quinta-feira, 6 de março de 2014
Capítulo 10 - Capangas
Kishan se afastou para dar uma boa olhada em mim.
— Senti saudade. Como meu irmão idiota está tratando você?
— Em um sussurro fingido, ele perguntou: — Você precisou usar o
repelente de tigres?
Eu ri.
— Ren está me tratando muito bem, apesar de eu ter dado a
ele um presente de dia dos namorados muito mixuruca.
— Ah, ele não merece mesmo nenhum presente. O que foi que
ele deu a você? Ergui a mão para tocar um dos brincos.
— Estes. Mas são muito sofisticados para mim.
Kishan estendeu a mão e tocou levemente o brinco. Seu olhar
lascivo de pirata raptor de mulheres se dissolveu num terno sorriso
que ergueu o canto de sua boca.
— Mamãe teria aprovado — disse ele baixinho.
— Estes brincos foram da sua mãe? — perguntei a Ren, que
assentiu. — Ren, por que você não me disse?
— Não queria que se sentisse pressionada a usá-los caso não
gostasse deles — respondeu ele frivolamente. — Estão um pouco fora
de moda.
— Você devia ter me contado que eram da sua mãe. —
Deslizei os braços por seu pescoço e o beijei. — Obrigada por me dar
algo tão precioso para você.
Ren me apertou mais e beijou meu rosto.
Ouvi um suspiro dramático às nossas costas.
— Argh, acho que o prefiro chorão e desesperado. Isso é tão
meloso.
Ren grunhiu baixinho.
— Quem foi que o convidou?
— Você.
— Não para vir aqui. Como nos encontrou?
Desembarcamos em Salem e encontrei o convite para o baile
na casa. Pensei que, se havia uma festa, eu devia estar nela. Mas acho
que todas as garotas bonitas já têm par. Talvez... eu possa pegar a sua
emprestada.
Kishan estendeu a mão, mas Ren se interpôs à minha frente e
ameaçou:
— Por cima do meu cadáver.
Kishan arregaçou as mangas do suéter.
— Quando quiser, irmão. Vamos ver como se sai, Sr.
Romântico.
Hora de intervir. Em minha voz mais doce, eu disse:
— Kishan, estamos bem no meio de um encontro e, embora eu
esteja muito feliz em vê-lo, será que você se importaria de ir para casa
agora? Como pode ver, é mais uma coisa para casais do que uma festa.
Não vamos demorar e lá em casa tem ingredientes para preparar
sanduíches e uma bandeja gigante de biscoitos. Você se importa? Por
favor?
— Muito bem. Eu vou. Mas só porque você está pedindo.
— E você está pedindo outra coisa — retrucou Ren.
Kishan deu um piparote na orelha de Ren e zombou:
— Isso mesmo. Vamos ver se você pode levar essa coisa para
mim mais tarde. Tchau, Kelsey.
Tive a forte sensação de que minha mão em seu braço foi a
única coisa que segurou Ren e o impediu de ir atrás do irmão. Ele
ficou observando até Kishan desaparecer de seu campo de visão, mas,
mesmo depois, pareceu não relaxat Tentei trazer sua atenção de volta
para mim.
— Ren.
— Ele é muito abusado. Talvez tenha sido um erro chamá-lo
aqui.
— Você confia nele?
— Depende. Confio nele na maioria das situações. A não ser...
— A não ser?
— A não ser com você.
— Ah. Você não precisa confiar nele em relação a mim. Só tem
que confiar em mim.
— Kells... — desdenhou ele.
— Estou falando sério. — Segurei-lhe o rosto entre as mãos de
modo a forçá-lo a olhar para mim. — Quero que você compreenda
uma coisa. Talvez Yesubai tenha escolhido Kishan, mas eu escolhi
você. É você que eu quero. Não ele. — Suspirei. — Na verdade, eu
tenho pena de Kishan. Ele perdeu a pessoa que amava. É por isso que
devemos aproveitar ao máximo nosso tempo juntos. Nunca se sabe
quando alguém que você ama vai ser tirado de você.
Ele me abraçou por um instante, o rosto colado ao meu,
enquanto dançávamos uma música lenta, sabendo que eu não falava
mais de Kishan.
— Isso não vai acontecer conosco. Eu não vou deixá-la. Sou
imortal, lembra?
Sorri sem entusiasmo.
— Não é a isso que estou me referindo.
— Sei a que você está se referindo. — Ele provocou. — Mas
precisei lutar contra três homens para conquistá-la e não quero ter
que enfrentar meu irmão também.
Eu ri.
— Está exagerando, Tarzan. Você não precisou lutar contra
ninguém. Bem... exceto contra Li. E, de qualquer forma, meu coração
já era seu, e você provavelmente sabia disso.
— Eu saber e você saber são duas coisas bem diferentes. Fui
um tigre solitário por tempo demais. Mereço ser feliz com a mulher
que amo. E não vou deixar ninguém tirá-la de mim, muito menos
Kishan.
Lancei-lhe um olhar severo. Ele suspirou e me girou.
— Vou tentar ser mais paciente com Kishan, mas ele sabe
como me irritar. É difícil demais me controlar, principalmente
quando ele flerta com você.
— Por favor, tente, Por mim.
— Por você, eu me submeteria a torturas excruciantes, mas
não posso tolerar vê-lo flertando com você.
— É você que eu amo. Vou dizer a ele que pare com isso. Mas
tentem não se matar enquanto ele estiver aqui, está bem? Nada de
lutas de tigres. Não se esqueça de que precisa dele aqui.
— Certo, mas se ele continuar a se atirar aos seus pés, não
respondo por mim.
Depois de um momento, eu disse baixinho:
— Você não disse... que me ama também.
— Kelsey, “sou firme como a Estrela do Norte, cuja essência
constante e inabalável não encontra paralelo no vasto firmamento’
— César morreu, você sabe.
— Esperava que você não conhecesse essa.
— Conheço todas, Shakespeare.
— Então vou dizer simplesmente que te amo. Não há nada
neste mundo mais importante para mim do que você. Só me sinto
feliz quando você está por perto. Meu único propósito é ser o que
você precisa que eu seja. Isso não é poesia, mas vem do meu coração.
Serve?
Dei um sorriso torto.
— Acho que sim.
Não ficamos muito mais tempo no baile, pois o humor de Ren
havia mudado, apesar de minhas brincadeiras, meus beijos e minhas
declarações de amor. Ele dançava comigo, no entanto sua mente
estava em outro lugar, e quando eu lhe disse que gostaria de ir para
casa, ele não se opôs.
Quando subíamos o caminho que levava à entrada da
garagem, percebi que as luzes estavam acesas na minha casa. Antes de
entrarmos, Ren me envolveu num abraço delicado e me beijou com
ternura.
