sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Capítulo 23 - Seis Horas

O dia amanhecia. Passei intempestivamente pelos edifícios de Hampi e deixei que o ímpeto de minha fúria me levasse de volta a meio caminho do acampamento do Sr. Kadam.

Ren seguia atrás de mim, em algum lugar, silencioso. Eu

não podia ouvi-lo, mas sabia que estava lá. Eu tinha
consciência de sua presença. Tinha uma conexão intangível
com ele, o homem. Era quase como se ele estivesse andando ao
meu lado. Quase como se estivesse me tocando.

Devo ter começado a pegar o caminho errado, pois ele tomou a dianteira, deixando claro que seguia em uma direção diferente.


- Exibido - murmurei. - Vou pelo caminho errado, se quiser.


No entanto, eu o segui.


Um pouco depois, avistei o Jeep estacionado na colina e

vi o Sr. Kadam acenando para nós.

Andei até o acampamento e ele me abraçou.


- Srta. Kelsey! Vocês voltaram. Conte-me o que aconteceu.


Suspirei, tirei a mochila e me sentei no pára-choque traseiro do Jeep.


- Bom, preciso lhe dizer que esses últimos dias estão entre os piores da minha vida. Enfrentamos macacos, kappa, cadáveres podres, picadas de cobras, árvores cobertas de agulhas e...


Ele ergueu a mão.


- O que quer dizer com esses últimos dias? Vocês saíram daqui na noite passada.


Confusa, eu disse:


- Não. Ficamos fora pelo menos... - contei nos dedos - ...pelo menos quatro ou cinco dias.


- Desculpe, Srta. Kelsey, mas a senhorita e Ren se despediram de mim na noite passada. Na verdade, eu ia dizer que vocês deveriam descansar um pouco e tentar de novo amanhã à noite. Acha mesmo que ficaram fora quase uma semana?

- Para falar a verdade, fiquei inconsciente por dois
desses dias. Pelo menos foi o que o tigre aqui me disse.

Lancei um olhar furioso a Ren, que me olhava com uma

expressão inocente de tigre enquanto ouvia nossa conversa.

Ren parecia doce e atento, como um gatinho inofensivo.

Na verdade, ele era tão inofensivo quanto um kappa. Eu, por
outro lado, parecia um porco-espinho. Estava enfezada. Tinha
todos os espinhos eriçados para impedir que minha barriga
desprotegida fosse devorada pelo predador que me espreitava.

- Dois dias? Nossa. Por que não voltamos para o hotel e descansamos? Podemos tentar conseguir o fruto amanhã à noite de novo.

- Mas, Sr. Kadam - falei, abrindo o zíper da mochila
-, não precisamos voltar. Conseguimos pegar o primeiro
presente de Durga, o Fruto Dourado.

Puxei minha colcha e a desdobrei, revelando o objeto ali aninhado.


Ele o tirou delicadamente de seu casulo.


- Incrível! - exclamou.

- É uma manga. - Com um sorriso insolente,
acrescentei: - Faz todo o sentido. Afinal, a manga é muito
importante para a cultura e o comércio da Índia.

Ren bufou e se deitou de lado na grama.


- Faz mesmo sentido, Srta. Kelsey. - O Sr. Kadam

ficou admirando o fruto por mais um momento e então tornou
a embrulhá-lo na colcha. Ele juntou as mãos. - Isso é muito
empolgante! Então vamos desfazer o acampamento e ir para
casa. Ou talvez seja melhor irmos para um hotel para que
possa descansar, Srta. Kelsey.
- Ah, está tudo bem. Não me importo de pegar a estrada. Podemos dormir no hotel hoje à noite. Quantos dias vamos levar para chegar em casa?
- Vamos precisar pernoitar mais duas vezes em hotéis em nossa viagem para casa.

Um pouco preocupada, olhei para Ren.


- E... Eu estava pensando que desta vez, se o senhor não se importar, podíamos ficar em um hotel maior. Sabe, algo

que tenha mais gente. Com elevadores e quartos com chave.
Ou, ainda melhor, um belo hotel bem alto em uma cidade
grande. Bem, bem, bem longe da selva.

O Sr. Kadam deu uma risadinha.


- Vou ver o que posso fazer.


Recompensei o Sr. Kadam com um sorriso agradecido.


- Ótimo! Podemos ir agora? Mal posso esperar para tomar um banho. - Abri a porta do lado do carona, virei-me e sibilei num sussurro para Ren: - Em meu belo quarto de hotel, num andar bem alto, inacessível a tigres.


Ele apenas me olhou outra vez com sua cara inocente e

seus olhos azuis. Sorri perversamente para ele e pulei para o
interior do Jeep, fechando a porta com força. Meu tigre se
dirigiu tranquilo para a traseira, onde o Sr. Kadam guardava
seus últimos suprimentos, e saltou para o banco de trás. Ele se
inclinou para a frente e, antes que eu pudesse empurrá-lo, me
deu uma grande e babada lambida no rosto.

- Ren! - vociferei. - Isso é nojento!


Usei minha camiseta para limpar a saliva de tigre do nariz e da bochecha, e me virei para gritar com ele um pouco mais. Ren já estava deitado no banco traseiro, com a boca aberta, como se estivesse rindo. Antes que eu pudesse reagir, o Sr. Kadam, que estava feliz como eu jamais o vira, entrou no Jeep e começamos a esburacada jornada de volta a uma estrada civilizada.


O Sr. Kadam queria me fazer perguntas. Eu sabia que

ele estava ávido por informações, mas ainda estava furiosa com
Ren, então menti. Perguntei-lhe se poderia esperar um pouco
para que eu pudesse dormir. Dei um imenso bocejo, para efeito
dramático, e ele logo concordou em me deixar ter um pouco de
paz, o que fez com que eu me sentisse culpada. Eu gostava
muito do Sr. Kadam e detestava mentir. Desculpei minha
atitude atribuindo mentalmente a Ren a culpa por esse
comportamento atípico.

