quinta-feira, 6 de março de 2014
Capítulo 12 - De profecias e práticas
Era o mesmo sonho horrível que eu tivera antes. Estava escuro
e eu procurava alguma coisa desesperadamente. Entrei num quarto e
encontrei Ren amarrado num altar com um homem de túnica
ametista debruçado sobre ele. Era Lokesh. Ele ergueu a faca e a
cravou no coração de Ren. Saltei sobre Lokesh e tentei tirar-lhe a faca,
mas era tarde demais. Ren estava morrendo.
— Kelsey, fuja! — Ren sussurrou para mim. — Saia daqui!
Estou fazendo isso por você!
Mas eu não conseguia correr. Não podia fazer nada para salvá-
lo. Simplesmente desabei encolhida no chão, sabendo que a vida sem
Ren não tinha sentido.
— Venha, Ren. Vamos tirar você daqui.
Ele se transformou em homem e tocou meu rosto.
— Não, Kelsey. Não posso ir. Se eu fizer isso, ele vai pegar você
e eu não deixarei que isso aconteça. Você não pode ficar aqui. Por
favor, vá.
E me deu um beijo rápido.
Ele me empurrou para longe e desapareceu.
Andando em círculos, eu o chamei.
— Ren? Ren!
Vi uma figura através da névoa. Era Ren. Ele estava saudável,
forte e ileso. Ria enquanto conversava com alguém.
Eu toquei em seu braço.
—Ren?
Ele não me ouviu. Postei-me diante dele e acenei. Ele não
podia me ver. Riu e passou o braço pelo ombro de uma linda garota.
Agarrei sua gola e o sacudi, mas ele não sentia o meu toque.
— Ren!
Ele se afastou com a garota e me empurrou para o lado, como
se eu fosse apenas um obstáculo inútil. Comecei a chorar.
Um pássaro cantando lá fora me acordou. Eu havia dormido
profundamente, mas não me sentia descansada. Tinha sonhado a
noite toda com Ren, capturado, prisioneiro. E, em todas as situações
em que nos encontrávamos, ele sempre me afastava, fosse para me
proteger ou para se livrar de mim.
Cinco semanas. Cinco breves e felizes semanas fora tudo que
tivemos juntos. Mesmo que eu contasse o tempo em que ele estava lá,
mas só me via nos encontros, nosso tempo no Oregon fora de apenas
dois meses. Não era suficiente. Não quando se está apaixonada por
alguém. Por alguma razão parecia que eu sempre perdia as pessoas
que amava. Como iria viver sem ele?
E no entanto, ele estava junto a mim. Assim como meus pais.
Eu os sentia tão perto que às vezes quase podia tocá-los, O mesmo
acontecia com Ren, só que... mais forte. Tantas coisas estranhas
haviam acontecido comigo. Eu tinha uma cobra de estimação que
também era uma joia; quase fora comida por um macaco-cavalo-
marinho-vampiro; tinha um namorado que era um tigre na maior
parte do tempo; e aparentemente eu era capaz de disparar raios pela
mão.
Eu estava tão arrasada pela captura de Ren que não conseguia
nem começar a lidar com meu poder de Thor. O que mais poderia
acontecer comigo? Eu não queria pensar nisso porque,
independentemente do que eu imaginasse, a realidade seria muito
pior.
Eu me vesti e desci para ajudar Sr. Kadam. Ele estava ocupado,
trabalhando no computador.
— Bom dia, Srta. Kelsey. Se estiver pronta, tenho alguns mapas
que gostaria que verificasse para mim.
— Claro.
Ele abriu um mapa gigante da Índia e deslizou em minha
direção um papel com a tradução da segunda profecia de Durga. Uma
cabeça com pelo escuro bateu em minha perna e eu me inclinei para
lhe fazer um carinho. Estava feliz por Kishan estar ali, mas não pude
deixar de desejar que fosse um tigre branco sentado ao meu lado.
— Bom dia, Kishan. Já tomou o café da manhã? Mais tarde, se
o Sr. Kadam tiver todos os ingredientes, vou fazer biscoitos para você.
Ele bufou e se acomodou aos nossos pés. Peguei a profecia e a
li.
Procure suas oferendas antes de tudo
Pois as bênçãos de Durga os esperam outra vez.
Um lugar dos deuses dá inicio à sua busca
Sob a glacial montanha azul de Noé.
Deixe que o Mestre do Oceano unte seus olhos;
Desdobre os antigos e sagrados pergaminhos.
Ensine a sabedoria completa e aconselhe
Os portões do espírito ele controla.
O paraíso aguarda; mantenha-se firme
E encontre a pedra do umbigo
Que o levará ao coração de todos
Os tronos frondosos da história antiga.
