Encontramos o Sr. Kadam do lado de fora do templo. Quando
perguntamos se tinha notado a estátua se movendo, ele respondeu
que não. Tampouco sentira o vento. Eu lhe disse que ele deveria ir
conosco da próxima vez. Ele sempre assumia a posição de vigia e
afirmou que achava que Durga só apareceria para mim e os tigres e
que sua presença poderia nos desviar de nossa trajetória.
— Evidentemente, se o senhor fosse conosco, cairia sob o
encanto de Durga, como aconteceu com Kishan — provoquei. — E
então eu teria que tirar os dois de sua letargia amorosa.
Kishan fez cara feia para mim, enquanto o rosto do Sr. Kadam
se iluminou, encantado.
— Então a deusa é bonita?
— É normal — respondi.
Kishan começou a tagarelar.
— Sua beleza supera a de todas as outras mulheres. Os lábios
de rubi, os braços macios e os longos cabelos negros bastariam para
fazer qualquer homem perder o controle de suas faculdades.
— Ah, por favor! — desdenhei. — Que exagero! Ren nunca
reagiu assim.
Kishan me encarou.
— Talvez Ren tivesse um motivo para olhar para outro lado.
O Sr. Kadam riu.
— Gostaria muito de conhecê-la, se fosse possível.
— Não custa nada tentar, O pior que pode acontecer é não
acontecer nada. Nesse caso, o senhor iria embora e nós tentaríamos
de novo.
Quando chegamos ao hotel, mostramos ao Sr. Kadam nossas
novas armas. Kishan continuava falando que a deusa isso e a deusa
aquilo, girando seu disco na luz para que o ouro cintilante refletisse
nas paredes do quarto do hotel. Escutei por algum tempo e ouvi o Sr.
Kadam explicar que o disco resentava o sol, que era a fonte de toda
vida, e que o círculo simbolizava o ciclo de vida, morte e
renascimento. Então me desliguei, para não ouvir mais constantes
elogios de Kishan a Durga e suas feições adoráveis e femininas, o que
me dava náuseas.
Encostei-me no batente da porta que ligava os quartos dos
dois, revirei os olhos e, durante um intervalo no tributo de Kishan a
Durga, ironizei;
— Você vai gritar como Xena quando lançar o disco? Não!
Melhor que isso! Vamos comprar uma saia de couro para você.
Os olhos dourados de Kishan se voltaram para mim.
— Espero que suas flechas sejam tão afiadas quanto sua língua,
Kelsey.
Ele veio na minha direção. Não me movi, bloqueando-lhe a
passagem, mas ele simplesmente me segurou e me colocou de lado.
Deixando as mãos em meus braços por um instante, ele se inclinou e
sussurrou:
— Talvez você esteja com ciúme, bilauta.
Então fechou a porta de ligação entre os quartos, deixando-me
sozinha com o Sr Kadam.
Perturbada, joguei-me numa cadeira e resmunguei:
— Eu não estou com ciúme.
O Sr. Kadam me olhou, pensativo.
— Não, não está. Pelo menos não da maneira que ele poderia
esperar.
Eu me endireitei na cadeira.
— O que o senhor quer dizer?
— A senhorita o protege.
Resfoleguei.
— De quê? De suas próprias ilusões?
Ele riu.
— Não. É evidente que a senhorita se importa com ele. Quer
que ele encontre a felicidade. E, como Ren não está aqui, todo o seu
instinto maternal está focado em Kishan.
— Não acho que o que sinto por Ren seja maternal.
— Bem, é em parte, pelo menos. Lembra-se do que a tecelã lhe
disse sobre os diferentes fios?
— Sim. Ela disse que sou a urdidura.
— Exatamente. Os fios de Ren e Kishan se entrelaçam ao seu
redor. Sem sua força, o tecido não ficaria completo.
—Hum.
—Srta. Kelsey, sabe algo a respeito de leões?
—Muito pouco.
— O leão não caça sozinho. Sem a leoa, ele morreria.
— Não sei se estou entendendo.
— Estou dizendo que, sem a leoa, o leão morre. Kishan precisa
da senhorita. Talvez ainda mais do que Ren.
— Mas eu não posso ser tudo para os dois.
— Não estou pedindo que seja. Só estou dizendo esperança.
Algo a que se agarrar.
— Posso ser amiga dele. Até posso caçar para ele. Mas amo
Ren. Não vou desistir dele.
O Sr. Kadam bateu de leve na minha mão.
