar seu braço ensanguentado.

Seu corpo estava escorregadio, com sangue e suor. Peguei outra
garrafa de água e uma camiseta velha e comecei a limpar a
sujeira de seus cortes e ferimentos. Pressionei o tecido molhado
e fresco em seu rosto e em suas costas. Ele começou a relaxar e
respirar mais devagar à medida que eu prosseguia. Os cortes
cicatrizavam rapidamente e, quando minha preocupação com
Ren diminuiu, eu me dei conta de algo.

- Ren! Você está na forma humana há muito mais do

que 24 minutos. Você está bem... sem contar os arranhões, é claro?

Ele esfregou a mão no peito.

- Eu me sinto... bem. Não sinto a necessidade de me
transformar de volta.
- Talvez a gente já tenha quebrado a maldição!

Ele refletiu por um minuto.

- Acho que não. Tenho a impressão de que devemos ir em frente.

- Por que não testamos? Veja se você pode se
transformar em tigre.

Ele assumiu a forma de tigre e voltou, e suas roupas

rasgadas e ensanguentadas foram imediatamente substituídas
por outras brancas e limpas.

- Talvez seja apenas a magia deste lugar que me permite ser humano.


Meu rosto deve ter mostrado meu abatimento. Ren riu e

beijou meus dedos.

- Não se preocupe, Kells. Logo serei totalmente

humano, mas por ora aceito esta dádiva pelo máximo de tempo
que puder tê-la.

Ele piscou para mim e sorriu, e então se inclinou e me
puxou para mais perto, de modo que pudesse examinar meus
ferimentos. Inspecionou meus braços, as pernas e o pescoço.

Passou a camiseta molhada pelos meus braços e limpou os

cortes com ternura. Eu sabia que as suas feridas eram muito
mais graves que as minhas, então tentei dissuadi-lo, mas ele
não recuava.

- Está tudo bem - declarou ele. - Você tem um

arranhão feio no pescoço, mas acho que vai cicatrizar sem
nenhum problema. - Ele umedeceu a parte posterior do meu
pescoço com o tecido e o pressionou ali por um instante. Então
puxou a gola da minha camiseta com o dedo. - Tem outros
lugares que queira que eu examine para você?

Afastei sua mão com um tapa.

- Não, obrigada. Esses outros lugares eu mesma posso examinar.


Ele riu bem-humorado, então se levantou e me ajudou a

me erguer. Pôs a mochila nas costas e apoiou a gada no ombro.
Depois de me oferecer a mão, começamos a andar.

Passamos por mais árvores de agulhas, mas estas

estavam bem espaçadas e misturadas a outras árvores normais,
não assassinas, e assim pudemos nos manter fora de seu
alcance. Ren entrelaçou os dedos nos meus.

- Sabe, é bom andar com você sem me preocupar

com quanto tempo me resta.
- É verdade - concordei, tímida.

Ren parecia feliz, apesar de nossa situação. Pensei em
como devia ser difícil para ele, sabendo que tinha muito pouco
tempo por dia como humano e tentando usufruir o melhor de
cada momento. Para ele, aquele lugar sinistro era um presente.
Seu bom humor acabou me contagiando.

Eu sabia que desafios piores provavelmente nos

aguardavam, mas, andando ao lado de Ren, eu não me
importava. Assim, me permiti desfrutar o meu tempo com ele.

Reencontramos uma trilha de terra batida e começamos

a segui-la. O caminho levava na direção de algumas colinas e
de um grande túnel que, deduzimos, as atravessava. Não havia
nenhum outro caminho a tomar, portanto entramos ali
devagar, de olhos atentos ao que nos cercava. Tochas acesas se
alinhavam nas paredes de pedra e muitos outros túneis partiam
do principal. Dei um pulo quando vi alguma coisa se mexer em
uma passagem lateral.

- Ren! Eu vi alguma coisa ali.

- Também vi algo.

Parecia que estávamos em uma grande colmeia de

túneis e figuras apareciam continuamente em nossa visão
periférica. Pressionei meu corpo de encontro ao de Ren e ele
passou o braço pelos meus ombros.