No topo da árvore do mundo está o prêmio aéreo.
Pegue arco e flecha, atire com precisão.
Discos lançados e grandes disfarces
Podem deter aqueles que perseguem
Quatro casas sem espíritos irão testar
De pássaros, morcegos, cabaças e sereias.
E, por último, olhe para o céu,
Pois guardiões de ferro rodeiam sem voo.
O povo da Índia será vestido
E se erguerá, forte, por todo o globo.
— Humm — ponderei em voz alta. — Bem, as primeiras duas
linhas são óbvias. Temos que ir novamente a um templo de Durga.
Disso já sabíamos. Dessa vez, vamos levar as oferendas apropriadas.
— Sim. Compilei uma lista de templos de Durga em toda a
Índia, assim como alguns que ficam em países próximos.
— Kishan, lembre-se de usar minha tornozeleira de sino.
O Sr. Kadam assentiu e se debruçou sobre suas anotações.
Mordi o lábio e pensei no dia em que Ren me dera a tornozeleira. Ele
tinha me implorado que ficasse, mas eu fui embora.
Que desperdício. Podíamos ter passado todos aqueles meses
juntos se eu não tivesse sido tão teimosa. Eu daria qualquer coisa para
voltar no tempo. Agora Ren tinha sido levado prisioneiro e havia uma
boa possibilidade de que eu nunca mais pusesse os olhos nele.
Tentando escapar de meus pensamentos tristes, tornei ame
concentrar na profecia de Durga.
— Montanha de Noé? E a cordilheira do Himalaia? Como o
senhor chegou a essa conclusão?
— Por causa da Arca de Noé.
— Mas Noé não desembarcou no monte Ararat?
— Você tem boa memória. Isso foi o que pensei a princípio
também, mas o monte Ararat fica na Turquia, não na Índia. A
localização da arca, no entanto, tem sido motivo de intenso debate.
— Está certo, mas o que o levou ao Himalaia?
— Duas coisas me conduziram a essa hipótese. Primeira: não
acredito que o próximo item esteja oculto num lugar muito distante
do continente indiano. A profecia menciona que o item ajudaria o
povo da Índia, portanto não faria sentido estar tão longe. A segunda
razão tem a ver com a história de Noé, A Bíblia não é a única que
descreve um grande dilúvio. Na verdade, dezenas de culturas têm
histórias de uma grande enchente que cobriu a Terra. Pesquisei e
cruzei referências de todos os mitos de dilúvios. Tem Deucalião e
Pirra da Grécia, a história do Dilúvio Épico de Gilgamesh, Tapi dos
Astecas e assim por diante. Uma semelhança entre todos eles é que,
quando as chuvas diminuíram, os povos foram levados para terra
seca.
— Ah, eu não sabia.
— Na Índia existe o mito de que Manu salvou a vida de um
peixe que, por sua vez, lhe disse que o dilúvio estava chegando. Ele
construiu um barco e peixe o arrastou até as montanhas. Muitos
locais foram sugeridos como ponto de desembarque, mas exclui
vários deles por não serem uma “glacial montanha azul”. A montanha
que faz mais sentido para mim é...
— O monte Everest.
— Exato. Se tomarmos o relato ao pé da letra e presumirmos
que a Terra toda estava inundada, a superfície que primeiro
apareceria seria a cordilheira do Himalaia. Como o Himalaia “toca o
céu” poderíamos supor que a segunda busca em que embarcaremos
esteja relacionada a segunda busca em que embarcaremos esteja
relacionada ao ar. Pássaros e outras criaturas voadoras também estão
fortemente presentes na profecia e o objeto que estamos procurado é
chamado de “prêmio aéreo”
— Monte Everest? O senhor não acha que Kishan e eu
teríamos que..
— Não, não. Escalar o monte Everest é algo que somente um
punhado de pessoas corajosas já realizou. Eu não pensaria em
submetê-los a essa tentativa. O que estamos procurando é uma
cidade no pé da montanha, uma cidade com um mestre sábio. Tenho
esperanças de que você possa fazer uma lista das cidades possíveis e
talvez pensar num lugar que ainda não tenha me ocorrido.
— Parece que o senhor já pensou bastante no assunto.
— Pensei. Mas, como você mencionou antes, às vezes um novo
par de olhos pode ajudar.
O Sr. Kadam me entregou uma lista de cidades, que analisei
uma a uma, verificando-as no mapa. De fato, ele já havia riscado todas
as cidades dentro de um raio de várias centenas de quilômetros a
partir do Everest. O único local do mapa ainda não riscado era o norte
do Everest, onde os nomes estavam escritos em chinês.