Ele encostou a testa na minha e disse:
— Este não é exatamente o final que planejei para nosso
encontro romântico.
— Ainda lhe resta uma hora. — Sorri e passei os braços em
torno de seu pescoço. — O que tinha em mente?
Ele riu.
— Na verdade eu estava planejando improvisar o restante, mas
isso não vai acontecer com Kishan por aqui.
Ren tornou a me beijar e ouvimos um comentário abafado,
baixo demais para que eu pudesse entender. Ele afastou os lábios dos
meus e grunhiu baixinho, resmungou alguma coisa em hindi e abriu a
porta carrancudo.
Kishan estava assistindo à TV enquanto devorava uma
quantidade inacreditável de petiscos. Seis pacotes diferentes de
pretzels, pipoca, biscoitos, batatas chips e outras guloseimas variadas
estavam espalhados sobre a mesinha de centro, todos comidos pela
metade.
— É repugnante — queixou-se Kishan. — Vocês não podiam
ter terminado se beijar no baile para que eu não precisasse ouvir isso?
Ren me ajudou a tirar o casaco com um resmungo de irritação,
antes que seguisse para o andar de cima. Ele disse que subiria assim
que acomodasse Kishan. A parte do acomodasse me soou
ameaçadora, mas assenti com a cabeça, na esperança de que pelo
menos tentariam ser civilizados um com o outro.
Estava acabando de passar a blusa do pijama pela cabeça
quando ouvi Ren
— Você comeu todos os meus biscoitos de manteiga de
amendoim?
Sacudi a cabeça. Dois tigres vivendo tão próximos vão me dar
uma grande dor de cabeça.
Sem ouvir a resposta de Kishan, decidi deixar que eles
resolvessem a questão sozinhos. Aninhei cuidadosamente os brincos
de rubi na caixa de fitas por segurança e pensei na mãe de Ren e
Kishan. Tirei a maquiagem e os pentes com pedras do cabelo,
deixando os cachos macios cascatearem pelas minhas costas.
Encontrei Ren descansando em minha cama, recostado na
cabeceira, O paletó de seu smoking estava jogado sobre uma cadeira e
a gravata, com o nó desfeito, pendia de seu pescoço.
Subi em seu colo e dei-lhe um beijo no rosto. Seus braços me
envolveram, puxando-me para mais perto, mas os olhos se
mantiveram fechados.
— Estou tentando lidar com Kishan, Kelsey, mas vai ser muito,
muito difícil.
— Eu sei. Onde ele vai dormir?
— Na minha cama, na outra casa.
— E onde você vai dormir?
Ele abriu os olhos.
— Aqui. Com você. Como sempre faço.
— Humm, Ren, você não acha que Kishan vai tirar conclusões
sobre... você sabe, nós estarmos juntos. Juntos mesmo?
— Não se preocupe com isso. Ele sabe que não estamos.
— Ren. Você está corando?
Eu ri.
— Não. Eu só não esperava falar sobre esse assunto.
— Você é realmente de outra época, Príncipe Encantado. Essa
é uma conversa importante.
— E se eu ainda não estiver pronto para essa conversa?
— É mesmo? Depois de 350 anos você ainda não está pronto
para essa conversa?
Ele grunhiu suavemente.
— Não me entenda mal, Kells. Estou mais do que pronto para
ter essa conversa, mas nós não vamos tê-la. Pelo menos não até que a
maldição tenha sido quebrada.
Meu queixo caiu.
— Você está dizendo o que acho que está dizendo? Que não
poderemos ficar juntos até sermos perseguidos por macacos e
demônios imortais por pelo menos mais três vezes, o que pode levar
anos?
— Eu espero sinceramente que não leve todo esse tempo. Mas,
sim. É isso que estou dizendo.
— E você não vai ceder, não é?
— Que maravilha! Então eu vou virar uma velha solteirona que
mora com dois gatos enormes!
— Você não vai virar uma velha.
— Quando você resolver ficar comigo já estarei velha, sim.
— Kelsey, você está dizendo que está pronta para tudo agora?
— Provavelmente não, mas e daqui a um ano? Ou dois? Vou
acabar ficando maluca.
— Também não vai ser fácil para mim, Kells. O Sr. Kadam
concorda que é perigoso demais. Seus descendentes vivem por um
tempo excepcionalmente longo e ele acha que o amuleto é o
responsável por isso. Foi uma conversa constrangedora, mas ele disse
que é melhor não corrermos nenhum... risco desnecessário. Não
sabemos como o amuleto ou a maldição funcionam e, até sermos
homens outra vez, por completo, não posso me arriscar a que alguma
coisa aconteça com você.
— O Sr. Kadam não matou a mulher, Ren — observei
secamente.
— Não. Mas ele também não era um tigre.
— Está com medo de termos gatinhos? — provoquei.
— Nem brinque com isso — disse Ren, com uma expressão de
pedra.
— Bem, então do que você tem medo? Quer fazer umas aulas?
Não pude evitar. O humor sarcástico de mamãe tomou conta
de mim.
— Não! — disse ele revoltado. Eu ri. — Kelsey! Você não está
levando isso a serio.
— Claro que estou. Só que estou conversando sobre algo que
me deixa nervosa e em geral reajo ao nervosismo com humor e
sarcasmo. Poxa, Ren, você está falando de anos quando estou quase a
ponto de atacá-lo agora. — Suspirei. — Acha mesmo que seria
perigoso?
— A verdade é que não sei. Não sei como a maldição irá nos
afetar. E não vou colocá-la em risco. Portanto, podemos adiar essa
conversa... pelo menos por enquanto?
— Podemos — resmunguei. — Mas é bom você saber que
tenho... dificuldade em pensar com clareza perto de você.
— Humm — gemeu ele, pressionando os lábios em meu
pescoço.
— E isso não ajuda em nada, — Suspirei. — Acho que vejo um
monte de banhos frios à minha espera no futuro.
Ren murmurou de encontro à minha pele:
— Para você e para mim. Você tinha dificuldade em pensar
com clareza perto dos seus outros namorados?
— Que namorados?
— Jason ou Li?
— Sinceramente, não penso em Jason senão como um amigo.
Li era um bom amigo com potencial. Humm... isso é gostoso. Eles
eram pessoas interessantes e que eu quis conhecer melhor. Mas
nunca foram meus namorados. Eu não os amava como amo você e
eles não faziam com que eu me sentisse assim. — Gemi baixinho. —
Não chegavam nem perto.
Ele traçou com beijos a linha do meu maxilar.
— E antes deles?
— Não. Não houve ninguém. Você é o meu primeiro... em
tudo.