— Uma pessoa amiga, alguém que se importe com ele, que o
ame o deixe desistir de si mesmo, é disso que Kishan precisa.
— Mas não foi isso que o senhor fez por ele durante todos
esses anos?
— Ah, sim. Claro. Mas um rapaz precisa de uma moça que
acredite nele. Não de um velho rabugento.
Levantei e o abracei.
— Velho e rabugento são duas palavras que eu nunca usaria
para descrevê-lo Boa noite.
— Boa noite, Srta. Kelsey. Partiremos bem cedo amanhã,
portanto descanse bem.
Naquela noite sonhei com os dois irmãos. Eles estavam diante
de mim e Lokesh me ordenava que escolhesse qual deles viveria e
qual morreria. Ren sorriu, triste, e acenou com a cabeça na direção de
Kishan. O rosto de Kishan se contraiu e ele desviou o olhar de mim,
sabendo que eu não o escolheria. Eu ainda ponderava minha escolha
quando a ligação do serviço de despertador do hotel me acordou com
um susto.
Arrumei minhas coisas e encontrei o Sr. Kadam e Kishan no
saguão. Dirigimos em silêncio por cerca de 20 quilômetros até
Katmandu, a maior cidade e capital do Nepal. Kishan e eu
permanecemos no Jeep enquanto o Sr. Kadam entrou num prédio
para pegar os últimos documentos de que precisávamos para a
viagem pelo Himalaia.
— Kishan, eu queria pedir desculpas por ter agido como uma
idiota ontem. Se você quer se apaixonar por uma deusa, vá em frente.
Ele bufou.
— Não estou me apaixonando por uma deusa, Kells. Não se
preocupe comigo.
— Bem, ainda assim. Fui insensível.
Ele deu de ombros.
— As mulheres não gostam de ouvir os homens falarem sobre
outras mulheres. Foi rude da minha parte agir daquele jeito. Confesso
que só elogiei tanto a beleza dela para irritar você.
Eu me virei no banco.
— O quê? Por que você faria isso?
— Queria que você sentisse ciúme e, quando não sentiu, isso...
me aborreceu.
— Ah, Kishan, você sabe que eu ainda...
— Eu sei. Eu sei. Não precisa me lembrar disso. Você ainda
ama Ren.
— Amo. Mas isso não significa que não me importe com você.
Sou sua urdidura também, lembra?
Seu rosto se iluminou.
— É verdade.
— Que bom. Não se esqueça disso. Vamos todos ter um final
feliz, está bem?
Estendi minha mão para ele, que a segurou entre as dele e
sorriu.
— Promete?
Retribui o sorriso.
— Prometo.
— Vou cobrar. Talvez eu devesse registrar isso por escrito. Eu,
Kelsey, prometo a Kishan que ele terá o final feliz que procura. Devo
definir os termos para você agora?
— Ah, não. Prefiro deixar meio vago por enquanto.
— Tudo bem. Enquanto isso vou criar uma lista mental do que
constitui um final feliz e depois informo a você.
— Faça isso.
Ele beijou meus dedos com atrevimento, segurando-os com
força enquanto eu tentava livrar minha mão.
— Kishan!
Ele riu quando finalmente me soltou e então se transformou
em tigre antes que eu pudesse repreendê-lo.
— Covarde — murmurei, virando-me para a frente no banco.
Eu o ouvi rosnar baixinho, mas o ignorei.
Durante os minutos seguintes quebrei a cabeça tentando
encontrar um final feliz para Kishan. Àquela altura, meu próprio final
feliz não estava garantido. O melhor que pude encontrar foi a
realização das quatro tarefas, para que os irmãos não precisassem
mais ser tigres. Esperava que, ao concluí-las, os finais felizes viessem
por si mesmos.
O Sr. Kadam voltou e disse:
— Recebemos permissão para fazer o percurso da Estrada da
Amizade até o Tibete. Isso foi praticamente um milagre.
— Uau! Como o senhor conseguiu?
— Um alto funcionário do governo chinês me deve um favor.
Ainda assim, temos que respeitar as paradas turísticas e nos
apresentar em todos os postos ao longo do caminho para que eles
possam ficar de olho em nós. Partimos imediatamente. Nossa
primeira parada é em Neyalam, que fica a cerca de 150 quilômetros
daqui. Devemos levar umas cinco horas para chegar à fronteira da
China com o Nepal.
— Cinco horas? Espere aí: 150 quilômetros? Isso dá
aproximadamente 30 quilômetros por hora. Por que demora tanto?
O Sr. Kadam deu uma risadinha.
— Vai ver.