— Sr. Kadam? Que cidade é esta? — perguntei, indicando um
ponto.
— É Lhasa. Fica no Tibete não na Índia.
— Bem, talvez o professor more lá, no outro lado do Himalaia,
mas o item que estamos procurando ainda esteja escondido na índia.
O Sr. Kadam imobilizou-se por um instante e então correu
para pegar um livro sobre o Tibete.
— Espere só um instante... um lugar dos deuses. — Ele abriu o
livro e consultou o índice. Passando as páginas rapidamente,
começou a murmurar para si mesmo: Mestre do Oceano... portões do
espírito... isso... isso!
Fechou o livro bruscamente e me agarrou num breve abraço,
os olhos
— É isso! Você conseguiu, Srta. Kelsey!
— O que foi que eu fiz?
— Lhasa é a cidade “sob a montanha de Noé”! A tradução de
seu nome é “cidade dos deuses”!
— E quanto ao mestre que deverá nos mostrar coisas?
— Essa é a melhor parte! O Mestre do Oceano é
provavelmente um dos lamas. Possivelmente o próprio Dalai-Lama!
— O quê? Mas Lhasa não fica perto do oceano.
— Ah. Não se trata necessariamente de uma referência literal
ao oceano: Pode significar que sua sabedoria é tão profunda quanto o
oceano ou talvez que sua influência é tão vasta quanto o mar.
— Muito bem, então vamos para Lhasa e pedimos uma
audiência com o Dalai-Lama. — Acariciei o ombro do tigre negro. —
Parece moleza, certo, Kishan?
Ele bufou e ergueu a cabeça.
— É, isso pode ser um problema — murmurou o Sr. Kadam.
— O senhor por acaso tem um relacionamento próximo com o
atual Dalai-Lama Do tipo que o avô de Ren tinha?
— Não. E o atual Dalai-Lama não mora no Tibete. Ele está
vivendo no exílio, na Índia. A profecia indica claramente que
precisamos ir para a cidade “sob a montanha de Noé” e começar nossa
busca a partir dali. Diz que o Mestre do Oceano irá untar seus olhos,
desenrolar pergaminhos sagrados, passar-lhes sabedoria e
possivelmente levá-los ao portão do espírito.
— O que são esses portões?
— Os portões do espírito marcam entradas de templos no
Japão. Dizem que são portas entre o mundo secular e o mundo
espiritual. Quando as pessoas passam por elas, purificam-se e se
preparam para a jornada espiritual que irá acontecer adiante.
— Existem portões do espírito no Tibete?
— Não que eu saiba. Talvez eles tenham um significado
diferente na profecia.
— 0k. E quanto a essa pedra do umbigo?
— Ah, essa eu sei o que é. Acredito que isso signifique que
vocês estão procurando uma pedra ônfalo. Trata-se de pedras que
representam o centro, ou o umbigo, do mundo e várias foram
colocadas na região do Mediterrâneo, a mais famosa das quais está
abrigada no oráculo de Delfos. Alguns estudiosos sugeriram que
vapores gasosos eram direcionados para o alto através da abertura da
pedra e, quando um vidente se punha sobre ela e inspirava o gás, ele
teria uma visão. Supunha-se que era uma forma de a humanidade se
comunicar com os deuses. Diz-se também que, quando uma pessoa
segura a pedra, ela pode ver o futuro. Existe uma pedra na Tailândia,
uma na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém e outra é a pedra
fundamental do templo judaico na Cúpula ou Domo da Rocha.
— Qual é a sua aparência?
— Seu formato é semelhante a um ovo de pé com um buraco
no alto e desenhos entalhados na parte externa.
— Então encontramos essa pedra ônfalo e a seguramos ou
aspiramos seus vapores e ela nos levará a uma árvore do mundo?
— Correto.
— E a árvore?
— A árvore do mundo é outro tema bastante comum em
muitas culturas e mitos. Existe uma árvore que realiza desejos e que
cuidou das necessidades do povo da Índia chamada Kalpavriksha. Ela
floresceu quando as pessoas eram sábias e boas, mas, quando a
natureza da humanidade mudou, a árvore tornou-se obscura.
— Humm.
— Em meus estudos sobre o Fruto Dourado, encontrei o
registro de uma árvore especial no templo de Kamakshi, no sul da
Índia. Trata-sede uma mangueira que produz quatro tipos de mangas,
que se acredita representem os quatro Vedas ou as castas. Na
mitologia nórdica, existe a história de uma árvore do mundo chamada
Yggdrasil. Na mitologia eslava e na finlandesa, eles escolheram um
carvalho para representar a árvore sagrada do mundo. Na cultura
hindu, é uma figueira chamada Ashvastha. Pode-se vê-la como a
Árvore da Vida. Existem árvores semelhantes mencionadas nas
culturas da Coreia, da Mesoamérica, da Mongólia, da Lituânia, da
Sibéria, da Hungria, da Grécia...