Ele ergueu a cabeça e me dirigiu seu sorriso devastador.
— Eu me sinto delirantemente feliz em ouvi-la dizer isso. —
Ele juntou meu cabelo sobre o ombro e depositou beijos ao longo da
curva do meu pescoço.
— Só para registrar, Kells, você também é a minha primeira
em tudo.
Estremeci. Suspirando, ele me beijou docemente e me
aconchegou de encontro ao seu peito.
Brinquei com os botões de sua camisa e falei baixinho:
— Sabe, minha mãe conversou comigo sobre isso pouco antes
de morrer. Ela e papai torciam para que eu esperasse até o casamento,
como eles fizeram.
— Para mim, isso estava subentendido. No meu tempo, em
meu país, os relacionamentos casuais não existiam.
— Ah— provoquei —, então você acha que nosso
relacionamento é casual? Não. Não para mim. — Ele inclinou a
cabeça e observou minha expressão atentamente. — E para você?
— Para mim também não.
— É bom saber.
Ele estendeu a mão, agarrou meu edredom e o ajeitou à nossa
volta.
— Ren, o que você diria se eu quisesse esperar, você sabe, até
lá.
Um sorriso iluminou seu rosto bonito.
— Até... o quê?
Mordi o lábio, nervosa.
— Até... você sabe.
Seu sorriso se abriu ainda mais.
— Isso é uma proposta de casamento? Quer o número do
telefone do Sr. Kadam para você pedir a permissão dele?
Bufei.
— Vá sonhando, Romeu! Mas, falando sério, Ren, se eu
quisesse esperar, isso... chatearia você?
Ele segurou meu rosto entre as mãos, olhou-me nos olhos e
disse simplesmente:
— Eu esperaria por você pela eternidade, Kelsey.
Suspirei.
— Você sempre diz a coisa certa.
Eu estava desfrutando o fato de estar ali agarradinha com ele
quando um mento dormente acordou em minha cabeça e me fez
sentar na cama.
— Espere um minuto! Sua primeira em tudo, hein? Isso não é
exatamente verdade. O Sr. Kadam uma vez me disse que ele invadiu o
Banho da Rainha em Hampi, o que era um rito de passagem para
rapazes. Você não o acompanhou a Hampi em várias ocasiões?
Ren imobilizou-se.
— Bem, tecnicamente falando...
Eu sorri e ergui uma sobrancelha, debochada.
— Sim, Ren? Meu amor? Você estava dizendo...
— Eu estava dizendo que, tecnicamente falando, sim, Kadam,
Kishan e eu invadimos o local. Mas só chegamos até a porta da frente
e todas as mulheres estavam dormindo. Não vimos nada.
Espetei meu dedo em seu peito.
— Está me dizendo a verdade, Lancelote?
— Esta é, 100 por cento, a mais absoluta verdade.
— Então, se eu perguntar a Kishan amanhã, ele vai confirmar
sua história? Claro que sim. — E então murmurou baixinho: — E, se
não confirmar, dou um soco na cara dele.
— É melhor que você esteja me falando a verdade, Ren. E não,
você não vai dar nenhum soco na cara de Kishan.
Só estou provocando você, Kells. Juro. Eu nunca olhei para
outra que não fosse você desde o primeiro dia em que leu para mim
junto à jaula do circo. No que diz respeito a Kishan, de qualquer
maneira, ele merece ui soco por comer meus biscoitos.
— Amanhã faço mais para você. Não brigue com ele por causa
disso, ciumento.
Ri até que ele me calasse com os lábios.
No dia seguinte, durante a terceira omelete de Ren e a quarta
de Kishan, Ren anunciou que queria voltar a praticar wushu. Kishan
bateu palmas, deixando claro que mal podia esperar para surrar o
irmão.
Eles alugaram um pequeno estúdio onde teríamos total
privacidade, de forma que ele e Ren pudessem me instruir. Não me
ensinaram nenhum movimento ou posição elaborados, mas me
deram um curso intensivo de Iniciação à Incapacitação de Seu
Oponente. Nós todos achamos que era melhor eu aprender alguns
movimentos defensivos com a possibilidade de Lokesh estar
rondando por aí, assim como a de sabe-se lá o quê estar à nossa
espreita na próxima missão. Então nos alongamos por alguns minutos
e em seguida Ren começou sua aula, usando Kishan para demonstrar.
— Lição número um. Se seu atacante estiver correndo em sua
direção, flexione os joelhos e espere até ele se aproximar. Então
agarre-o pelo braço, gire ao redor dele e trave os braços em seu
pescoço. Se o sujeito for grande, atinja-o no pescoço, sob a
mandíbula.
Kishan correu para Ren e o atacou por trás. Então foi a minha
vez. Ren correu em minha direção e eu agarrei seu braço e pulei em
suas costas. Atirei os braços em torno de seu pescoço numa breve
gravata, mas em seguida estalei um beijo em seu rosto antes de pular
para o chão.
— Ótimo. Lição número dois. Se o atacante tem mais
habilidade nas artes marciais que você, não lute com ele. Tente
apenas incapacitá-lo. Mire o estômago ou a virilha e soque ou chute o
mais forte que puder.
Kishan voltou a atacar e começou uma complicada investida
empregando artes marciais. Reconheci um salto com chute no rosto,
com o joelho flexionado e um soco circular, mas ele também fez
muitos outros movimentos complicados que eu desconhecia. Ren
apenas recuava, fugindo do alcance de Kishan, até que encontrou
uma abertura e socou Kishan com força no estômago. Kishan
levantou-se imediatamente e voltou ao ataque. Dessa vez, lutou com
mais empenho e derrubou Ren, que então desferiu um soco para o
alto, parando a poucos centímetros de incapacitar o irmão.
— Se tiver que escolher um ou outro, escolha a virilha. É muito
mais eficaz. Lição número três. Procure os pontos principais: olhos,
pomo de adão, ouvidos, têmporas e nariz. No caso dos olhos, ataque
com dois dedos, assim. Nas orelhas, use ambas as mãos e dê um
telefone, isto é, acerte ambos os ouvidos ao mesmo tempo, o mais
forte que puder. Nos outros pontos, aplique um golpe forte, com a
mão espalmada.
Ren demonstrou cada um dos golpes e então sugeriu que
praticasse nele novamente. Pediu que eu o machucasse de fato, pois
queria que a aula fosse realista. Mas eu não conseguia me forçar a
fazer isso.
Kishan grunhiu e se levantou, empurrando Ren e tirando-o do
caminho.
— Desse jeito, ela nunca vai aprender. Ela precisa de um
ataque de verdade.
— Não, você é bruto demais. Vai machucá-la.