Ele me entregou o guia de viagem, o mapa e alguns folhetos
para que eu pudesse acompanhar e ajudá-lo no percurso. Eu pensava
que as montanhas Rochosas fossem imensas, mas, comparar o
Himalaia às Rochosas era como comparar as Rochosas aos montes
Apalaches, literalmente montanhas a montinhos de terra. Os picos
estavam cobertos de neve, embora estivéssemos no início de maio.
Geleiras rochosas elevavam-se diante de nós e o Sr. Kadam me
disse que a paisagem se transforma em tundra e depois em gelo
permanente e neve um pouco mais acima. As árvores eram pequenas
e esparsas. A maior parte do solo era coberta por gramíneas, arbustos
anões e musgo. Ele disse que havia algumas florestas de coníferas em
outras partes do Himalaia, mas passaríamos principalmente por
pradarias.
Quando ele disse “Vai ver’ não estava brincando. Estávamos
subindo as montanhas a cerca de 15 quilômetros por hora. A estrada
não se encontrava exatamente em boas condições e sacolejávamos e
desviávamos de buracos e às vezes de rebanhos de iaques e ovelhas.
Para passar o tempo perguntei ao Sr. Kadam sobre a primeira
empresa que ele adquiriu.
— Foi a Companhia de Comércio da Índia Oriental. A empresa
foi fundada antes de eu nascer, no início do século XVII, mas se
tornou um negócio muito grande em meados do século XVIII.
— Que tipo de coisas o senhor comercializava?
— Ah, uma porção delas. Tecidos.., seda, principalmente...
chá, índigo, especiarias, salitre e ópio.
— Sr. Kadam! O senhor era traficante de drogas? — brinquei.
Ele fez uma careta.
— Não na atual definição do termo. Lembre-se de que na
época o ópio era considerado um produto medicinal. E no início eu de
fato transportava a droga. Eu possuía diversos barcos e organizava
grandes caravanas. Quando a China proibiu o comércio do ópio,
desencadeando as Guerras do Ópio, parei de transportá-lo e
concentrei a maior parte dos negócios no comércio de especiarias.
— Ah, então é por isso que o senhor gosta tanto de moer os
condimentos
Ele sorriu.
— Sim, ainda gosto de procurar os produtos de melhor
qualidade e usá-los quando cozinho.
— Então o senhor sempre esteve no negócio de cargas.
— Acho que sim. Nunca pensei nisso dessa maneira.
— Tenho duas perguntas. O senhor ainda tem barcos? Sei que
conserva um avião daquela empresa, mas ficou também com algum
barco? Seria interessante. A segunda pergunta é: o que é salitre?
— O salitre também é conhecido como nitrato de potássio. Era
usado para fabricar pólvora e também é, ironicamente, um
conservante de alimentos. E, em resposta à sua outra pergunta, os
meninos têm um barco, mas não um dos meus barcos de transporte
originais.
— Que tipo de barco?
— Um pequeno iate.
— Ah, eu deveria ter adivinhado.
Paramos perto da fronteira entre China e Nepal, numa cidade
chamada Zhangmu, onde tivemos que preencher formulários
novamente. Então, após um dia inteiro dirigindo e percorrendo
apenas um total de 155 quilômetros, chegamos a Neyalam e nos
hospedamos numa pequena pousada para pernoitar.
No dia seguinte subimos ainda mais. Um dos folhetos dizia
que, ao fim do dia, estaríamos acima dos 4 mil metros. Nessa parte da
viagem, vimos seis das mais importantes montanhas do Himalaia,
incluindo o monte Everest, e paramos para admirar a visão magnífica
do monte Xixapangma.
No terceiro dia comecei a me sentir um pouco enjoada e o Sr.
Kadam disse que podia ser efeito da altitude. Ele explicou que isso era
comum quando se viajava acima dos 3.500 metros.
— Deve passar. A maioria das pessoas melhora em algumas
horas, mas para outras pode demorar vários dias até o organismo se
acostumar com a alta altitude.
Suspirei e inclinei meu assento para trás, a fim de descansar a
cabeça, pois me sentia tonta, O restante do dia passou num borrão.
Fiquei decepcionada por não poder apreciar o cenário. Seguimos até
Xigatse, onde o Sr. Kadam e Kishan visitaram o mosteiro de
Tashilumpo enquanto eu permanecia no pequeno hotel em que nos
hospedamos.
Quando eles voltaram trazendo meu jantar, virei para o outro
lado e fiz sinal para que fossem embora. O Sr. Kadam foi, mas Kishan
ficou.