— Entendi. Então estamos procurando uma árvore especial.
Pelo menos sabemos de que tipo?
— Não. Todas as histórias usam exemplos de árvores comuns
em suas terras, mas a maior parte dos mitos se refere a uma espécie
muito grande, com aves descansando em seus galhos. Essas provas
que são mencionadas parecem se encaixar nesse tema.
— Resumindo, não comemos o fruto, certo?
Ele riu.
— Nem todos os mitos incluem frutos, mas você está
absolutamente certa. Há uma prova associada à maioria deles. Alguns
até mencionam uma serpente gigante em sua base. As folhas ligam a
Terra ao céu e supõe-se que as raízes desçam até o submundo.
— Bem, quanto a essas... provas, O senhor acha que vou
encontrar alguma coisa apavorante que tentará me devorar, como os
kappa?
Ele ficou imediatamente sério.
— Espero que não, Srta. Kelsey. Na verdade, estou animado
com a palavra paraíso. Torço para que essas provas sejam mais um
exercício mental do que físico.
— Certo. Mas vou precisar ficar de olhos abertos para os
guardiões de ferro. Pelo que diz aí, temos que ascender ao topo para
encontrar o prêmio e passar por quatro provas. O que será que
significa “o povo da Índia será vestido”? O senhor acha que isso se
refere a roupas?
— Poderia ser um símbolo da realeza, suponho.
— Bem, parece que o senhor desvendou tudo ou pelo menos
tudo o que lhe foi possível. O próximo passo deve ser voltar ao templo
de Purga. Acha que vai dar certo sem Ren?
— Ah. Não se trata necessariamente de uma referência literal
ao oceano: Pode significar que sua sabedoria é tão profunda quanto o
oceano ou talvez que sua influência é tão vasta quanto o mar.
— Muito bem, então vamos para Lhasa e pedimos uma
audiência com o Dalai-Lama. — Acariciei o ombro do tigre negro. —
Parece moleza, certo,
— Não custa tentar. Você disse que Ren precisou assumir a
forma de tigre antes de Purga aceitar sua oferenda, correto?
— Sim. Ela mencionou especificamente o relacionamento
entre mim e Ren.
— Então seria aconselhável ter um tigre em sua companhia.
Vamos usar Kishan em vez de Ren, se você estiver disposto, é claro.
O tigre negro bufou em resposta, o que presumimos que
significasse Olhei para baixo e acariciei-lhe a cabeça.
— Espero que ela goste de pelo preto.
— Enquanto isso, vou dar alguns telefonemas para ver se
consigo arranjar uma audiência com alguém no Tibete ou talvez até
mesmo com o Dalai-Lama aqui na Índia.
— Acha que isso vai funcionar? Que ele vai concordar em se
encontrar
— Não tenho a menor ideia.
— Mas não seria melhor esperar por Ren? Não deveríamos
encontrá-lo antes de sair à procura do próximo item?
— Srta. Kelsey, não creio que Ren acharia melhor esperarmos.
Honestamente, não estou tendo sucesso em localizá-lo e minhas
esperanças são de que quando vocês descobrirem o segundo item.,
— Deparemos com uma visão outra vez.
— Exatamente.
— E que assim possamos descobrir onde Lokesh está, o que
nos levaria até Ren.
— Sim. Eu sei que é um tiro no escuro, mas talvez seja nossa
única pista.
— Está certo. Eu irei.
Kishan grunhiu e assumiu a forma humana.
— Eu irei com você.
— Não se sinta obrigado a me acompanhar, Kishan.
— É claro que me sinto obrigado — disse ele, contrariado. —
Ren me incumbiu de tomar conta de você e é exatamente o que
pretendo fazer. Não sou nenhum covarde.
Peguei a mão dele.
— Kishan, eu nunca o considerei um covarde. E obrigada. Vou
me sentir muito mais segura com você por perto.
Seu rosto tenso relaxou e ele prosseguiu:
— Ótimo. Agora que isso está acertado, quer treinar por
algumas horas?
— É uma boa ideia.
O Sr. Kadam nos dispensou.
— Vamos trabalhar juntos um pouco esta tarde, Srta. Kelsey,
talvez depois do almoço.
— Fechado. Até mais tarde.
Encontrei Kishan no dojo depois de trocar de roupa. Ele
treinou comigo a habilidade de derrubar alguém muito maior que eu.
