quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Capítulo 10 - Meninos obedientes


  A porta traseira da perua foi aberta e a luz forte da tarde penetrou no interior
do veículo, cegando Chumbinho por um instante. Quando sua vista acostumou-se
à claridade, o menino viu-se no pátio interno de uma espécie de pavilhão bem
grande, parecendo uma fábrica.

— Saia! — ordenou uma voz.

  Era o mesmo grandalhão animalesco que o havia trazido até ali. Outros dois
gorilas do mesmo estilo aproximaram-se. Um deles colocou um bracelete de
esparadrapo no pulso esquerdo do menino. No bracelete estava escrito D.O.20.
  Chumbinho estranhou aquelas iniciais D.O., mas sorriu por dentro ao ler o
número 20: sua hipótese se confirmava. Se haviam sido seqüestrados três
estudantes de nove diferentes colégios, mais o Bronca e mais ele, Chumbinho,
seu número deveria ser 29. Ah!... mas agora ele estava entendendo por que tinha
recebido o bracelete com o número 20!... Eram só vinte os sequestrados. Os
outros nove que faltavam, não faltavam.
  E os outros Karas? Teria algum deles encontrado a mensagem em código que
ele deixara no banheiro? Teriam entendido o e Chumbinho tentara dizer com
tanta pressa?

— Você agora é o Vinte — falou um dos grandalhões dirigindo-se a ele. —
Sempre que chamarem pelo Vinte, você atende. Certo?

— Sim, senhor.

— Venha comigo.

  Chumbinho seguiu o grandalhão docilmente, fazendo ainda sua carinha de
estúpido. Até ali, a representação ia funcionando direito. Mas até quando
funcionaria? E se aqueles brutamontes descobrissem a farsa que o menino estava
representando? O que fariam com ele?
  O menino seguiu o grandalhão, entrando no pavilhão da tal fábrica e
atravessando um corredor comprido. Tudo estava muito limpo e arrumado.
Parecia até um hospital.
  Chegaram a uma sala ampla, cheia de arquivos. Chumbinho viu-se frente a
uma secretária que nem olhou para o seu lado. O grandalhão entregou à mulher
um papel e ela pôs-se a datilografar furiosamente uma ficha. Nada perguntou a
Chumbinho, mas, por via das dúvidas, o menino continuou imóvel e apalermado.
  Por uma porta lateral entraram em um vestiário onde havia prateleiras cheias
de roupas. O brutamontes estendeu-lhe um macacão azul, sapatos, meias, cueca
e mandou que ele se trocasse.
  Chumbinho obedeceu à ordem. O macacão e os sapatos serviam direitinho!
  "Que gente mais organizada!", pensou o menino. "Já sabiam até o número
que eu calço e que eu visto!"
  No peito e nas costas do macacão, estava bordado o número 20 depois das
letras D. O.
  "Outra vez o D.O. ... O que será isso?", cismou o garoto, muito mais curioso e
excitado com o que estava conseguindo descobrir do que assustado, como
deveria ficar qualquer garotinho da idade dele. Mas ele agora era um Kara, e um
Kara não tinha o direito de ter medo.

* * *

  Vestido e fichado, o número 20 foi levado até uma sala em cuja porta estava
escrito: D.O. — Testes.
  A sala era muito grande. Um salão, como o de uma academia de ginástica.
Lá estavam outros dezenove jovens, todos numerados e com as letras D.O. às
costas.
  Estava também o Bronca, com o número 19 bordado no macacão.
  "O Bronca! Encontrei o Bronca!", pensou Chumbinho, animado com os
progressos na investigação, mas sem saber para que serviriam aquelas
descobertas, com ele preso, numerado e fortemente vigiado, igualzinho aos
outros.
  Chumbinho olhou fixamente para o colega do Elite, mas Bronca não deu o
menor sinal de reconhecê-lo. Parecia um idiota, e não estava fingindo como
Chumbinho. Bronca estava idiotizado mesmo, como idiotizados estavam todos os
outros rapazes e moças de macacão azul numerado.
  Um garoto, com o número 6, estava caído no chão, no meio do salão de
testes. Estava imóvel, com o rosto voltado para o chão.
  Um homem de avental branco dirigiu-se a uma espécie de televisor que
havia no fundo do salão. Apertou algumas teclas e o vídeo iluminou-se,
mostrando a silhueta de alguém.

— Resultado do teste de eficiência 141/06, Doutor Q.I. — informou o homem
de avental branco, falando para a silhueta.

— Pode relatar — ordenou uma voz metálica, vinda do vídeo, certamente
deformada por alguma espécie de filtro de som.

Chumbinho arrepiou-se:
  "A voz deformada, a figura em silhueta... Este deve ser o chefão da coisa
toda. E é claro que não quer ser reconhecido!" O homem do avental branco
começou:

— Primeira conclusão: a Droga da Obediência...

  "Droga da Obediência!", espantou-se Chumbinho. "Então é isso que
significam as iniciais D.O.?”