Ouvi uma voz, uma voz feminina, dizer baixinho, chorando:


- Ren? Ren? Ren? Ren?


O chamado ecoava de túnel em túnel.

- Estou aqui, Kells! Kells! Kells!


Ren me olhou, apreensivo, e apertou meu ombro.
Aquelas eram as nossas vozes. Ele me soltou e puxou a gada,
deixando-a preparada diante dele. Avançando com cautela, ele
observava atentamente os outros túneis.

Ouvi gritos e passos correndo, tigres rosnando e berros

lancinantes. Parei de andar por um instante e fiquei diante de
um dos túneis.

- Kelsey! Me ajude!


Ren apareceu no túnel lateral. Lutava contra um grupo

de macacos que o arranhavam e mordiam. Ele se transformou
em tigre, cravou os dentes neles e os estraçalhou. Era horripilante!

Dei um passo para trás, sentindo medo. Então me

imobilizei e me lembrei do aviso de Durga sobre ficarmos
juntos. Dei meia-volta e vi dois outros túneis que não estavam
ali antes. Dois Rens avançavam segurando a gada à frente do
corpo, um em cada túnel. Qual era o túnel principal? Qual era
o verdadeiro Ren?

Ouvi passos correndo atrás de mim e rapidamente

escolhi o da direita. Corri para alcançá-lo, mas parecia que
quanto mais perto eu chegava, mais distante ele ficava. Eu
sabia que havia escolhido o caminho errado e o chamei:

- Ren!


Ele não se virou para mim. Parei e olhei em dois outros

túneis, procurando um sinal dele. Vi Kishan e Ren lutando
como tigres em um túnel. Em outro, o Sr. Kadam travava uma
luta de espada com um homem que parecia o mesmo do meu
pesadelo.

Corri de túnel em túnel. Várias passagens mostravam

cenas da minha vida. Minha avó me acenando para que eu a
ajudasse a plantar flores. Uma professora da escola me fazendo
perguntas. Havia até uma com meus pais. Eles me chamavam.
Arquejei e meus olhos se encheram de lágrimas.

- Não, não, não! - gritei. - Isso não pode estar acontecendo! Onde está Ren?

- Kelsey? Kelsey! Cadê você?
- Ren! Estou aqui!

Ouvi minha voz, mas eu não dissera nada.

Olhei em outro túnel e vi Ren correndo para... mim. Só

que não era eu. Ren chegou perto da coisa que parecia eu e fez
um carinho em seu rosto.

- Kelsey, você está bem?


Eu a ouvi responder:

- Sim, estou bem.


E virou a cabeça, olhando para mim quando Ren beijou
seu rosto. A imagem se metamorfoseou e, com um ruído agudo
e estrondoso, o rosto se dissolveu na morte e sorriu
insidiosamente. Estremeci de repulsa enquanto olhava para um
cadáver sorridente, pulsando com larvas de varejeira.

Aproximei-me da entrada do túnel e gritei para que

Ren parasse, mas ele não podia me ouvir. Havia uma espécie de
barreira bloqueando meu caminho para que eu não pudesse
entrar. O cadáver deu uma risadinha e me acenou com a mão.
A imagem tornou-se obscura e eu não pude mais distingui-la.

Enfurecida, esmurrei a barreira, mas isso não surtiu

efeito. Depois de alguns momentos, a barreira desapareceu e eu
me vi olhando para um longo e negro corredor iluminado por
tochas, exatamente como as dezenas de outros por que eu passara.

Desisti e segui adiante. Passei por um Ren agachado no

chão, desesperado. Ele soluçava e lamentava suas perdas.
Falava de todos os erros que cometera e de quanto estivera
equivocado em relação a tudo. Implorava perdão, mas não
conseguia encontrar a absolvição. As coisas que ele dizia ter
feito eram terríveis, inexprimíveis. Coisas que eu sabia que Ren
jamais fizera e não podia sequer imaginar fazer.

Eu estava indignada. Aquilo já era demais! Era tão

terrível ver alguém de quem você gostava totalmente destruído
que fiquei furiosa. Alguém ou alguma coisa estava brincando
conosco e eu odiava isso. O pior era saber que as mesmas coisas
estavam acontecendo com Ren em algum lugar naqueles
túneis. Quem saberia como estavam me representando?