Tive que praticar nele várias vezes e então ele me submeteu a um
circuito de alongamento e musculação. Quando finalmente decidiu
que nossa sessão estava terminada, me deu um tapinha debaixo do
queixo e disse que estava orgulhoso de mim.
Exatamente quando eu me preparava para subir e almoçar com
o Sr. Kadam, Kishan se aproximou de mim correndo por trás e me
jogou sobre seu ombro. Ele subiu os degraus de dois em dois
enquanto eu socava suas costas. Ele ria.
— Se não está preparada para se livrar de seu atacante, terá
que sofrer as Consequências.
Ele me colocou na cadeira de frente para o Sr. Kadam e pegou
alguma coisa para comer.
Eu estava cansada e dolorida.
— Não creio que tenha energia para outra sessão prática de
esgrima, Sr. Kadam. Kishan testou meus limites hoje.
— Sem problema, Srta. Kelsey. Podemos praticar outra coisa.
Vamos experimentar sua habilidade com os raios.
Fiz uma careta.
— E se foi apenas um acaso? Talvez tenha sido uma coisa
isolada.
— Talvez a senhorita sempre tenha possuído esse poder,
apenas motivo para usá-lo — Contrapôs.
— Está bem, vou tentar. Só espero não atingir o senhor por
acidente.
— Sim. Tente evitar isso.
Terminamos o almoço e saímos da casa. Eu nunca havia pisado
no terreno anexo à propriedade. Degraus levavam até uma área do
tamanho de um campo de futebol americano cercada pela selva por
todos os lados. O Sf. Kadam havia arrumado fardos de feno com
placas de alvo a diferentes distâncias, como os que se veem em
torneios de arco e flecha.
— Quero primeiro tentar alvos estáticos e, se tiver sucesso,
também gostaria de tentar alvos móveis. Bem, você disse que estava
furiosa e que precisava proteger Ren. Que um fogo pareceu começar
em sua barriga e se mover até sua mão, correto? Quero que pense
nisso e tente recuperar essa sensação.
Fechei os olhos e me imaginei diante de Ren, enquanto ele
cambaleava atrás de mim. Deixei as emoções me dominarem
novamente e visualizei seus captores se aproximando. Uma centelha
negra queimou em minha barriga. Concentrei-me nela e a encorajei a
se expandir.
Ela explodiu como uma bolha de lava, subindo, veloz, pelo
meu corpo e disparou pela minha mão. Uma luz espessa, branca e
pulsante lançou-se da minha palma na direção do primeiro alvo e o
acertou. O alvo inteiro explodiu como uma bomba incendiária,
deixando apenas fragmentos fumegantes de feno, que se consumiram,
flutuando e enchendo o ar de fuligem. Tudo que restou do alvo foi
uma marca negra no chão. Minúsculas espirais escuras de fumaça se
ergueram, subindo para o céu, e foram lentamente se dissipando.
O Sr. Kadam coçou a barba
— Uma arma muito eficaz.
— Sim, mas não quero fazer isso com alguém. Não pareceu
assim tão desativa em pessoas.
— Não vamos nos preocupar com isso por enquanto. Primeiro,
vamos trabalhar a distância. Passe para o próximo alvo e depois para
o outro.
Explodi os dois alvos em sucessão sem nenhum declínio de
intensidade.
— Kishan, você faria a gentileza de dispor mais alvos? Dessa
vez, gostaria que ficassem mais distantes e lado a lado.
Kishan se dirigiu para a outra extremidade
— Gostaria que você buscasse expandir seu alcance para
englobar os três alvos. Tente imaginar algo grande, como um elefante
ou dinossauro, e pense que precisa atingir toda a sua extensão.
— 0k, vou tentar.
Concentrei-me nos alvos na outra extremidade do campo
enquanto esperava que Kishan saísse do caminho. Estreitando os
olhos por causa do sol, disparei um raio e só atingi o alvo da extrema
esquerda.
— Está tudo bem. Tente de novo, Srta. Kelsey.
Dessa vez, concentrei-me em sustentar a descarga por mais
tempo e movi a mão em um arco, permitindo que o raio atingisse
cada um dos alvos.
— Humm, adaptação interessante. Agora sabemos que pode
mantê-lo.
Ele girou um dedo no ar, descrevendo um grande círculo,
sinalizando Kishan que dispusesse os alvos novamente.
— Tente outra vez. Mas agora concentre-se em ampliá-lo.
Feche os olhos por um instante e visualize um leque. Enquanto o raio
deixa sua mão, espalhe-o à sua frente, de modo que a descarga se
expanda como as extremidades de um leque.
— Está bem, mas fique atrás de mim.