— Não gosto de vê-la doente, Kells. O que posso fazer?
— Acho que nada.
Ele me deixou sozinha por um minuto, mas logo voltou,
pressionando um pano úmido em minha testa.
— Olhe, trouxe um pouco de água com limão. O Sr. Kadam
disse que ajuda a hidratar
Kishan me obrigou a beber o copo inteiro e depois me serviu
outro da garrafa de água que eles haviam comprado. Só me deixou
parar depois do terceiro copo.
— Como está sentindo agora?
— Melhor, obrigada. Mas minha cabeça ainda está latejando.
Tem aspirina? Kishan encontrou um pequeno frasco. Engoli dois
comprimidos, sentei-me e coloquei os cotovelos sobre os joelhos,
massageando as têmporas com os dedos.
Ele me observou em silêncio por um instante e depois disse:
— Deixe-me ajudar
Kishan me empurrou um pouco para a frente a fim de se
posicionar atrás de mim. Pôs as mãos quentes nas laterais da minha
cabeça e começou a massagear minhas têmporas. Depois de alguns
minutos, passou para o couro cabeludo e para a nuca, eliminando
com a massagem a rigidez resultante de três dias sentada imóvel num
carro.
Quando ele chegou aos ombros, perguntei:
— Onde você e Ren aprenderam a fazer massagem? Os dois
são muito bons nisso.
Ele se deteve por um momento e depois lentamente
recomeçou, enquanto falava.
— Eu não sabia que Ren tinha feito massagem em você. Nossa
mãe nos ensinou. Ela recebeu treinamento especializado.
— Ah. Bem, é maravilhoso. Suas mãos são tão quentes...
Minha dor de cabeça quase desapareceu.
— Ótimo. Deite-se e relaxe. Vou massagear agora os braços e
os pés.
— Não precisa. Estou melhor agora.
— Relaxe. Feche os olhos e deixe sua mente vagar. Nossa mãe
nos ensinou a massagem pode levar embora as dores do corpo e do
espírito.
Ele começou a trabalhar no braço esquerdo e passou um bom
tempo na mão.
— Kishan, como foi ser um tigre por todos esses anos?
Ele ficou em silêncio durante um bom tempo. Abri um dos
olhos e o fitei. Ele tinha os olhos fixos no espaço entre meu polegar e
o indicador. Seus olhos dourados piscaram e ele olhou para o meu
rosto.
— Pare de espiar, Kells. Estou pensando.
Obediente, tornei a fechar os olhos e esperei pacientemente
por sua resposta.
— É como se o tigre e o homem estivessem sempre lutando
um contra o outro. Depois que meus pais morreram, Ren foi
capturado e o Sr. Kadam partiu à sua procura. Não havia motivo
nenhum para ser humano. Deixei o tigre assumir o controle. Foi
quase como se eu o estivesse observando à distância. Sentia-me
completamente alienado do meu ambiente. O animal dominava e eu
não me importava.
Ele passou para os pés. No início senti cócegas, mas depois
soltei um profundo suspiro enquanto ele massageava meus dedos.
— Você deve ter se sentido tão solitário...
— Eu corria, caçava.., e fazia tudo por instinto. Até hoje fico
surpreso por não ter perdido completamente minha natureza
humana.
— Uma vez Ren me disse que estar longe de mim, estar
sozinho, fazia com que se sentisse mais como um animal que como
um homem.
— É verdade. O tigre é forte e acho extremamente difícil
manter um equilíbrio, especialmente quando se é tigre a maior parte
do dia.
— Hoje é diferente?
— É.
— Como?
— Estou recuperando minha natureza humana aos poucos. Ser
tigre é fácil; ser homem é que é difícil. Preciso interagir com pessoas,
aprender sobre o mundo e encontrar um modo de lidar com o
passado.
— De certo modo, Ren teve mais sorte que você, embora você
fosse livre.
Ele inclinou a cabeça e passou para meu outro pé.
— Por que você acha isso?
— Porque ele estava sempre com pessoas. Ele nunca se sentiu
só como você. Quero dizer, ele foi aprisionado, foi ferido, teve que
trabalhar no circo, mas ainda era uma parte da vida humana. Ainda
teve a oportunidade de aprender, embora de maneira limitada.
Ele riu com ironia.
— Você se esquece, Kelsey, de que eu poderia ter posto fim à
minha solidão a qualquer momento e escolhi não fazê-lo. Ele era
prisioneiro, mas eu estava preso numa armadilha que eu mesmo
preparei.