Dormi um pouco e, quando acordei, o Sr. Kadam me

entregou um refrigerante, um sanduíche e uma banana. Pensei
em várias e boas piadas de macaco com que podia importunar
Ren, mas fiquei calada em respeito ao Sr. Kadam. Devorei meu
sanduíche e acabei com o refrigerante em um longo gole.

O Sr. Kadam riu e me entregou outro.


- Está pronta para me contar o que aconteceu, Srta. Kelsey?

- Acho que sim.

Levei quase duas horas para lhe contar sobre o túnel, a

floresta de agulhas, a caverna, os kappa e Kishkindha. Fiquei
muito tempo falando da árvore dourada e dos macacos de
pedra que ganharam vida. Terminei com o ataque do kappa e
as picadas de Fanindra.

Não mencionei nem uma só vez que Ren ficara na

forma humana o tempo todo. Na verdade, apaguei a presença
dele em Kishkindha por completo. Sempre que o Sr. Kadam me
perguntava como isso ou aquilo fora feito, eu respondia
vagamente, ou dizia que por sorte tínhamos Fanindra ou que
por sorte tínhamos a gada. Isso pareceu satisfazer a maior parte
de suas perguntas.

Quando ele pediu mais detalhes sobre o ataque dos

kappa, eu dei de ombros e repeti o mantra: "Por sorte eu tinha
Fanindra." Não queria responder a nenhuma pergunta estranha
sobre Ren. Eu sabia que ele provavelmente contaria seu lado da
história quando voltasse à forma humana, mas não me
importava. Mantive minha versão da viagem objetiva, distante
e, o mais importante, sem Ren.

O Sr. Kadam disse que logo iríamos parar em um hotel, mas que ele gostaria primeiro de encontrar um bom lugar para deixar Ren.


- É claro - concordei, e dirigi um sorriso doce e falso ao tigre atento no banco de trás.

- Espero que nosso hotel não seja longe demais para ele - preocupou-se o Sr. Kadam.

Dei uns tapinhas no braço do Sr. Kadam, tranquilizando-o.


- Ah, não se preocupe com ele. Ren é muito bom em

conseguir o que quer. Ou melhor... em cuidar de suas
necessidades. Tenho certeza de que ele vai achar sua longa
noite sozinho na selva extremamente esclarecedora.

O Sr. Kadam me dirigiu um olhar intrigado, mas

acabou assentindo e parou perto de uma área de selva.

Ren saltou do Jeep, foi até o meu lado do carro e me

fitou com olhos azuis gélidos. Eu simplesmente me virei de lado
para não ter que encará-lo. Quando o Sr. Kadam tornou a
entrar no Jeep, espiei pela minha janela, mas Ren já havia
desaparecido. Lembrei a mim mesma que ele merecia aquilo e
me recostei no assento com os braços dobrados sobre o peito.

- Kelsey, você está bem? - perguntou o Sr. Kadam com a voz suave. - Está parecendo muito... tensa desde que voltou.

- O senhor não faz idéia - murmurei entre dentes.
- O que foi?

Suspirei e sorri para ele debilmente.


- Nada. Estou bem. Apenas esgotada da viagem. Só isso.

- Tem mais uma coisa que eu queria lhe perguntar.
Você teve algum sonho estranho quando estava em Kishkindha?
- Que tipo de sonho?

Ele olhou para mim, preocupado.


- Talvez um sonho sobre seu amuleto?

- Ah! Esqueci completamente de contar! Quando colhi o fruto, desmaiei e tive uma visão. Nela estavam o senhor, eu e um sujeito maligno.

O Sr. Kadam ficou visivelmente apreensivo. Ele pigarreou.


- Então a visão foi real... para todos nós. Era o que eu temia. O homem que você viu era Lokesh. É o feiticeiro do mal que lançou a maldição sobre Ren e Kishan.


Minha boca se escancarou com o susto.


- Ele ainda está vivo?

- Pelo jeito, sim. Também parece que ele tem pelo menos uma parte do amuleto. No entanto, suspeito que tenha todas as outras partes.
- Quantas são?
- Supõe-se que sejam cinco ao todo, mas ninguém
tem certeza. O pai de Ren tinha uma parte e a mãe trouxe outra
para a família, pois era filha única de um poderoso chefe
militar que também possuía uma. Foi assim que tanto Ren
quanto Kishan acabaram com um pedaço do amuleto.
- Mas o que isso tem a ver comigo?
- É essa a questão, Kelsey. Você está ajudando Ren a
quebrar a maldição. O amuleto conecta nós três e receio que
Lokesh saiba sobre nós. Sobre você, em particular. Eu torcia
para que alguma coisa tivesse lhe acontecido, que ele não
estivesse mais vivo depois de todos esses anos. Faz séculos que
venho procurando por ele. Agora que nos viu, temo que venha
atrás de você e do amuleto.
- O senhor acha mesmo que ele é tão cruel?
- Sei que é. - O Sr. Kadam fez uma pausa e então
sugeriu com delicadeza: - Talvez seja hora de você voltar para casa.
- O quê? - perguntei, em pânico.

Voltar para casa? Que casa? Para quem? Eu não tinha

vida em meu país. Não havia nem mesmo pensado no que
aconteceria depois que quebrássemos a maldição. Acho que
simplesmente imaginei que houvesse tanto a fazer que eu
ficaria por ali por mais alguns anos.

Desalentada, perguntei:


- O senhor quer que eu volte para casa agora?


Ele viu minha expressão e afagou minha mão.