Ele assentiu e se moveu um pouco para trás. Estendi a mão à
frente e deixei o fogo percorrer o meu braço. Imaginei-me segurando
o leque e ergui a palma na direção dos alvos. A luz branca e espessa
projetou-se mais lenta- mente dessa vez. À medida que disparava,
abri os dedos, como se fosse um leque, impelindo o poder a se
expandir. E funcionou.., bem demais. Eu não só removera os alvos,
como também as árvores de ambos os lados do campo. Kishan teve
que se jogar no chão para não ser atingido.
O Sr. Kadam chamou Kishan e me disse:
— Muito bem! Com um pouco mais de prática, acho que a
senhorita será capaz de acertar exatamente o que quiser quando
precisar. Amanhã vamos praticar intensidade e ver se conseguimos
reduzir a força do raio a fim de incapacitar em vez de...
— Exterminar?
— Sim. É tudo uma questão de controle. Aposto que em breve
conseguirá esse domínio, Srta. Kelsey.
— Espero que esteja certo.
— Gostaria que praticasse um pouco mais com Kishan nos
próximos dias. Pense apenas em acertar o alvo e ampliar seu alcance.
Vou trabalhar com a senhorita amanhã a concentração de seus níveis
de poder.
— Certo. Obrigada.
— As semanas voaram. Antes de que eu me desse conta, um
mês e meio havia se passado. Completei meu período na universidade
à distância. Os professores ficaram fascinados com a explicação do Sr.
Kadam de que havia encontrado um artefato raro e precisava da
minha ajuda para catalogá-lo. Ele lhes prometeu que eu escreveria um
ensaio sobre a peça.
Eu mal podia esperar para ouvir sobre o que escreveria. Fiz
minhas provas finais, o que me deu algo em que me concentrar que
não fosse Ren. O Sr. Kadam também deu uma desculpa junto à
universidade por Ren, dizendo que houve uma emergência familiar e
que ele precisara retornar à Índia. O reitor pareceu muito
compreensivo e disposto a fazer o que pudesse para ajudar.
Depois de concluir os trabalhos da universidade, eu ajudava o
Sr. Kadam com as anotações no início da manhã e então treinava com
Kishan até a hora do almoço. A tarde era reservada para a prática com
armas. Kishan me ensinava a cuidar das armas e quais escolher nos
diferentes tipos de batalhas. Também me treinava no combate corpo
a corpo e em várias formas de derrubar adversários mais fortes.
No início da noite eu praticava com o Sr. Kadam o meu poder
do raio. Agora eu já conseguia controlar a intensidade, de modo que
não mais destruía os alvos. Podia abrir um buraco no centro do alvo,
como uma seta. Ou podia atingir todos eles ao mesmo tempo e
derrubá-los. Era capaz de destruir todos ou apenas o que eu
escolhesse.
Isso me dava uma sensação de poder, mas também era muito
assustador. Com esse tipo de força eu poderia fazer o papel de
heroína ou de vilã, só que, na verdade, eu não queria ser nenhum dos
dois. Tudo que eu queria era ajudar Ren e Kishan a quebrar a
maldição... e ficar com Ren.
À noite, sozinha, eu lia ou escrevia em meu diário. A casa era
diferente sem Ren. A todo instante eu esperava vê-lo de pé na
varanda. Sonhava com ele todas as noites. Ele estava sempre
aprisionado, amarrado a uma mesa ou numa gaiola. Todas as vezes
que eu tentava soltá-lo ou resgatá-lo, ele me detinha e me mandava
embora.
Uma noite acordei de um dos meus pesadelos com Ren e saí da
cama. Peguei minha colcha e me dirigi para a varanda. Uma cabeça
escura descansava no banco de balanço e, por um instante, meu
coração parou de bater.
Abri a porta de correr e saí. A cabeça se mexeu.
— Kelsey? O que está fazendo acordada?
Meu pobre coração voltou ao estado de dormência.
— Ah. Oi, Kishan. Tive um pesadelo. O que você está fazendo
aqui fora?
— Durmo aqui fora com frequência. Gosto de ficar ao ar livre e
é mais fácil ficar de olho em você.
— Acho que estou bastante segura aqui. Duvido que você
precise ficar de olho em mim enquanto estivermos aqui.
Ele se moveu e me convidou para me sentar ao lado dele.
— Não vou deixar nada de mau se aproximar de você, Kelsey.
É minha culpa o que aconteceu.
— Não é, não. Você não poderia ter impedido.
Ele recostou a cabeça na almofada, fechou os olhos com força e
esfregou as têmporas.