— ... a Droga da Obediência aumenta o desempenho físico, sem limites,
Doutor Q.I. Precisamos estabelecer, portanto, quais os níveis de esforço
suportáveis pelas cobaias. A cobaia número 6 repetiu a ordem sem demonstrar
cansaço nem desejo de parar.

— Até quando? — perguntou a voz metálica vinda do vídeo.

—Até o limite da ruptura física, Doutor Q.I. Perdemos a cobaia número 6.

— Muito bem. Procedam com a cobaia morta do jeito que planejamos.

— Será feito, Doutor Q.I.

— De que modo foi usada a droga?

— Em comprimidos, Doutor Q.I. Mas o efeito da Droga da Obediência é o
mesmo, qualquer que seja a forma de usá-la. Já experimentamos em pó, em
comprimidos, em líquido, injetada, cheirada, aspirada e até fumada, na forma de
cigarros. E os resultados foram sempre bons.

— Ótimo. Quero a repetição do teste 141 com a cobaia número 11. A ordem
deve ser suspensa antes de completar-se o período de tempo em que perdemos a
número 6. Precisamos saber até onde chega a eficiência da Droga da
Obediência sem a perda da cobaia. Quero novo relatório amanhã, bem cedo.

  A tela apagou-se fazendo desaparecer a sinistra silhueta, que falava da morte
de um menino como se falasse de números e frações.
  Horror! Chumbinho mal podia acreditar no que estava presenciando. Temeu
até que sua expressão denunciasse o que lhe passava pelo pensamento. Aquela
gente usava vidas humanas como cobaias e ninguém parecia preocupado com a
morte estúpida de um garoto que, talvez há poucos dias, era um alegre estudante
de algum colégio de São Paulo!
  À sua volta, todas as outras cobaias humanas estavam impassíveis, como se
nada estivesse acontecendo.
  Chumbinho viu um garoto com o número 11 ser chamado para o centro da
sala.De repente, tudo aquilo misturou-se em sua mente, sentiu-se enjoar,
entontecer... Chumbinho desmaiou.

* * *

— Só pode ter sido isso, Doutor Q.I. A cobaia número 20 não foi alimentada
depois que foi trazida para cá. Por isso desmaiou. Já o alimentamos com soro e o
eletrocardiograma dele está normal. Deve acordar em poucos minutos.

  Aquela voz entrou pelos ouvidos do Chumbinho como num sonho. O menino
percebeu que estava deitado, e fez um esforço para não abrir os olhos até colocar
suas idéias em ordem.
  Diabo! Ele tinha desmaiado e quase punha tudo a perder. Por sorte a voz que
ouvira tinha encontrado uma desculpa perfeita para o desmaio. Por enquanto eles
desconheciam que Chumbinho não estava sob o efeito da tal Droga da
Obediência.
  Já recomposto, o menino abriu os olhos. Estava em uma enfermaria, deitado
e com uma agulha em sua veia do braço esquerdo. A agulha estava ligada a um
canudinho que trazia o soro alimentar de um frasco dependurado ao seu lado.
  O homem que falava, provavelmente um médico, olhava para a tela de um
televisor igual ao que o menino vira na sala de testes. Da tela vinha a mesma voz
metálica:

— Idiotas! Vocês sabem muito bem que eu não admito falhas. As cobaias
devem ser alimentadas regularmente, conforme o planejado. Sob o efeito da
Droga da Obediência, nenhuma cobaia manifesta desejo algum. Se não a
alimentarem, a cobaia pode sofrer danos. Que isso não se repita!

— Desculpe, Doutor Q.I....

  A silhueta apagou-se da tela antes que o médico pudesse completar as
desculpas.

***

  Chumbinho foi levado a um refeitório onde já se encontravam as outras
dezoito cobaias. O médico o havia examinado e devia ter concluído que tudo ia
bem com a cobaia número 20. Assim, o menino foi normalmente reintegrado ao
grupo.
  Comeu quando recebeu a ordem para tanto e procurou fazer tudo do jeito que
faziam as outras cobaias humanas.
  Chumbinho olhava para a cadeira vazia onde provavelmente costumava
sentar-se o pobre menino número 6, quando um funcionário colocou alguma
coisa à sua frente.
  Era um vidrinho com outra dose da Droga da Obediência.
  "Quer dizer que o efeito da droga é passageiro?", pensou Chumbinho. "Vai ver
todas as cobaias têm de tomar um reforço da droga de tempos em tempos. Era
quase meio-dia quando eu fingi tomar a primeira dose. Agora deve ser mais ou
menos oito da noite. Então o efeito dura cerca de oito horas... Quer dizer que
tenho oito horas para agir..."
  Uma idéia começou a crescer na cabeça do Chumbinho, enquanto ele fingia
tomar a droga e a escondia dentro do macacão azul.
  "Todos pensam que eu estou idiotizado como os outros. Por isso ninguém vai
ficar me vigiando. Ótimo! Agora é só esperar que as luzes se apaguem. Tenho de
saber mais. Preciso conhecer melhor este lugar maldito!"
Esperou um pouco e, quando todas as cobaias adormeceram, esgueirou-se
silenciosamente para fora da cama.

5 comentários:

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!