- Claro que não! Eu não quis dizer que queria que

você nos deixasse. Não se preocupe. Vamos encontrar uma
solução. Por ora, estou apenas especulando. Não tenho nenhum
plano imediato de mandá-la para casa. E, naturalmente, se um
dia você partir, poderá voltar sempre que quiser. Nossa casa é
sua. Só precisamos agir com extrema cautela agora que Lokesh
voltou ao cenário.

Senti meu pânico diminuir, mas somente em parte. Pode

ser que o Sr. Kadam esteja certo. Talvez eu devesse voltar para
casa. Seria muito mais fácil esquecer o Sr. Super-Herói se eu
estivesse do outro lado do planeta. Afinal, ele é o único rapaz
com quem tive contato em semanas, sem contar Kishan. De
qualquer modo, seria mais saudável para mim sair e conhecer
outros caras. Talvez, se eu fizesse isso, percebesse que toda essa
ligação emocional que tenho com ele não é assim tão forte.

Minha mente pode estar me pregando peças. É só

porque fiquei isolada, só isso. Quando tudo o que se tem é
Tarzan e alguns macacos, Tarzan parece muito bom, não é?

Vou esquecê-lo, vou para casa e vou namorar um nerd

simpático e normal, que nunca vai me deixar.

Prossegui nessa linha de raciocínio, listando minhas

razões para ficar longe de Ren. Decidi que continuaria a evitá-
lo. O único problema era minha mente fraca e rebelde que
ficava voltando à questão de quanto eu me sentia segura nos
braços dele. E ao que ele dissera quando achou que eu estivesse
morrendo. E ao formigamento quente que permanecia em
meus lábios depois que ele me beijava. Mesmo que eu ignorasse
a beleza de seu rosto, o que era uma tarefa quase hercúlea,
havia muitas outras qualidades fascinantes nas quais minha
mente podia se demorar e esses pensamentos me mantiveram
ocupada pelo restante da viagem.

O Sr. Kadam parou na entrada de um fabuloso hotel

cinco estrelas. Eu me senti uma desleixada em minhas roupas
rasgadas e ensanguentadas, com as quais eu estava havia uma
semana. O Sr. Kadam parecia não se importar e se mostrava
feliz como nunca quando entregou as chaves para um
manobrista e me acompanhou, entrando no hotel. Eu fiquei
com a mochila, mas nossas duas outras malas foram levadas
para os quartos por empregados do hotel.

O Sr. Kadam preencheu os formulários necessários e

falou baixinho em hindi com a recepcionista. Então gesticulou
para que eu o seguisse.

Quando passamos por ela, eu me inclinei e perguntei:


- Só por curiosidade, vocês não permitem animais de estimação, não é?


Ela pareceu confusa e olhou para o Sr. Kadam, mas

sacudiu a cabeça negativamente.

- Ótimo. Só para ter certeza.


Sorri para ela. O Sr. Kadam inclinou a cabeça, intrigado,

mas não disse nada.

Ele deve estar pensando que estou com um parafuso

frouxo. Dei um risinho e o segui até o elevador. Saímos
diretamente em nosso quarto, a suíte da cobertura.

Os empregados se foram e as portas do elevador se

fecharam. O Sr. Kadam me disse que ocuparia o quarto da
esquerda e que eu ficaria com a suíte à direita. E deixou-me
sozinha, me aconselhando a descansar e informando que a
comida seria servida dali a pouco.

Entrei em minha linda suíte com cama king size e ri,

atordoada. Havia uma imensa banheira no meio do banheiro.
Tirei rapidamente os tênis sujos e decidi tomar um banho de
chuveiro primeiro e só então ficar de molho na banheira.
Ensaboei o cabelo quatro vezes e em seguida apliquei
condicionador e deixei o líquido sedoso fazer efeito enquanto
esfregava a minha pele. Enterrei as unhas no sabonete e lavei-
as bem para tirar a sujeira, prestando especial atenção aos pés.
Meus pobres pés doloridos, cheios de calos e bolhas. Talvez o
Sr. Kadam possa me arranjar uma pedicure mais tarde.

Quando me senti totalmente limpa, enrolei uma toalha

no cabelo e vesti um roupão. Enchendo a banheira com água
quente, despejei a espuma de banho e liguei o sistema de
hidromassagem. O aroma de peras suculentas e amoras recém-
colhidas tomou conta do banheiro e me fez lembrar do Oregon.

A sensação de afundar naquela banheira era a melhor

de todas. Bem, a segunda melhor. Fiquei irritada quando a
lembrança dos beijos de Ren surgiu e logo me livrei dela, ou
pelo menos tentei. Quanto mais eu relaxava na banheira, mais
a minha mente parecia se demorar naquelas cenas. Era como
uma música que não me saísse da cabeça e que,
independentemente do que eu fizesse, continuava a voltar.

Cheguei até a me pegar sorrindo... Argh! O que é isso?

Estremeci, zangada, tentando me livrar dos devaneios. Então,
com relutância, saí da banheira. Depois de me secar e vestir um
short e uma camiseta limpos, sentei-me para escovar os cabelos. Levei um tempão para conseguir tirar todos os nós. O ato de escovar era calmante. Fazia com que eu me lembrasse de minha mãe.

Mais tarde, me aventurei até a sala de estar e encontrei o Sr. Kadam lendo um jornal.


- Olá, Srta. Kelsey. Está se sentindo renovada?

- Estou me sentindo muito melhor.
- Ótimo. Tomei a liberdade de pedir o seu jantar. Está ali em cima.

Levantei a tampa do prato e encontrei peru recheado com farofa de milho, molho de frutas vermelhas, ervilhas e purê de batata.


- Uau! Como o senhor conseguiu que fizessem isso?