Segui para outro túnel e vi um Ren ereto e altivo de

costas para mim.

Chamei, com cautela:


- Ren? É você mesmo?


Ele deu meia-volta e exibiu seu lindo sorriso, e então
estendeu os braços para mim e acenou para que eu me aproximasse.

- Kelsey! Finalmente! Por que você demorou tanto?

Onde estava?

Com grande alívio, eu o envolvi com os braços quando
ele me puxou para mais perto. Ele me abraçou e esfregou
minhas costas.

Intrigada, perguntei:


- Ren? Onde estão a mochila e a gada?


Eu me afastei e olhei seu lindo rosto.

- Não precisamos mais delas - disse ele. - Agora

fique aqui quietinha comigo um minuto.

Recuei rapidamente, distanciando-me dele alguns passos.

- Você não é Ren.


Ele riu.


- Claro que sou eu, Kelsey. O que preciso fazer para provar a você?

- Não. Alguma coisa está errada. Você não é ele!

Saí correndo do túnel e continuei até meus pulmões

estarem prestes a explodir. Mas não cheguei a lugar nenhum.
Simplesmente passei por um túnel após outro. Fui perdendo a
velocidade até parar e, arquejando, tentava pensar no que
deveria fazer. Ren tinha a gada e a mochila. Ele nunca as
descartaria. Assim, ainda estava com elas em algum lugar, e eu
nada tinha. Não, isso não era verdade. Eu tinha, sim, uma coisa!
Puxei o papel do bolso da calça e reli os avisos.

Se, por alguma razão, vocês se separarem, enfrentarão

grande perigo. Ela também disse para não confiar em seus
olhos. Seus corações e suas almas lhes dirão a diferença entre
fantasia e realidade.

Não confiar em meus olhos? Isso já era óbvio àquela

altura. Então meu coração me ajudará a ver a diferença. Muito
bem, vamos seguir meu coração. Mas como?

Decidi continuar andando e manter a mente aberta. A

cada túnel, eu parava para observar por um minuto e então
fechava os olhos e tentava sentir se estava tudo bem. Em geral,
o que ou quem estivesse ali redobrava seus esforços. Eles
falavam e adulavam, tentando me fazer ir atrás deles. Prossegui
dessa forma, atravessando vários túneis, e nenhum dos lugares
onde parei parecia o certo.

Cheguei a outra passagem e me detive para examinar a

cena. Eu me vi morta e caída no chão com Ren ajoelhado ao
meu lado. Ele se debruçava sobre o meu corpo inerte,
examinando. Eu o ouvi sussurrar:

- Kelsey? É você? Kelsey, por favor. Fale comigo.

Preciso saber se é mesmo você.

Ele pegou meu corpo e o embalou amorosamente nos
braços. Vi que ele tinha a gada e a mochila. Mas eu já fora
enganada antes. Então ele disse:

- Não me deixe, Kells.


Fechei os olhos e ouvi sua voz implorando para que eu
vivesse. Meu coração começou a martelar violentamente, uma
reação diferente da que eu tivera nas visões anteriores. Dei um
passo à frente e bati em outra barreira.

- Ren? Estou aqui. Não desista - falei baixinho.


Ele ergueu a cabeça, como se tivesse me ouvido.

- Kelsey? Eu estou ouvindo você, mas não posso vê-la. Onde você está?


Ren deitou o corpo do meu clone no chão e aquilo desapareceu.


- Feche os olhos e sinta seu caminho até mim - eu lhe disse.


Ele se ergueu lentamente e fechou os olhos.


Também fechei os meus e tentei me concentrar não em

sua voz, mas em seu coração. Imaginei minha mão em seu
peito, sentindo os batimentos fortes. Meu corpo parecia se
mover por vontade própria e eu dei vários passos à frente.
Estava concentrada em Ren, em sua risada, seu sorriso, como eu
me sentia perto dele, e então, de repente, minha mão tocou seu
peito e eu pude sentir seu coração batendo. Ele estava ali. Abri
meus olhos devagar e olhei para ele.