— O que você acha que eles vão fazer com ela?
Pus meu braço no de Ren.
— Ele tem razão. Está tudo bem. Deixe Kishan tentar.
Ren concordou, relutante, e ficou encostado à parede.
Fiquei parada, nervosa, com as costas voltadas para Kishan, à
espera do ataque. Ele se aproximou de mim por trás, agarrou meu
braço com força e me fez girar. Suas mãos envolveram meu pescoço.
Ele estava me estrangulando. Ouvi um rugido feroz antes de Kishan
ser lançado contra a parede mais distante. Ren ficou parado diante de
mim tocando com carinho as marcas de dedos vermelhas em minha
pele.
— Eu falei! — ele gritou com Kishan, — Você é bruto demais!
Ela vai ficar com hematomas no pescoço!
— É necessário ser bruto para ser realista. Ela precisa estar
pronta.
— Ren, eu estou bem. Deixe-o tentar outra vez. Tenho que me
preparar para que possa pensar com clareza durante um ataque. Você
pode precisar de mim para salvá-lo um dia.
Ele acariciou meu pescoço delicadamente e olhou para mim,
indeciso. Por fim assentiu e saiu do caminho.
Kishan correu para a outra extremidade do estúdio e gritou
para mim:
— Não pense. Apenas reaja.
Virei-me para o outro lado a fim de esperar o ataque. Kishan
estava silencioso. Apurei os ouvidos tentando captar o som de seus
passos, mas não ouvi nada. De repente, seus braços me envolviam
com força por trás e ele me arrastava. Ele era forte demais. Estava me
estrangulando. Eu me debati, lutei e pisei com força em seu pé, tudo
inutilmente.
Desesperada, inspirei com força e bati a cabeça contra o seu
queixo. Doeu. Muito. Mas ele reduziu a força dos braços o suficiente
para que eu escapasse ide, caindo no chão. Então me levantei
subitamente, bati meu ombro em ma virilha e soquei seu estômago
com toda a minha força.
Kishan caiu no chão, rolando. Ren soltou uma gargalhada alta
e bateu nas costas do irmão antes de ir até mim.
— Você pediu! Não pense. Apenas reaja. Pena que eu não
tinha uma câmera!
Eu tremia por causa do esforço. Tinha conseguido, mas
sinceramente não acreditava que pudesse lidar com mais do que um
adversário. Como eu poderia proteger Ren se mal conseguia cuidar de
mim?
— Kishan vai ficar bem?
— Ele vai se recuperar. Só precisa de um minuto.
Ren estava entusiasmado com minha pequena vitória. Kishan
ficou de pé, fazendo careta.
— Essa foi boa, Kelsey. Se eu fosse um homem normal, ficaria
no chão por pelo menos 20 minutos.
Eu me sentia um pouco tonta.
— Será que podemos parar por hoje? Minha cabeça está
rodando. Acho que preciso de uma aspirina. Lembrem-se de que eu
não me recupero tão rápido quanto vocês dois.
Ren ficou sério, apalpou minha cabeça e encontrou um grande
galo se formando. Ele insistiu em me carregar até o carro, embora eu
pudesse andar sem problemas. Quando chegamos em casa, ele me
acomodou no sofá, socou com força a barriga de Kishan, só para
deixar claro o que pensava, e foi para a cozinha pegar uma bolsa de
gelo para a minha cabeça.
Ao longo das duas semanas seguintes, enquanto praticávamos,
acreditar que poderia manter o autocontrole durante um ataque.
Kishan e Ren passaram a se alternarem rondas em torno da casa à
noite, certificando-se de que ninguém chegaria sorrateiramente e nos
surpreenderia. Coloquei uma mochila de emergência debaixo do
banco dianteiro da picape GMC preta de Kishan, com roupas e outros
itens de que precisaria no caso de partirmos com pressa. Guardei nela
minha colcha, documentos de viagem, os brincos de rubi e Fanindra.
Ren e Kishan a encheram com dinheiro de vários países e
acrescentaram uma bolsa de roupas para eles também. Estacionaram
a picape cerca de um quilômetro e meio adiante na estrada principal e
a cobriram com galhos para camuflá-la.
Eu sempre usava meu amuleto e a pulseira com o medalhão de
Ren, i me preocupava com minha caixa de fitas. Se tivéssemos que
deixar a cidade rapidamente, não queria que nada acontecesse com
ela. Ren sugeriu que, por segurança, enviássemos um pacote pelo
correio para o Sr. Kadam. Despachamos para a Índia minha caixa de
fitas e vários outros itens pessoais insubstituíveis.
Manter o estado de ânimo descontraído era difícil, pois todos
sentíamos que alguma coisa ruim estava para acontecer. Kishan agora
se juntava a nós nas noites de filmes e na maioria das vezes comia
toda a pipoca, o que irritava Ren. Ficávamos em casa quase todas as
noites e eu cozinhava. Kishan comia facilmente o dobro do que Ren
comia, que já era muito, O rapaz do mercado que fazia a entrega
devia pensar que estávamos administrando uma pensão, a julgar pela
quantidade de comida que pedíamos toda semana.
Num sábado de março, sugeri um passeio à Tillamook e à
praia. A previsão era de um tempo atipicamente quente e ensolarado.
A probabilidade de o dia estar de fato quente e assim se manter era
mínima, mas as praias do Oregon eram lindas, mesmo com chuva. No
minuto em que prometi sorvete de chocolate com manteiga de
amendoim, Ren passou a apoiar a ideia.
Separamos biscoitos, chocolate e marshmallows para o lanche
e colocamos uma muda de roupa na traseira do Hummer. Dirigi até
Lincoln City e dobrei a direita, na rodovia 101, que corria ao longo do
litoral do Oregon. Era uma bela viagem e os dois tigres empinaram o
nariz para farejar o oceano quando abri um pouco as janelas. Mais
tarde, parei no Centro de Visitantes da Queijaria Tillamook e
estacionei na vaga mais distante do movimento.
— Encontro vocês lá dentro.
Vesti um casaco leve. Apesar da previsão de tempo bom, o céu
estava um pouco nublado, com raios de sol espiando através das
nuvens cinzentas apenas ocasionalmente. Ventava um pouco
também, mas não parecia que fosse chover antes do anoitecer. Entrei
na loja e examinei a variedade de queijos em exposição.
Ren entrelaçou os dedos nos meus. Usava um suéter azul-claro
de capuz com uma estampa de alguma espécie de dragão asiático que
ia de um ombro ao outro.
Levantei a mão para traçar as linhas do dragão.
— Onde você comprou isto?
Ele deu de ombros.
— Pela internet. Agora sou expert em compras on-line.
— Humm. Gostei.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Gostou?