Ele deu de ombros.


- Pensei que você fosse gostar de alguma coisa bem americana para variar e isso é o mais americano que há. Tem até torta de maçã de sobremesa.


Peguei meu prato e o copo de água com limão e gelo e

me sentei perto dele para comer, com as pernas dobradas
debaixo do corpo.

- O senhor já comeu?

- Sim, há uma hora mais ou menos. Não se preocupe comigo. Aproveite seu jantar.

Comecei a comer e, antes mesmo da torta de maçã, já me sentia farta. Passei um pedaço de pão no molho em meu prato e disse:


- Sr. Kadam? Queria lhe dizer uma coisa. Eu me sinto culpada por não ter contado antes, mas acho que o senhor precisa saber. - Respirei fundo e continuei: - Ren ficou na forma humana o tempo todo em que permanecemos em Kishkindha.


Ele colocou de lado o jornal.


- Isso é interessante. Mas por que você não me contou antes?


Dei de ombros e respondi, evasiva:


- Não sei. Tivemos algumas... divergências nesses últimos dias.


Seus olhos faiscaram quando ele riu, compreendendo.


- Agora tudo faz sentido. Eu me perguntava por que você estava agindo de maneira diferente perto dele. Ren pode ser... difícil quando quer.

- Teimoso, o senhor quer dizer. E exigente. E... -
Olhei pela janela para as luzes noturnas da cidade e murmurei:
- Muitas outras coisas.

Ele se inclinou para a frente e tomou uma de minhas mãos nas dele.


- Entendo. Não se preocupe, Srta. Kelsey. Estou

surpreso que tenham realizado tanto em tão pouco tempo. Já é
bastante difícil empreender uma jornada perigosa, ainda mais
com alguém que você está começando a conhecer e em quem
não sabe se pode confiar. Mesmo os melhores companheiros
podem ter desentendimentos quando sofrem uma pressão
como a que vocês dois sofreram. Tenho certeza de que se trata
apenas de um contratempo momentâneo em sua amizade.

Nossa amizade não era exatamente a questão. Ainda

assim, as palavras do Sr. Kadam me confortaram. Quem sabe
agora que estávamos fora daquela situação pudéssemos
conversar sobre o assunto e usar o bom senso. Talvez eu
pudesse ser mais tolerante. Afinal, Ren estava apenas começando a voltar a se comunicar com as pessoas. Se eu pudesse ao menos explicar para ele como o mundo funcionava, tinha certeza de que entenderia e seria capaz de nos ver como amigos.

- É extraordinário que ele tenha conseguido manter a forma humana durante todo o tempo em que estiveram lá - prosseguiu o Sr. Kadam. - Talvez tenha algo a ver com o tempo parar.


- O senhor acha mesmo que o tempo parou em Kishkindha?

- Talvez o tempo apenas passe de forma diferente naquele lugar, mas o que eu sei é que vocês ficaram fora menos de um dia.

Assenti, concordando com sua avaliação. Sentindo-me

melhor com a conversa e feliz por ter contado a verdade ao Sr.
Kadam, avisei que ia ler um pouco e depois dormiria bastante.
Ele me pediu que colocasse toda a roupa na sacola da
lavanderia para que ela fosse lavada durante a noite.

Voltando para a suíte, comecei a reunir minhas coisas.

Coloquei as roupas e também os tênis na sacola. Além disso,
com cuidado, abri minha colcha, tirei o Fruto Dourado e o
enrolei em uma toalha pequena. Apanhei a colcha imunda e a
enfiei na sacola da lavanderia também.

Depois de colocar a sacola diante da porta, pulei na cama imensa, me deliciando nos lençóis macios. Afundei nos travesseiros de pena de ganso e logo mergulhei em um sono profundo e relaxante.


Na manhã seguinte, sorri ao acordar e estiquei pernas e

braços até onde podia, e ainda assim eles não alcançaram as
extremidades da cama. Escovei novamente o cabelo e o prendi
em um rabo de cavalo frouxo.

O Sr. Kadam estava tomando seu café da manhã: fritada de batata, torrada e omelete. Juntei-me a ele, beberiquei meu suco de laranja e tagarelei sobre como era empolgante voltar para casa.


Nossa roupa foi devolvida lavada, passada e dobrada,

como se fosse nova. Peguei algumas peças na pilha, para vestir,
e transferi todo o restante para a bolsa. Quando cheguei à
colcha, me detive por um momento para aspirar o aroma de
limão do sabão utilizado e a inspecionei cuidadosamente à pro-
cura de danos. Embora estivesse velha e desbotada, estava
resistindo muito bem. Disse um obrigada silencioso à minha avó.

Coloquei a colcha dobrada no fundo da mochila e

guardei a gada na lateral, na posição vertical. Na noite anterior,
eu havia apanhado a gada para limpar e ficara surpresa ao
encontrá-la reluzente e imaculada, como se nunca tivesse sido
usada. Em seguida, posicionei Fanindra em cima da colcha e
coloquei o Fruto Dourado bem no meio de suas dobras. Então
fechei o zíper, deixando apenas uma pequena abertura para
que Fanindra pudesse respirar. Eu não sabia se ela respirava de
fato, mas isso me deixava mais tranquila.

Logo chegou a hora de partir. Eu me sentia alegre,

renovada e perfeitamente satisfeita até pararmos no
acostamento da estrada - então o vi, e ele não era um tigre. Ren
estava à nossa espera, usando sua habitual roupa branca e
ostentando um grande sorriso. O Sr. Kadam foi até ele e o
abraçou. Eu podia ouvir suas vozes, mas não conseguia
entender o que diziam. Mas escutei o Sr. Kadam rir bem alto ao
dar tapinhas nas costas de Ren. Estava evidentemente muito
feliz por alguma razão.