— Deveria ter sido mais alerta. Ren pensou que eu estaria
menos distraído que ele. A verdade é que eu provavelmente estava
mais distraído. Teria sido melhor se eu nunca houvesse ido para os
Estados Unidos.
Confusa, perguntei:
— Como assim? Por que está dizendo isso?
Ele olhou para mim. Olhos dourados penetraram os meus,
como se procurando a resposta a uma pergunta que ele não fizera.
Então afastou os olhos bruscamente, grunhiu e murmurou para si
mesmo:
— Eu nunca aprendo.
Segurei sua mão.
— Qual é o problema?
Ele me encarou novamente, com relutância.
— Tudo o que aconteceu conosco foi culpa minha. Se eu não
houvesse me aproximado de Yesubai, nada teria mudado. Ela teria
sido a princesa de Ren e não haveria morrido. Você não estaria em
perigo agora. Meus pais teriam levado vidas normais. Todos à minha
volta sofreram porque não pude me controlar.
Pus a outra mão sobre a dele, aninhando-a entre as minhas.
Ele virou a dele e agarrou os meus dedos.
— Kishan, você a amava, o que, segundo aprendi, era uma
coisa muito rara naquele tempo. O amor nos leva a fazer coisas
malucas. Yesubai queria ficar com você apesar de todas as implicações
negativas. Aposto que, mesmo que ela soubesse que sua vida seria
abreviada, provavelmente faria tudo de novo.
— Não estou certo disso. Tive muito tempo para pensar sobre
tudo. Yesubai e eu mal nos conhecíamos. Nossos encontros secretos
eram muito breves e eu seria desonesto se dissesse que nunca
suspeitei que ela tenha agido como um peão no jogo do pai. Eu não
sei se ela me amava de verdade. De certa forma, acho que, se tivesse
essa certeza, então tudo teria valido a pena.
— Ela tentou salvar vocês dois, não foi?
Ele assentiu,
— Ela não teria ido contra o pai se não o amasse. Além disso,
não vejo como ela poderia ter resistido. Você é tão bonito quanto seu
irmão. Ë doce e encantador quando Ren não está por perto. Se ela não
o amava, então era louca.
Como ele não falou nada, continuei.
— Também faz sentido porque, para mim, a única razão por
que ela poderia ter recusado Ren era se amasse você. Além disso,
minha vida teria sido muito mais triste sem Ren e você. — Apertei
seus dedos. — Não é culpa sua que essas coisas tenham acontecido.
Lokesh é o responsável, não você.Ele provavelmente teria ido atrás de
seus amuletos mesmo que Yesubai não houvesse entrado na vida de
vocês.
— Fiz um pacto com o demônio, Kelsey. Quando você faz isso,
deve pagar um preço.
— Você tem razão. Quando fazemos escolhas erradas ou
tomamos decisões ruins, precisamos sempre enfrentar as
consequências. Mas se apaixonar não é uma escolha ruim.
Ele deu uma risada autodepreciativa.
— Para mim, é.
— Não. Concordar em agir pelas costas do seu irmão é que foi
a escolha ruim, mas, no fim, você escolheu a sua família. Escolheu
proteger e ficar ao lado de Ren e ajudá-lo a escapar.
— Ainda assim, foi um erro. Eu não deveria ter confiado em
Lokesh. Ficamos sentados, balançando em silêncio por um momento.
— Errar é o que nos torna humanos — sussurrei — É assim
que aprendemos. Minha mãe sempre dizia que cometer um erro não é
ruim. Ruim é se recusar a aprender com ele a fim de não repeti-lo.
Ele se inclinou para a frente e colocou a cabeça entre as mãos.
Falou baixinho, como se zombando de si mesmo.
— Certo. Era de se esperar que eu aprendesse. Para não repetir
a história.
— Você está correndo o risco de repetir a história? —
provoquei. — Andou batendo papo com Lokesh?
— Eu mataria Lokesh sem hesitar caso nossos caminhos se
cruzassem novamente. Mas, se estou correndo o risco de repetir a
história? Estou, sim.
— Você não vai trair seu irmão novamente.
— Pelo menos não da maneira que você está pensando.
Suspirei.
— Kishan, não quero que você passe todo o seu tempo livre
tomando conta de mim. Você está claramente obcecado pelo passado.
Deveria estar aproveitando sua nova vida. Saiu com alguém esses
meses em que esteve cm casa? Fez aulas fora?
Ele desviou os olhos.
— Não é pelo passado que estou obcecado. — Ele soltou um
suspiro. —Estudar não me interessa muito. — Ele se pôs de pé e
caminhou até o parapeito da varanda. Debruçou-se e ficou olhando a
piscina iluminada lá embaixo. Suavemente, disse: — E parece que as
únicas garotas por quem me interesso... sempre pertencem a Ren.