— Sim. — Suspirei. — É melhor manter você longe do sorvete.
Ele pareceu ofendido.
— Posso saber por quê?
— Porque você é quente o bastante para derretê-lo. As
atendentes já estão de olho em você.
— Bem, talvez você não tenha percebido o rapaz atrás do
balcão. Ele ficou muito desapontado quando entrei aqui.
— Você está mentindo.
— Não... não estou.
Espiei o rapaz atrás da caixa registradora. Ele estava nos
observando.
— Provavelmente ele só quer ter certeza de que não estamos
provando amostras demais.
— Duvido.
Fomos até o balcão de sorvete onde senti o aroma de
casquinhas de waffle recém-saídas do forno. Kishan pediu uma
casquinha e três bolas com os sabores cheesecake de mirtilo, laranja
com chocolate e root beer.
— Uma combinação interessante, Kishan.
Ele sorriu para mim acima de sua casquinha gigante e deu uma
mordida imensa na bola de sorvete de cima. Ren era o próximo, mas
parecia estar com problemas.
— Estou dividido.
— Entre o quê?
— Chocolate com manteiga de amendoim e pêssego com
creme.
— Você adora chocolate com manteiga de amendoim. Deveria
ser uma escolha fácil.
— Ah, é verdade. — Ele se inclinou para sussurrar: — Mas
gosto mais de pêssego com creme.
Ele me deu um beijo no rosto e pediu uma casquinha com
duas bolas de pêssego com creme.
Eu pedi uma casquinha com uma bola de chocolate com
manteiga de amendoim por baixo e uma do meu favorito, o especial
da casa, por cima, e prometi a Ren que ele poderia comer metade da
minha casquinha. Acrescentei uma barra grande de chocolate com
manteiga de amendoim ao pedido e paguei a conta.
Dali era uma viagem curta até a praia. Como estava nublado e
ainda bastante frio, a praia encontrava-se deserta. Éramos apenas nós
três, as gaivotas e o rugido do oceano gelado.
A água azul fria e cortante encapelava-se, derramando-se pela
areia cinzenta e borrifando as grandes pedras negras. Era assim o
oceano do noroeste: lindo, frio e escuro. Muito diferente das praias da
Califórnia e da Flórida. À distância um barco de pesca passava
lentamente.
Ren estendeu uma manta grande na areia e começou a fazer
uma fogueira. Logo, logo uma labareda crepitava e ele se sentou ao
meu lado no cobertor. Comemos, rimos e conversamos sobre vários
estilos de artes marciais: caratê, wushu, ninjútsu, kendo, aikido,
shaolin, muay thai, tae kwon do e kempo.
Ren e Kishan discutiram sobre que estilo usar em cada
situação. Por fim, se aquietaram e Ren me convidou para caminhar
pela praia. Tiramos os sapatos, demos as mãos e deixamos a água fria
lamber nossos pés descalços enquanto andávamos até as pedras
negras, a cerca de um quilômetro dali.
— Você gosta do mar? — perguntou ele.
— Gosto de observá-lo ou navegá-lo, mas nadar nele me dá
medo.
— Por quê? Pensei que você adorasse as histórias sobre o
oceano.
— E adoro. Existem alguns livros excelentes sobre o mar:
Robinson Crusoé, Vinte mil léguas submarinas, A ilha do tesouro e
Moby Dick.
— Então por que você tem medo?
— Uma palavra: tubarões.
— Tubarões?
— É. Parece que tenho que apresentá-lo ao filme Tubarão. —
Suspirei. — Eu sei, estatisticamente falando, que a maioria das
pessoas que nadam em praias não é comida por um tubarão, mas o
simples fato de eu não poder ver nada na água já me enche de pavor.
— Então não tem problema com as piscinas?
— Não. Adoro nadar, mas vi programas de mais sobre tubarões
na TV e não me sinto tranquila no mar.
— Talvez você pudesse gostar de mergulhar.
— Talvez, mas duvido.
— Gostaria de experimentar um dia.
— Fique à vontade.
— Sabe, estatisticamente falando, você tem muito mais
probabilidade de ser devorada por um tigre.
Ele tentou agarrar meus braços, mas corri, saindo de seu
alcance.
— Não se o tigre não puder me pegar.
Saí correndo o mais rápido que pude e Ren riu e me perseguiu
pela areia, tentando agarrar meus calcanhares.
Ele me deixou escapar por algum tempo, apesar de eu saber
que poderia ter me dominado quando quisesse. Por fim, ele me pegou
no colo e me jogou sobre o ombro.
Eu não parava de rir.
— Vamos voltar, Tigre. A maré está subindo e deixamos
Kishan sozinho por muito tempo.
Ele me carregou de volta e me colocou sobre a manta.
Peguei os marshmallows para assá-los. Ren desafiou Kishan
para uma corrida, indo da manta até as pedras e voltando.
— Vamos lá, Kishan. O primeiro a voltar ganha.
— Ganha o quê?
— Que tal um sanduíche de biscoito com marshmallow e
chocolate? — Kishan sacudiu a cabeça.
— Que tal um beijo de Kelsey?
O rosto de Ren tornou-se sombrio.
Eu me aventurei:
— Ah, Kishan. Acho que essa não é uma ideia muito boa.
— Ë sim, Kelsey — insistiu Kishan. Vai servir como motivação
para ele se esforçar. A menos que ele ache que vai perder.
— Eu não vou perder — grunhiu Ren.
Kishan espetou o dedo no peito de Ren.
— No seu melhor dia você nem sequer veria minha cauda.
— Muito bem. Vamos lá.
— Rapazes, eu não acho...
Ambos saíram correndo tão rápido que se transformaram
quase num borrão sobre a areia. Deixando os marshmallows de lado,
levantei-me para vê-los correr. Kishan parecia um relâmpago, mas
Ren também era rápido, indo logo atrás. Quando alcançaram a pedra,
Ren fez uma virada melhor e ganhou alguns centímetros de
vantagem, que conseguiu manter na volta. Mais ou menos na metade,
Kishan estendeu o braço, agarrou o capuz azul do suéter de Ren,
puxou com força e o empurrou na areia.
Ren girou e caiu, porém se levantou rapidamente e avançou,
correndo com fúria. Suas pernas se movimentavam mais rápido do
que parecia possível. A areia voava vários metros atrás dele, à medida
que diminuía a distância e emparelhava com Kishan. A corrida
terminou com Kishan ganhando por meio metro.
Ren estava furioso. Kishan riu e cutucou Ren para que saísse
da frente e o deixasse reivindicar seu prêmio.
Fiquei na ponta dos pés e dei um beijo no rosto de Kishan. Ren
pareceu se acalmar e começou a relaxar. Ele pegou uma pedra e a
atirou no oceano.