Então Ren se transformou em tigre e saltou para o

carro. Ele se enroscou para tirar um cochilo no banco de trás
enquanto eu claramente o ignorava e escolhia um livro para
me manter ocupada durante a longa viagem.

O Sr. Kadam explicou que precisaríamos parar em

outro hotel no caminho e que viajaríamos o dia todo. Eu lhe
disse que não havia problema para mim. Tinha muitos livros
para ler, pois o Sr. Kadam havia comprado alguns romances na
livraria do hotel, assim como um guia de viagem sobre a Índia.

Cochilei intermitentemente entre os capítulos. Terminei

o primeiro romance no começo da tarde e estava chegando ao
fim do segundo quando entramos numa cidade. O carro estava
silencioso. O Sr. Kadam parecia animado, mas não partilhava
essa alegria, e Ren dormiu o dia todo.

Depois que o sol se pôs, o Sr. Kadam anunciou que

estávamos perto de nosso destino. Ele indicou que me deixaria
lá primeiro e mais tarde jantaríamos no restaurante do hotel
para comemorar.

Em meu novo quarto de hotel, fiquei triste por ter na

bolsa apenas jeans e camisetas. Depois de revolver os mesmos
três itens pela terceira vez, ouvi uma batida na porta e fui até lá
de roupão e chinelos. Uma camareira me entregou uma sacola
de roupa e uma caixa. Tentei falar com ela, mas a mulher não
entendia inglês. Ela só ficava dizendo "Kadam".

Peguei as duas coisas, agradeci, abri o fecho da sacola e

encontrei um vestido esplêndido ali dentro. O corpete justo de
veludo preto tinha o decote em coração e as manguinhas curtas
e a saia eram feitas de tafetá perolado cor de ameixa. O corte
justo do vestido me deixava com mais curvas do que eu tinha
de fato. Ele se estreitava até os quadris e se ajustava sobre a saia
cor de ameixa na altura dos joelhos. Um cinto, feito do mesmo
material macio da saia, era amarrado do lado e preso com um
broche cintilante que realçava minha cintura.

O vestido tinha um belo corte, era forrado e

provavelmente caro. Quando eu me movimentava na luz, o
tecido tremeluzia, refletindo várias tonalidades de púrpura. Eu
nunca usara nada tão bonito, a não ser o lindo vestido indiano
azul que eu tinha na casa. Abri a caixa e encontrei um par de
sandálias

pretas altas de tiras com fivelas de diamante e uma

presilha de cabelo com um lírio combinando. Um vestido como
aquele exigia maquiagem, então fui até o banheiro e terminei
de me arrumar. Prendi a presilha com o lírio no cabelo, logo
acima da orelha esquerda, e penteei os fios ondulados com os
dedos. Por fim me calcei e fiquei esperando o Sr. Kadam.

Não demorou para que ele batesse à minha porta e me

olhasse com admiração paternal.

- Srta. Kelsey, está linda!


Rodopiei a saia para ele.


- O vestido é lindo. Se estou bem, é graças ao senhor,

que escolheu algo fabuloso. Obrigada. O senhor deve ter
percebido que, para variar, eu queria me sentir uma dama e
não uma garota em um acampamento.

Ele assentiu. Seus olhos pareciam pensativos, mas

sorriu, estendeu o braço e me acompanhou até o elevador do
hotel. Descemos rindo, enquanto eu lhe descrevia a cena de
Ren correndo com uns 20 macacos presos ao pelo.

Entramos em um restaurante à luz de velas com toalhas

de mesa e guardanapos de linho branco. A hostess nos
conduziu a uma área com janelas que iam do chão ao teto e
cuja vista dava para as luzes da cidade abaixo. Somente uma
das mesas dessa área do restaurante estava ocupada. Um
homem jantava sozinho. Ele estava de costas para nós,
apreciando as luzes.

O Sr. Kadam fez um reverência e disse:


- Srta. Kelsey, vou deixá-la com sua companhia para

o jantar. Boa refeição.

Em seguida deixou o restaurante.


- Sr. Kadam, espere. Não estou entendendo.


Companhia para o jantar? Do que ele está falando?


Nesse momento, uma voz grave e muito familiar disse

atrás de mim:

- Oi, Kells.


Fiquei imobilizada e meu coração despencou até o

estômago, causando um alvoroço ali. Alguns segundos se
passaram. Ou foram alguns minutos? Eu não saberia dizer.

Ouvi um suspiro de frustração.


- Você continua sem falar comigo? Vire-se, por favor.


Uma mão quente segurou meu cotovelo, me forçando

delicadamente a virar. Ergui os olhos e arquejei de leve. Ele
estava maravilhoso! Tão lindo que dava vontade de chorar.

- Ren.


Ele sorriu.


- Quem mais?


Vestia um elegante terno preto e tinha cortado o cabelo.

Os fios pretos e lustrosos estavam jogados para trás em
camadas desalinhadas, com um leve cacheado na nuca. A
camisa branca que ele usava estava desabotoada no colarinho,
realçando a pele de bronze dourada e o brilhante sorriso
branco, tornando-o letal para qualquer mulher que cruzasse o
seu caminho. Gemi por dentro.

Ele parece... parece uma mistura de James Bond,

Antonio Banderas e Brad Pitt.

Decidi que a coisa mais segura a fazer era olhar para

seus sapatos. Sapatos eram chatos, certo? Não tinham nenhum
atrativo. Ah. Muito melhor. Seus sapatos eram bonitos, é claro -
pretos e bem engraxados, exatamente como eu esperaria. Sorri
ironicamente quando percebi que essa era a primeira vez que
via Ren usar sapatos.

Ele segurou meu queixo e me fez olhar para o seu rosto.