Fitei suas costas, surpresa. Ele se virou e apoiou um lado do
quadril no parapeito. Ficou observando minha reação atentamente, a
expressão vulnerável e solene.
— Você está falando sério? — gaguejei.
— Sim. Estou falando sério. Sou um cara bastante franco e
direto. Não brinco com esse tipo de coisa.
— Mas eu não entendo. No caso de Yesubai, posso
compreender, com seus olhos cor de violeta e os longos cabelos
negros, mas certamente você...
— Kells, pare por aí. Não estou zombando de você nem
fazendo joguinho. Levei muito tempo para decidir se devia dizer
alguma coisa. Olhe, eu sei que você o ama e eu nunca pensaria em
tentar tirá-la dele. Pelo menos não quando sei que não tenho
absolutamente nenhuma chance. — Ele sorriu, sarcástico. — Não lido
muito bem com a rejeição
Cruzou os braços diante do peito.
— Mas, sim. Se Ren não estivesse com você, eu faria tudo que
estivesse meu alcance para tê-la em minha vida. Para conquistá-la.
Recostei-me no sofá, chocada.
— Kishan. Eu...
— Ouça, Kelsey. Você... me acalma. Você conserta o que está
destruído e me dá a esperança de que eu posso voltar a ter uma vida.
E, a despeito do que possa pensar, você é tão linda quanto Yesubai. Eu
sinto... — Ele desviou os olhos, constrangido, e resmungou. — Que
tipo de homem eu sou? Como isso pôde acontecer comigo? Duas
vezes! Eu mereço. Dessa vez o vencedor é Ren. É justo. Agora
fechamos o círculo. — Ele virou-se novamente para mim. — Por
favor, me perdoe. Não era minha intenção preocupá-la com isso.
Kishan era diferente quando Ren não estava por perto. Ele
deixava sua vulnerabilidade transparecer e não tentava encobri-la
com a arrogância e a fanfarronice que sempre exibia para irritar o
irmão. Eu sabia que ele estava do sincero. Suas palavras me afetaram
profundamente. Elas me entristeciam. Eu sabia que ele precisava se
curar do passado tanto quanto Ren. Decidi tentar tornar o clima mais
leve.
Levantei-me e o abracei. Minha intenção era a de um abraço
breve, mas ele me segurou como se eu fosse sua única âncora para a
humanidade. Dei tapinhas em suas costas e me afastei. Então peguei
sua mão e o puxei de volta até o banco. Adotei a abordagem prática
de minha mãe diante de situações difíceis. Ela sempre dizia que a
melhor coisa que se pode fazer para oferecer apoio a uma pessoa é ser
amigo e sincero.
— Bem, Kishan, só para registrar, se Ren existisse, em pensar
duas vezes.
— Olhe, Kells, esqueça o que eu disse, bem? — pediu Kishan.
— De qualquer modo, é inútil.
— Sabe, eu nunca agradeci a você por ter socado Ren e feito
com que ele fosse atrás de mim no Oregon. Eu nunca teria reunido
coragem suficiente para voltar para ele.
— Não me faça parecer o herói, Kells.
— Mas você foi meu herói. Eu talvez nem estivesse com Ren se
não fosse por você.
— Não me lembre disso. A verdade é que eu a queria de volta
provavelmente tanto quanto ele. Se Ren não fosse, eu teria ido atrás
de você para conquistá-la e talvez estivéssemos tendo uma conversa
inteiramente diferente agora.
Por um minuto deixei-me imaginar o que teria acontecido se
Kishan tivesse ido ao meu encontro no Natal, em vez de Ren. Dei-lhe
um soco de leve no braço.
— Não se preocupe. Estou aqui agora. Provavelmente é só da
minha comida que você gosta. Faço um biscoito com gotas de
chocolate e manteiga de amendoim que é imbatível.
— Certo... comida. — eu o ouvi murumurar.
— Podemos ser amigos?
— Eu sempre fui seu amigo.
— Ótimo. Tenho um amigo e herói. Boa noite, Kishan.
— Boa noite, bilauta.
Da porta, eu me virei.
— E não se preocupe. Seus sentimentos devem ser
temporários. Tenho certeza de que quanto mais você me conhecer,
mais irritante irei me tornar. Possuo um lado rabugento que você
ainda não viu.
Ele se limitou a erguer a sobrancelha, sem dizer nada.
Apesar de minha insistência de que ficaria bem sem que ele
tomasse conta de mim, era bom saber que havia um tigre dormindo
na varanda, O sono por fim me venceu. Pelo menos naquela noite,
não tive mais pesadelos.
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