— Você só ganhou porque roubou — resmungou.
— Ganhei porque sei como ganhar — retrucou Kishan. —
Roubar é irrelevante. Você precisa aprender a fazer o que for
necessário para ganhar. Por falar nisso, esse não era o prêmio que eu
tinha em mente.
Ele agarrou meu cotovelo, fazendo-me dar meia-volta, e me
segurou pelas costas, inclinando-nos num beijo teatral. Era muito
mais drama que substância, mas Ren ficou enlouquecido.
— Solte-a. Agora.
Depois de Kishan me colocar de pé, recuei um passo e Ren se
lançou de encontro à barriga de Kishan, interrompendo sua
gargalhada ao atirá-lo na areia. Eles rolaram pelo chão lutando e
rosnando pelos 10 minutos seguintes. Achei melhor não intervir.
Parecia que lutar contra o outro era um dos passatempos preferidos
de ambos.
Quando finalmente encerraram a briga, nós comemos os
biscoitos com marshmallow e chocolate. Tirando o cabelo de Ren de
sua testa e alisando-o, eu disse:
— Você sabe que a única intenção dele era tentar irritá-lo.
— Ah, mas não era mesmo. Eu já disse: se ele continuar
bancando o engraçadinho com você, a trégua estará cancelada. Ei,
isso é muito bom. Humm, ficaria ainda melhor com...
— Manteiga de amendoim? — falamos os dois ao mesmo
tempo.
Ele começou a plantar beijos melados por todo o meu rosto.
Eu ri, empurrei-o do meu colo e corri. Ele se pôs de pé num salto para
me pegar quando teu celular tocou. Era Jason.
— Oi, Jason. Tudo bom?
— Achei que você ia gostar de saber que uns caras estranhos
apareceram o campus ontem perguntando por você. Disseram que
representam um escritório de advocacia e que têm novidades sobre o
testamento dos seus pais.
— Ah. E como eram eles?
— Eram altos e vestiam uns ternos caros. Pareciam falar a
verdade, mas eu não disse nada a eles. Achei melhor consultar você
primeiro.
— Muito obrigada por me avisar, Jason. Você fez bem em não
dizer nada a eles.
— Você está com algum problema, Kelsey? Está tudo bem?
— Tudo bem. Não se preocupe.
— Beleza. Até mais.
— Até.
Encerrei a ligação e olhei para Ren. Ele me encarou. Ambos
sabíamos: Lokesh havia me encontrado. Ouvi Kishan falando baixinho,
me virei e o vi em seu celular, provavelmente com o Sr. Kadam.
Começamos a arrumar tudo para voltar imediatamente. De
repente a atmosfera na praia havia mudado. Agora era sombria,
escura e sinistra, quando antes era amistosa e segura. O céu parecia
agourento e ameaçador e estremeci com a brisa repentinamente fria.
Ren e Kishan concordaram que, se Jason não tinha dito nada
aos homens, era improvável que eles já houvessem encontrado nossa
casa. Resolvemos ir até lá, acertar umas últimas coisas e deixar o
Oregon.
No caminho, liguei para Sarah e Mike e disse a eles que estava
voltando para a Índia.
— O Sr. Kadam fez uma descoberta importante e precisa da
minha ajuda. Ren irá comigo. Ligo assim que o avião pousar.
Telefonei para Jennifer e disse a mesma coisa. Ela ficou
insinuando que, se eu estava fugindo com Ren, devia lhe confessar.
Por fim acreditou na história e disse que passaria a informação a Li.
Tomei o cuidado de não mencionar a cidade nem quanto tempo
ficaria fora. Tentei ser o mais vaga possível.
Quando desliguei, Ren me assegurou que minha família estaria
a salvo. Disse que o Sr. Kadam havia providenciado férias surpresa
para Sarah, Mike e as crianças. Eles ganhariam uma viagem de três
semanas com tudo pago para o Havaí, mas somente se partissem
imediatamente. Seriam informados de que a viagem era um prêmio
de sua marca favorita de tênis de corrida.
Fiquei olhando os retrovisores durante todo o trajeto até em
casa, esperando que sedãs negros surgissem, vindo em disparada em
nossa direção, com homens inescrupulosos atirando contra nós. Dizer
que eu estava assustada era eufemismo. Eu havia enfrentado
demônios e macacos imortais, mas, por alguma razão, era
completamente diferente enfrentar bandidos do mundo moderno. Eu
podia racionalizar que demônios não eram reais; portanto, ainda que
estivessem me perseguindo, não chegavam a ser de fato uma ameaça.
Mas homens de verdade, que queriam sequestrar, torturar e matar,
pareciam muito mais apavorantes.
Quando chegamos em casa, estacionei na garagem e esperei no
carro até os irmãos inspecionarem a casa. Voltando uns 10 minutos
depois, Ren pôs os dedos nos lábios e, em silêncio, abriu minha porta.
Ele havia vestido roupas escuras, botas pesadas e um casaco preto.
— O que está acontecendo? — meus lábios formaram as
palavras sem pronunciá-las.
— Alguém entrou na casa. Na verdade, nas duas casas —
sussurrou Ren em resposta. — O cheiro deles está por toda parte, mas
nada foi levado. Não tem ninguém aqui agora, então suba e vista
rapidamente uma roupa escura e tênis de corrida. Depois nos
encontre aqui embaixo. Kishan está vigiando as portas. Vamos sair
pelos fundos, pegar a picape de Kishan e seguir para o aeroporto.
Assenti, entrei depressa na casa e subi a escada correndo. Lavei
o rosto, vesti uma calça jeans escura, um suéter preto de mangas
compridas e tênis. Peguei o casaco e encontrei-os lá embaixo. Kishan
ia na frente, enquanto atravessávamos furtivamente minha casa e
entrávamos na de Ren.
Tanto Kishan quanto Ren haviam se munido de armas da
minha caixa de wushu. O bastão tripartido tinha sido dobrado e
estava preso no cinto de Kishan, nas costas, e Ren havia enfiado um
par de facas no passador do cinto. Ren e eu continuamos a seguir
Kishan, que nos conduziu para fora da casa, seguindo para o meio das
árvores.
Ele parava com frequência para farejar o ar e examinar o solo.
Precisávamos caminhar cerca de um quilômetro e meio até a picape.
Cada ruído, cada estalo na floresta me assustava e eu girava o corpo
com frequência, esperando um ataque. Sentia um formigamento nas
costas, como se estivéssemos sendo observados.
Depois de cinco minutos, Kishan estancou. Indicou com gestos
que nos abaixássemos e afundamos atrás de algumas samambaias.