O idiota. Então foi sua vez de me avaliar. Ele me olhou de cima
a baixo. E não foi um olhar rápido. Foi daqueles que envolvem
tudo lentamente. O tipo de lentidão que faz o rosto de uma
garota ficar quente. Fiquei com raiva de mim mesma por corar
e olhei para ele, furiosa.

Nervosa e impaciente, perguntei:


- Já terminou?

- Quase.

Ele agora fitava minhas sandálias altas.


- Então se apresse!


Seus olhos voltaram vagarosamente ao meu rosto e ele

sorriu para mim, com aprovação.

- Kelsey, quando um homem está com uma mulher

bonita, ele precisa seguir seu próprio ritmo.

Ele passou minha mão pelo seu braço e conduziu-me

até uma mesa lindamente iluminada. Então puxou a cadeira
para que eu me sentasse.

Fiquei ali de pé me perguntando se podia ir correndo até a saída mais próxima. Sandálias idiotas. Eu jamais conseguiria.


Ele se inclinou e sussurrou em meu ouvido:


- Eu sei o que você está pensando e não vou deixá-la

escapar de novo. Você pode se sentar e jantar comigo como
uma namorada normal - ele sorriu diante da palavra utilizada
- ou - fez uma pausa, pensativo, e ameaçou: - pode se sentar
no meu colo enquanto eu a obrigo a comer.
- Você não ousaria - sibilei. - Você é cavalheiro demais para me forçar a fazer qualquer coisa. Isso é um blefe, Sr. Permissão.
- Até um cavalheiro tem seus limites. De um jeito ou
de outro, vamos ter uma conversa civilizada. Estou torcendo
para ter que lhe dar comida no meu colo, mas a escolha é sua.

Ele se endireitou e esperou. Desabei rudemente na cadeira e a arrastei até a mesa, fazendo barulho. Ele riu baixinho e se acomodou na cadeira diante da minha. Senti culpa por causa do vestido e rearrumei a saia, para que não amarrotasse.


Olhei-o com raiva quando a garçonete se aproximou.

Ela pousou meu cardápio rapidamente na mesa mas se
demorou entregando o cardápio a Ren. Parou perto do ombro
dele e apontou várias opções enquanto se inclinava sobre seu
braço. Depois que ela se foi, revirei os olhos, enojada.

Ren examinou o cardápio devagar e com atenção,

parecendo estar se divertindo muito. Eu nem peguei o meu
cardápio na mesa. Ele me lançava olhares significativos
enquanto eu me mantinha ali em silêncio, tentando evitar o
contato visual. Quando ela voltou, falou com ele brevemente e
gesticulou em minha direção.

Sorri e, em uma voz melosa, disse:


- Quero o que me fizer sair daqui mais depressa. Como uma salada.


Ren me devolveu um sorriso benevolente e recitou o

que parecia um banquete, pedido que a garçonete ficou mais
do que feliz em anotar. O tempo todo ela o tocava e ria com ele.
O que achei muito, muito irritante.

Quando ela se foi, ele se reclinou na cadeira e bebeu água.


Fui a primeira a romper o silêncio, sussurrando:


- Não sei o que está aprontando, mas só lhe restam

mais uns dois minutos. Portanto espero que você tenha pedido
o steak tartare, Tigre, que é de carne crua.

Ele riu, travesso.


- Veremos, Kells. Veremos.

- Está bem. Para mim, tanto faz. Mal posso esperar
para ver o que vai acontecer quando um tigre branco sair
correndo por este belo restaurante, espalhando o caos. Talvez
eles percam uma das estrelas por colocarem a vida dos clientes
em perigo. Talvez sua nova amiguinha, a garçonete, fuja cor-
rendo e gritando.

Sorri com esse pensamento. Ren fingiu estar chocado.


- Kelsey! Você está com ciúmes?


Ri com desdém, de uma forma muito pouco feminina, e retruquei:


- Não! É claro que não.


Ele sorriu. Nervosa, eu brincava com o guardanapo de tecido.


- Não posso acreditar que você tenha convencido o

Sr. Kadam a tomar parte nisso. É um absurdo.

Ele abriu o guardanapo e piscou para a garçonete

quando ela veio nos trazer uma cesta de pães.

Depois que ela se afastou, reclamei:


- Você está piscando para ela? E inacreditável!


Ele riu baixinho e pegou um pãozinho fumegante,

passou manteiga e o colocou no meu prato.

- Coma, Kelsey - ordenou ele, e então se debruçou sobre a mesa. - A menos que esteja reconsiderando apreciar a vista no meu colo.


Zangada, parti o pãozinho e engoli alguns pedaços

antes de perceber como era delicioso - a massa leve e macia,
com pedacinhos de casca de laranja. Eu teria comido outro,
mas não daria a ele essa satisfação.

A garçonete retornou logo depois com dois ajudantes e

eles foram colocando prato após prato em nossa mesa. De fato,
ele havia pedido um banquete. Não havia um só centímetro
vazio na mesa. Ele pegou o meu prato e o encheu com uma
seleção aromática, de dar água na boca. Depois de colocá-lo
diante de mim, começou a encher o próprio prato. Quando
terminou, olhou para mim e arqueou uma sobrancelha.

Debrucei-me e sussurrei, furiosa:


- Eu não vou me sentar no seu colo, portanto não

alimente esperanças.

Ele ficou esperando até eu dar algumas garfadas.

Espetei um pedaço de peixe com crosta de macadâmia e disse:

- Xi. O tempo acabou, não é? O relógio é implacável.

Você deve estar suando, hein? Quer dizer, pode se transformar
a qualquer segundo.