Ren estendeu a mão e tocou meu cabelo, mas então recuou.


- É você mesma desta vez, Kells?

- Bom, eu não sou um cadáver cheio de larvas de
varejeira, se é o que você quer dizer.

Ele sorriu.

- Que alívio. Nenhum cadáver cheio de larvas de

varejeira seria tão sarcástico.

- Bem, e como eu sei que é você de verdade? - indaguei.


Ele considerou minha pergunta por um momento e

então baixou a cabeça para me beijar. Puxou-me de encontro
ao seu peito, me segurando mais perto dele do que eu pensei
ser possível, e seus lábios tocaram os meus. Seu beijo começou
terno e suave, mas rapidamente tornou-se ávido. Suas mãos
percorreram meus braços, meus ombros, e então seguraram
meu pescoço. Envolvi sua cintura com os braços e me deliciei
com o beijo. Quando ele se afastou, meu coração martelava em
resposta.

Assim que me vi capaz de falar novamente, disse:


- Mesmo que não seja você de verdade, eu fico com esta versão.


Ele riu e o alívio tomou conta de ambos.


- Kells, acho melhor você segurar minha mão pelo resto do caminho.


Sorri feliz para ele.

- Sem problema.


Exultante por ter meu Ren de volta, pude ignorar os
chamados e lamentos suplicantes que vinham das passagens laterais.

Uma luz apareceu na extremidade oposta do túnel e

seguimos para lá. Ren segurou minha mão com força até
emergirmos da abertura e nos vermos bem longe dela. Ele
parou perto de um riacho serpenteante que fazia uma curva
por trás de algumas árvores.

Parecia meio-dia ali, qualquer que fosse aquele lugar,

então decidimos fazer uma pausa e comer.

Mordiscando uma barra de cereais, Ren disse:


- Prefiro evitar as árvores e ficar perto do leito do

rio. Tenho esperanças de que, se o seguirmos um pouco mais,
ele nos levará a Kishkindha.

Assenti com a cabeça e me perguntei o que mais estaria
à nossa espera depois da próxima curva.

Sentindo-nos revigorados após o breve descanso,

avançamos seguindo o riacho. A água corria na mesma direção
que nós, o que, segundo Ren, significava que estávamos
andando rio abaixo. A margem era cheia de pedras lisas do rio.

Pegando uma pedra cinza, comecei a atirá-la para cima

e para baixo enquanto andava e me perdi em pensamentos. Até
sentir que o peso e a textura da pedra mudaram. Abri a mão e
vi que ela havia se transformado em uma esmeralda lisa e
reluzente. Parei e olhei para as pedras sob meus pés. Ainda
eram cinzentas e foscas, mas, quando desapareciam sob a água,
eu via jóias tremeluzindo em seu lugar.

- Ren! Olhe ali. Debaixo d’agua. - Apontei para as

pedras preciosas que cintilavam ali embaixo. Quanto mais rio
adentro eu olhava, maiores eram as pedras. - Está vendo ali?
Um rubi do tamanho de um ovo de avestruz!

Assim que me inclinei para tirar um grande diamante
da água, senti Ren me envolver com os braços e me puxar para trás.

Ele sussurrou junto ao meu rosto, apontando para o rio:


- Olhe adiante. Ali, com o canto do olho. O que você vê?

- Não estou vendo nada.
- Use sua visão periférica.

Bem perto do diamante, uma imagem tremeluzia

levemente sob a água. Parecia um macaco branco, sem pelos.
Seus braços longos estavam estendidos na minha direção.

- Ele estava tentando pegar você.


Atirei a esmeralda no riacho. A água redemoinhou e
sibilou onde ela caiu, depois acalmou-se novamente, ficando
tão lisa quanto seda. Quando eu olhava diretamente para as
pedras preciosas, elas eram tudo o que eu via, mas pelo canto
do olho podia distinguir macacos d’agua por toda parte,
boiando logo abaixo da superfície. Aparentemente eles usavam
a cauda para ancorar seus corpos em raízes de árvores e
plantas subaquáticas, como fazem os cavalos-marinhos.

- Estou achando que são kappa - disse Ren.