Havia alguém em meio às árvores, movendo-se em silêncio, seguindo
nosso rastro. Até eu podia ouvi-lo, o que significava que estava perto.
— Precisamos sair daqui — murmurou Kishan. — Quando eu
disser — Alguns segundos de tensão transcorreram. — Agora —
sussurrou.
Ele nos guiou floresta adentro num ritmo mais veloz. Eu
tentava me mover o mais silenciosamente possível, mas temia que
quem quer que estivesse nos seguindo pudesse me ouvir. Meus pés
pareciam não encontrar os pontos certos para pisar e várias vezes
quebrei galhos e escorreguei em lugares molhados enquanto corria.
Chegamos a uma clareira, onde Kishan se deteve e sibilou:
— Emboscada!
Demos meia-volta, O homem que nos seguia nos alcançou e
bloqueou nossa passagem. Kishan correu em sua direção, diminuindo
rapidamente a distância. Quando estava a poucos metros, Kishan
puxou o bastão e o brandiu acima da cabeça, para ganhar impulso. Eu
achava a arma pesada, s mãos de Kishan ela girava como as hélices de
um helicóptero. Com um estalo, ele acertou as pernas do homem e o
derrubou, e então, dando um salto gigante, girou a arma e a acertou
nas costas e na cabeça do homem caído. Com um movimento rápido
do pulso, a arma dobrou-se, acomodando-se em sua palma, e ele
tornou a enfiá-la no cinto, O homem não se levantou.
Ren agarrou minha mão e me puxou enquanto corria. Parando
pequeno bosque, ele me forçou a me esconder atrás de um tronco
caído e ordenou que eu não me mexesse, então voltou correndo para
juntar-se a Kishan, tomando posição não muito longe do irmão. Eu vi
o lampejo das facas quando Ren as sacou e as rodopiou habilmente
enquanto Kishan mais uma vez brandia o bastão. Os dois irmãos
perscrutavam a floresta, à espera
Os outros homens haviam nos alcançado. O que aconteceu em
seguida não foi nada parecido com o que se vê nas aulas de artes
marciais. Aquilo era batalha. Guerra. Ren e Kishan pareciam dois
supersoldados. Seu rosto não demonstrava nenhuma emoção. Eles se
moviam com agilidade e eficiência Não desperdiçavam energia.
Movimentavam-se em harmonia, como um par de dançarmos letais,
Ren com as facas e Kishan com o bastão. Entre eles, derrubaram pelo
menos uma dúzia de homens, no entanto outras dezenas surgiam em
disparada do meio das árvores.
Ren golpeou um deles no pescoço com o cotovelo,
provavelmente esmagando-lhe a traqueia. Quando o homem se
dobrou, Ren saltou sobre suas costas, girou o corpo e chutou a cara
do que vinha atrás dele. Kishan era brutal. Quebrou o braço de um
homem enquanto simultaneamente chutava o joelho de outro. Pude
ouvir o estalo repugnante e o grito quando os dois desabaram no
chão. Era como estar no meio de um dos filmes de artes marciais de
Li, só que ali o sangue e o perigo eram reais.
Quando nenhum dos homens conseguia ficar de pé, os irmãos
voltaram correndo até mim.
— Há outros vindo para cá — disse Kishan, sem emoção.
Corremos. Ren me pegou e me jogou sobre o ombro. Mesmo
com meu peso retardando-o, ele ainda avançava mais rápido do que
eu conseguiria. Os irmãos corriam o mais rápido que podiam.
Velozes, porém silenciosos. De algum modo, eles sabiam onde pisar
para evitar fazer barulho. Kishan desacelerou e começou a correr
atrás de nós, assumindo uma posição no flanco. Continuamos assim
por pelo menos 10 minutos. Calculei que estivéssemos distantes dos
homens, mas, de repente, ouvi silvos e estalos, à medida que alguma
coisa atingia os troncos das árvores à nossa volta.
Imediatamente, Ren e Kishan duplicaram sua velocidade e
saltaram atrás de um tronco caído, em busca de proteção.
— Eles estão atirando na gente?
— Não — Kishan sussurrou de volta. — Pelo menos não com
armas de fogo. O ruído é diferente.
Ficamos ali em silêncio. Eu respirava com mais intensidade do
que eles, embora eles que tivessem corrido. Esperamos. Os dois
irmãos tinham os ouvidos atentos. Eu estava prestes a fazer uma
pergunta, mas Ren levou um dedo aos lábios, indicando que eu devia
ficar calada. Eles usavam sinais com as mãos para se comunicar. Eu
observava com atenção, mas não conseguia entender o que queriam
dizer. Ren girou o dedo em círculo e Kishan lhe passou o bastão,
metamorfoseou-se no tigre negro e se enfiou furtivamente
Apontei na direção em que Kishan havia desaparecido. Ren
pressionou a boca em meu ouvido e sussurrou numa voz que mal se
podia ouvir:
— Ele está atraindo os homens.
Ren então me acomodou no oco da árvore e mudou de
posição, de forma que seu corpo agora cobria o meu.
Fiquei ali, tensa, meu rosto pressionado contra o peito de Ren
por um longo tempo. De repente ouvi um rugido terrível. Ren me
envolveu com os braços e sussurrou:
— Eles o seguiram. Estão a quase um quilômetro daqui agora.
Vamos. Ele pegou minha mão e começou a me levar novamente na
direção da picape escondida. Tentei ser o mais silenciosa possível.
Vários minutos depois, uma forma escura saltou diante de nós. Era
Kishan. Ele voltou à forma humana.
— Eles estão por toda parte. Levei-os o mais longe que pude,
mas parece que todo um regimento foi mandado em nosso encalço.
Dez minutos depois, Kishan parou e farejou o ar. Ren fez o
mesmo. Nesse momento, homens saltaram das árvores sobre nós;
vários deles desceram de arneses e cordas. Dois sujeitos me
agarraram, afastando-me de Ren, e me seguraram com força,
enquanto cinco o atacavam. Ele rugiu de fúria e se transformou em
tigre. Os homens não pareceram surpresos com isso. Kishan já havia
assumido sua forma de tigre e abatera vários de seus agressores.
Ren ergueu-se nas patas traseiras, lançou as dianteiras nos
ombros de um homem e rugiu em seu rosto. Então mordeu o pescoço
e o ombro do homem, empurrou-o para o chão e usou seu corpo
como ponto de apoio para impulsionar e saltar no ar, as garras
estendidas, e atacar dois homens, atingindo-os no peito. Suas orelhas
estavam coladas à cabeça, o pelo eriçado, e de suas mandíbulas
pingava sangue. A cauda subia e descia como uma alavanca
imediatamente antes de ele se arremessar no ar outra vez, indo
aterrissar nas costas de um sujeito que lutava com Kishan. O simples
peso de seu corpo tirou o agressor de ação.