Ele se limitou a dar uma garfada no carneiro ao curry e

em seguida no arroz de açafrão, e ficou ali mastigando como se
tivesse todo o tempo do mundo.

Eu o observei com atenção por dois minutos completos

e então dobrei o guardanapo.

- O.k., eu desisto. Por que você está todo presunçoso

e confiante? Quando vai me contar o que está acontecendo?

Ele limpou a boca com cuidado e bebeu um gole de água.


- O que está acontecendo, minha prema, é que a maldição foi suspensa.


Fiquei boquiaberta.


- O quê? Se ela foi suspensa, por que você ficou

como tigre nos últimos dois dias?
- Bem, para ser exato, a maldição não se extinguiu completamente. Parece que me foi concedida uma suspensão parcial.
- Parcial? Em que sentido?
- Um certo número de horas por dia. Seis horas, para ser exato.

Recitei a profecia em minha mente e lembrei que havia

quatro lados no monólito, e quatro vezes seis eram...

- Vinte e quatro.


Ele fez uma pausa.


- Vinte e quatro o quê?

- Bem, seis horas fazem sentido porque são quatro os presentes a serem obtidos para Durga e quatro os lados do monólito. Nós só completamos uma das tarefas, então você ganha apenas seis horas.

Ele sorriu.


- Então acho que tenho que mantê-la por aqui, pelo

menos até que as outras tarefas estejam finalizadas.

Bufei.


- Não se anime, Tarzan. Pode ser que eu não precise

estar presente para as outras tarefas. Agora que é humano boa
parte do tempo, você e Kishan serão capazes de resolver esse
problema sozinhos, tenho certeza.

Ele inclinou a cabeça e estreitou os olhos.


- Não subestime seu nível de... envolvimento, Kelsey.

Mesmo que você não fosse mais necessária para quebrar a
maldição, acha que eu simplesmente a deixaria ir? Que a
deixaria sair da minha vida sem nem mesmo olhar para trás?

Comecei a brincar nervosamente com minha comida e

resolvi não dizer nada. Aquilo era exatamente o que eu estava
planejando fazer.

Alguma coisa havia mudado. O Ren magoado e confuso

que me fizera sentir culpa por rejeitá-lo em Kishkindha tinha
desaparecido. Agora ele parecia extremamente confiante, quase
arrogante, e muito seguro de si.

Ele mantinha os olhos no meu rosto enquanto comia.

Quando terminou toda a comida que havia em seu prato,
tornou a enchê-lo, pegando pelo menos metade de cada
travessa na mesa.

Eu me sentia constrangida sob o seu olhar. Ele parecia o

gato com o canário ou o aluno com todas as respostas do teste
antes mesmo de o professor anunciá-lo para a turma. Estava
irritantemente satisfeito consigo mesmo e eu intuía que havia
muito mais por trás de sua recente confiança do que apenas ter
mais tempo como humano.

Ele aparentava saber todos os meus pensamentos e sentimentos secretos. Sua confiança me incomodava. Eu me sentia encurralada.


- A resposta a essa pergunta é... não vou. Seu lugar é ao meu lado. O que me leva à conversa que eu queria ter com você.

- Qual é o meu lugar, cabe a mim decidir, e, embora eu possa ouvir o que você tem a dizer, isso não significa que irei concordar.
- É justo. - Ren empurrou o prato vazio para o lado.
- Temos algumas questões pendentes para resolver.
- Se você está se referindo às outras tarefas que
devemos cumprir, já estou ciente disso.

- Não estou falando disso. Estou falando de nós.

- Nós?

Coloquei as mãos debaixo da mesa e limpei as palmas

suadas no guardanapo.

- Acho que algumas coisas ficaram por dizer e que já é hora de serem discutidas.

- Não estou escondendo nada de você, se é isso que está dizendo.
- Está, sim.
- Não. Não estou.
- Você está se recusando a reconhecer o que se passou entre nós?
- Não estou me recusando a nada. Não tente pôr
palavras em minha boca.
- Não estou fazendo isso. Só estou tentando convencer uma mulher teimosa a admitir que sente alguma coisa por mim.
- Se eu sentisse algo por você, você seria o primeiro a saber.
- Está dizendo que não sente nada por mim?
- Não é isso que estou dizendo.
- Então o que você está dizendo?
- Eu estou dizendo... não estou dizendo nada! - explodi.

Ren sorriu e estreitou os olhos.


Se ele continuasse com esse interrogatório, provavelmente ia conseguir me pegar em uma mentira. Não sou muito boa nisso.


Ele se recostou na cadeira.


- Está bem. Vou tirá-la da berlinda por ora, mas

iremos falar sobre isso mais tarde. Os tigres são incansáveis
uma vez que se propõem a alguma coisa. Você não vai
conseguir me evitar para sempre.
- Não crie expectativas - repliquei. - Todo herói tem
a sua criptonita e você não me intimida.

Torci o guardanapo no colo enquanto ele observava

cada movimento meu com seus olhos escrutinadores. Eu me
sentia despida, como se ele pudesse ver dentro do meu coração.

A garçonete voltou e Ren sorriu quando ela lhe

estendeu um cardápio menor, provavelmente de sobremesas.
Ela se inclinou sobre ele enquanto eu batia o pé, de frustração.
Ele a ouvia com atenção. Então os dois riram outra vez.

Ele falou baixinho, gesticulando em minha direção, e

ela olhou para mim, deu uma risadinha e recolheu os pratos.
Ele pegou a carteira e entregou-lhe um cartão de crédito. A
garçonete pôs a mão em seu braço, para fazer outra pergunta,
e não pude mais me segurar. Eu o chutei por baixo da mesa. Ele
nem piscou ou olhou para mim. Apenas estendeu o braço sobre
a mesa, tomou a minha mão na dele e ficou acariciando-a
distraidamente com o polegar enquanto respondia à pergunta
dela. Era como se meu chute tivesse sido um tapinha de amor.
Só serviu para deixá-lo mais feliz.