- O que são kappa?
- Demônios da Ásia dos quais minha mãe costumava
me falar. Eles ficam na água, à espreita de crianças, para pegá-
las e sugar-lhes o sangue.
- Macacos-cavalos-marinhos-vampiros? Você está
falando sério?

Ele deu de ombros.


- Parece que são reais. Minha mãe falava sobre eles

quando eu era pequeno. Contava que as crianças na China
aprendiam a demonstrar respeito pelos mais velhos curvando-
se. Diziam-lhes que, se não se curvassem, os kappa iriam pegá-
las. Sabe, os kappa têm uma depressão no alto da cabeça que
fica cheia de água. Precisam ter água nessa concavidade para
sobreviver. A única maneira de se salvar se um deles o
perseguir é se curvando.
- Como o ato de se curvar pode salvar alguém?
- Se você se curvar para um kappa, ele terá que
repetir o gesto. Ao fazê-lo, a água no topo da cabeça derrama,
deixando-o indefeso.
- Bem, se eles podem sair da água, por que não nos
atacaram?
- Em geral atacam apenas crianças, ou pelo menos
foi o que me disseram - refletiu ele. - Minha mãe contou que a
avó dela costumava entalhar o nome das crianças em frutas ou
pepinos e então os atirava na água antes de banhá-las no rio.
Os kappa comiam os frutos e ficavam satisfeitos, assim não
machucavam as crianças no banho.
- Sua mãe seguia essa tradição?

- Não. Éramos da realeza e tínhamos o banho

preparado para nós. Além do mais, minha mãe não acreditava
nessa história. Ela só nos contava para que compreendêssemos
a essência, que era a de que todas as pessoas e coisas precisam
ser tratadas com respeito.
- Gostaria de saber mais sobre sua mãe. Parece ter
sido uma mulher muito interessante.
- E era - replicou ele baixinho. - Eu também
gostaria que ela tivesse conhecido você. - Ele examinou a água
e mostrou o demônio à espreita. - Aquele ali estava tentando
pegar você, embora supostamente só ataquem crianças. Estes
devem ter sido designados para proteger as pedras preciosas. Se
você houvesse apanhado uma delas, eles a teriam puxado para
debaixo d’água.
- Por que me puxar para debaixo d’água? Por que
simplesmente não saltar sobre mim?
- Os kappa em geral afogam suas vítimas antes de
tirar seu sangue. Eles se mantêm na água o máximo possível
para se protegerem.

Recuei, deixando Ren entre mim e o rio.


- Então devemos voltar para as árvores ou ficar

perto do leito do rio?

Ele correu a mão pelos cabelos e tornou a colocar a
gada no ombro, mantendo-a pronta para o ataque.

- Que tal seguirmos pelo meio? Os kappa parecem

satisfeitos em ficar na água por enquanto, mas vamos tentar
evitar os galhos das árvores também.

Caminhamos por mais algumas horas. Conseguimos

contornar tanto os kappa quanto as árvores, embora as últimas
tenham feito o possível para nos alcançar e nos agarrar. O
riacho descrevia uma longa curva que nos levou um pouco
perto demais das árvores para que nos sentíssemos tranquilos,
mas Ren manteve a gada preparada e alguns golpes em troncos
próximos cuidaram de uns galhos insistentes.

Por fim, deparamos com uma árvore enorme bem no

nosso caminho. Seus ramos longos e serpenteantes estendiam-
se impossivelmente em nossa direção, as agulhas projetadas
para a frente. Ren se abaixou e, com uma extraordinária
explosão de velocidade, disparou adiante e saltou na direção do
tronco. O abraço folhoso da árvore o engoliu imediatamente.

Ouvi uma grande pancada, e a árvore estremeceu e o

libertou. Ele emergiu todo arranhado, mas veio até mim com
um sorriso no rosto. Sua expressão logo mudou para um olhar
de preocupação, porém, ao me ver boquiaberta, olhando acima
de sua cabeça. A árvore estivera bloqueando nossa visão e,
agora que ela havia se dobrado sobre si mesma, eu podia ver
adiante o reino fantasmagoricamente cinzento de Kishkindha.

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