Eu lutava, mas não conseguia nem me mover, pois os homens
me seguravam com força. Kishan rugiu. Um dos homens havia usado
uma arma que tinha uma espécie de dispositivo de choque elétrico
preso à extremidade: O tigre negro girou, derrubou a arma no chão
com a pata e a partiu ao meio com o peso do corpo.
Rapidamente Kishan saltou sobre o homem que havia caído no
chão e mordeu-lhe o ombro. Depois, erguendo-o do chão com as
mandíbulas poderosas, sacudiu a cabeça com violência até o homem
parar de se mexer. Kishan então arrastou o corpo inerte por vários
metros e, com um movimento repentino da cabeça, arremessou-o nos
arbustos. Em seguida, ergueu-se nas patas traseiras, como um urso, e
atacou os outros homens que se aproximavam. O sangue gotejava de
suas mandíbulas quando ele rosnou feroz.
Ren tentava o tempo todo chegar até mim, mas os homens
sempre se interpunham entre nós. Aproveitei a distração temporária
deles quando Ren largou um homem aos nossos pés para chutar um
de meus agressores na virilha o mais forte que pude e dar uma
cotovelada no estômago do outro. Este se dobrou, mas manteve o
aperto em meu braço. Em seguida, ele me golpeou na têmpora e
minha visão ficou embaçada.
Ouvi o rugido terrível de Ren. Continuei lutando, mas me
sentia tonta. O homem me segurava à frente de seu corpo, como se eu
fosse uma isca. Ele provocava os tigres tratando-me com brutalidade.
Eu sabia que era para distrair os irmãos, o que infelizmente
funcionou. Ren e Kishan continuaram tentando abrir caminho até
onde eu estava e olhavam o tempo todo para mim, o que permitiu
que uma quantidade maior de homens se reunisse atrás deles.
Outros homens chegaram. Aparentemente tinham chamado
reforços e os recém-chegados portavam mais armas. Um deles sacou
uma delas e disparou contra Ren. Um dardo atingiu-o no pescoço e
ele cambaleou. Fui tomada de fúria e de repente minha visão clareou.
Senti uma força queimando meus membros. Bati a parte posterior da
cabeça no nariz do meu captor e tive a alegria de sentir a cartilagem
quebrar. O homem gritou e afrouxou o aperto o suficiente para que
eu escapasse. Corri para Ren. Ele assumiu a forma humana. Outro
dardo o atingiu. Ele ainda estava de pé, mas seus movimentos eram
muito mais lentos. Arranquei os dardos de seu corpo.
Ele tentou me empurrar para trás dele.
— Kelsey! Para trás! Agora!
Um terceiro dardo o acertou na coxa. Ele cambaleou um pouco
mais e caiu apoiado num joelho. Vários homens o cercaram e,
sabendo que eu estava perto, ele recomeçou a lutar para mantê-los
afastados de mim. Kishan estava enfurecido, surrando um homem
atrás do outro enquanto tentava chegar até nós, mas outros
continuavam a surgir. Ele estava ocupado demais para me ajudar com
Ren. Mal conseguia dar conta de se defender. Tentei puxar os
homens, para afastá-los de Ren, mas eles eram grandes demais.
Também eram lutadores profissionais talvez militares, então
praticamente me ignoravam e se concentravam nos dois alvos mais
perigosos. Eu era apenas uma mosca irritante que eles afugentavam
com a mão. Se pelo menos eu tivesse uma arma.
Eu estava desesperada. Tinha que haver alguma coisa que eu
pudesse fazer para proteger Ren. Ele liquidou o último homem perto
de nós e caiu de joelhos, arfando penosa.mente. Havia pilhas de
corpos ao nosso redor. Alguns mortos, outros feridos. Mais homens,
porém, estavam chegando. E eram muitos! Eu podia vê-los se
aproximando sorrateiros, os olhos fixos no homem esgotado ao meu
lado.
O temor pela vida de Ren reforçou minha determinação. Como
uma mãe ursa protegendo o filhote, postei-me diante de Ren,
decidida a impedi-los de continuar avançando ou pelo menos a lhes
dar um alvo diferente contra o qual disparar. Havia mais de uma
dúzia de homens vindo em nossa direção, maior parte empunhando
armas. Um fogo queimou em mim, ansiedade de proteger o homem
que eu amava.
Meu corpo tremeu com energia, com poder. Virei-me para o
sujeito mais próximo e o encarei, ameaçadora. Ele ergueu a arma e eu
levantei a mão como defesa. Meu corpo queimava e senti uma lava
derretida subir pelo meu braço e alcançar a mão. As chamas se
inflamaram e os símbolos que Phet desenhara em minha mão
reapareceram, reluzindo em tom carmim. Um raio explodiu dessa
mão até o corpo do meu agressor, elevando-o no ar e lançando-o
contra uma árvore com força suficiente para sacudi-la. O homem caiu
curvado em sua base.
Sem tempo para questionar ou entender o que havia
acontecido, virei-me para enfrentar o agressor seguinte e o outro. Eu
estava dominada pelo ódio. Uma fúria fervia em mim. Minha mente
gritava que ninguém iria ferir aqueles eu amava. Eufórica com meu
poder, fui derrubando-os um após o outro.
De repente senti uma fisgada no braço e outra no ombro.
Parecia a picada de uma abelha, mas, em lugar do fogo, era uma
dormência que se espalhava. O fogo em minha mão crepitou e se
apagou e eu desabei no chão diante de Ren. Ele repeliu um agressor,
ainda lutando, embora tivesse sido atingido por dardos várias vezes.
Minha visão estava escurecendo, meus olhos se fechando.
Ren me ergueu e eu o ouvi gritar:
— Kishan! Pegue-a!
— Não — murmurei incoerentemente.
O sussurro de seus lábios roçou meu rosto e então senti braços
de ferro prenderem meu corpo.
— Vá! Agora! — gritou Ren.
Eu estava sendo carregada rapidamente por entre as árvores,
mas Ren não nos seguia. Ele ainda lutava, enquanto os agressores
fechavam o cerco em torno dele. Tornou a se transformar em tigre. Eu
o ouvi rugir de fúria e dor e soube, em meio à névoa que tomava
conta da minha mente, que não era o sofrimento físico que o fazia
gritar. Não poderia ser, pois eu também o sentia. A dor horrível e
dilacerante era porque eu tinha sido tirada dele. Sem conseguir
manter os olhos abertos, estendi a mão e agarrei debilmente o ar.
— Ren! Não! — implorei, antes de despencar na escuridão.
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