Quando ela se afastou, encarei-o com os olhos

estreitados e disse:

- Como foi que você conseguiu aquele cartão e o

que você falou com ela sobre mim?
- O Sr. Kadam me deu o cartão e eu disse a ela que
aproveitaríamos a sobremesa... mais tarde.

Eu ri com sarcasmo.


- Você vai comer a sobremesa mais tarde sozinho,

porque eu não vou comer mais nada com você.

Ele se inclinou sobre a mesa à luz das velas e disse:


- Quem falou alguma coisa sobre comer, Kelsey?


Ele só pode estar brincando! Mas parecia totalmente

sério. Ótimo! Lá vem o frio na barriga outra vez.

- Pare de me olhar assim.

- Assim como?
- Como se estivesse me caçando. Eu não sou um antílope.

Ele riu.


- Ah, mas essa perseguição seria perfeita e você seria uma presa muito suculenta.

- Pare com isso.
- Estou deixando você nervosa?
- Pode-se dizer que sim.

Levantei-me bruscamente enquanto ele assinava o

recibo e comecei a me dirigir para a porta. Em um instante ele
estava ao meu lado falando no meu ouvido:

- Não vou deixar você escapar, lembra? Agora, comporte-se como uma boa namorada e me deixe acompanhá-la até em casa. É o mínimo que pode fazer, já que não quis conversar comigo.


Ren me pegou pelo cotovelo e começou a me conduzir

para a saída do restaurante. Pensar que ele ia me acompanhar
até o quarto e que provavelmente tentaria me beijar provocava
arrepios em minhas costas. Por uma questão de autopreservação, eu precisava fugir. Cada minuto que passava com ele só me fazia querê-lo mais. Como apenas irritá-lo não estava surtindo efeito, eu ia ter que pegar mais pesado.

Aparentemente, eu não precisava que ele deixasse de

gostar de mim, mas que me odiasse. Várias vezes me disseram
que eu era o tipo de garota "tudo ou nada". Se eu queria afastá-
lo, teria que fazer isso de maneira tão drástica que não
houvesse absolutamente nenhuma chance de ele voltar.

Tentei soltar meu cotovelo de sua mão, mas ele apenas a

segurou com mais força.

- Pare de usar sua força de tigre em mim - grunhi para ele.

- Estou machucando você?
- Não, mas eu não sou uma marionete para ser arrastada por aí.

Ele deslizou os dedos pelo meu braço e segurou a minha mão.


- Se você for boazinha, eu serei também.

- Ótimo.

Ele sorriu.


- Ótimo.

- Ótimo! - sibilei de volta.

Andamos até o elevador e ele apertou o botão do meu andar.


- Meu quarto fica no mesmo andar - explicou Ren.


Franzi a testa e lhe dirigi um sorriso torto e só um pouquinho cruel.


- E como é que você vai fazer de manhã, Tigre? Não devia meter o Sr. Kadam em encrenca por ter um... animal de estimação tão grande.


Ren devolveu meu sarcasmo quando me acompanhava até a porta.


- Está preocupada comigo, Kells? Não precisa. Eu vou ficar bem.

- Acho que nem é preciso perguntar como você
sabia qual era a minha porta, hein, Faro de Tigre?

Ele me olhou de uma forma que me fez virar geléia por

dentro. Voltei-me de costas, mas a consciência de sua presença
era forte demais e eu podia senti-lo atrás de mim, muito perto,
observando, esperando.

Coloquei a chave na fechadura e ele se aproximou.

Minha mão começou a tremer e eu não conseguia girar a
chave. Ele pegou minha mão e me fez virá-la delicadamente.
Em seguida, apoiou as mãos na porta, de ambos os lados da
minha cabeça, e se inclinou para mim, me prendendo contra a
porta. Eu tremia como um coelhinho preso nas garras de um
lobo. O lobo chegou ainda mais perto. Curvou a cabeça e
começou a acariciar meu rosto com o nariz. O problema era
que... eu queria que o lobo me devorasse.

Comecei a me perder na névoa espessa que me envolvia

todas as vezes que Ren punha as mãos em mim.

E a história de pedir permissão?, pensei enquanto sentia

todas as minhas defesas caírem por terra.

- Eu sempre sei onde você está, Kelsey. Você cheira a

pêssego com creme - sussurrou ele, terno.

Estremeci e pus a mão em seu peito para empurrá-lo,

mas acabei agarrando sua camisa, desesperada. Seus beijos
foram abrindo uma trilha a partir da orelha, descendo pelo
rosto, e então ele foi depositando beijos suaves ao longo do arco
do meu pescoço. Eu o puxei para mais perto e virei a cabeça
para que ele pudesse me beijar de verdade. Ele sorriu e ignorou
o meu convite, passando então à outra orelha. Mordeu o lóbulo
de leve, passou para a clavícula e seguiu sua trilha de beijos até
o ombro. Depois ergueu a cabeça e trouxe os lábios a um
centímetro dos meus, e o único pensamento em minha cabeça
era... mais.

Com um sorriso arrasador, ele se afastou, relutante, e correu os dedos levemente pelo meu cabelo.


- Esqueci de dizer que você está linda hoje.


Ele tornou a sorrir, se virou e afastou-se pelo corredor.


Minúsculos tremores vibravam pelos meus braços e

minhas pernas, como aqueles que se seguem a um terremoto.
Eu não conseguia firmar a mão enquanto girava a chave. Abri
bruscamente a porta do quarto escuro, entrei e, trêmula,
fechei-a. Encostando-me nela, deixei a escuridão me envolver.

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