— Não entendo como pôde fazer isso consigo mesmo. Você
tem tanto a oferecer ao mundo.
Ele suspirou.
— Eu mereci ser punido.
— Você não mereceu ser punido. Precisa parar de pensar
assim. Quero que diga a si mesmo que é um homem bom e que
merece ser feliz.
Ele sorriu.
— Tudo bem. Sou um homem bom e mereço ser feliz.
Satisfeita?
— Por enquanto.
— Se isso a deixa feliz, vou tentar mudar minha postura.
— Muito obrigada.
— De nada.
Ele passou para o meu outro braço e começou a massagear a
palma da mão.
— E o que mudou para você? Conseguir de volta seis horas
como homem fez diferença suficiente para você desejar viver de
novo?
— Não.
— Não?
— O que mudou minha perspectiva foi conhecer uma linda
garota junto de uma cachoeira que disse que sabia quem eu era e o
que eu era.
— Ah.
— Foi ela quem me resgatou da minha pele de tigre e me
trouxe de volta á superfície. E, não importa o que aconteça... quero
que ela saiba que serei eternamente grato por isso.
Ele levantou minha mão e beijou a palma. Sorriu de modo
encantador e colocou meu braço de volta na cama.
Olhei em seus olhos dourados e sinceros e abri a boca para
explicar novamente que eu amava Ren. Sua expressão mudou. Ele
assumiu um ar de determinação e disse:
— Shh. Não fale. Sem palavras de protesto esta noite. Eu lhe
prometo, Kelsey, que vou fazer tudo que puder para reunir vocês dois
e tentar ser feliz por você, mas isso não significa que será fácil deixar
de lado meus sentimentos.
— Tudo bem.
— Boa noite, Kells.
Ele me deu um beijo na testa, apagou a luz, saiu e fechou
silenciosamente porta de ligação entre os quartos.
No dia seguinte eu me sentia melhor, contente por ter me
recuperado do enjoo. Paramos em Gyantse, que ficava a apenas duas
horas de distância, mas, como estava no trajeto turístico, esperava-se
que os turistas passassem o dia lã, então tivemos que fazê-lo também.
O Sr. Kadam disse que já estivera ali antes, que aquela costumava ser
uma cidade importante na rota de comércio de especiarias. Paramos
para ver o stupa Kumbum, onde funcionava uma escola de budismo
tibetano, e no almoço saboreamos pratos da culinária de Sichuan
num restaurante local. A cidade era bonita e foi gostoso sair do carro
e caminhar um pouco.
Passamos aquela noite em outro hotel, mas Kishan
permaneceu a maior parte do tempo como tigre, enquanto o Sr.
Kadam tentava me ensinar a jogar xadrez. Eu não conseguia absorver
as regras do jogo. Depois que ele me derrotou pela terceira vez num
piscar de olhos, eu disse:
— Desculpe, acho que não sou boa em planejar minhas
jogadas pensando adiante. Um dia desses vou ensiná-lo a jogar
Colonizadores de Catan.
Sorrindo, pensei em Li, em seus amigos e em Vó Zhi.
Perguntei-me se Li teria tentado entrar em contato comigo. O Sr.
Kadam desligara todos os nossos telefones e havia comprado celulares
com números novos assim que chegamos à Índia. Disse que era mais
seguro não contatar ninguém no Oregon.
A cada duas semanas, aproximadamente, eu escrevia para
meus pais adotivos e lhes dizia que estávamos num lugar onde não
havia sinal de telefone celular. O Sr. Kadam enviava as cartas de locais
distantes, de modo que não havia como identificar de onde vinham.
Nunca lhes dei um endereço para resposta, dizendo-lhes que
estávamos sempre em trânsito.
Eles usavam uma caixa postal para responder às minhas cartas
e Nilima pegava a correspondência e lia para mim ao telefone. O Sr.
Kadam dizia o que seria adequado eu incluir nas cartas. Também
tinha algumas pessoas vigiando discretamente minha família adotiva.
Eles haviam retornado das férias no Havaí, bronzeados e com lindas
lembranças, e encontraram a casa intacta. Felizmente, parecia que
Lokesh não os achara.
No quinto dia de viagem na Estrada da Amizade, paramos para
ver o lago Yamdrok. Seu apelido era lago turquesa, por razões óbvias.
Ele cintilava como uma jota brilhante contra o pano de fundo das
montanhas de picos cobertos de neve que o alimentavam.
O Sr. Kadam contou que o local era considerado sagrado pelo
povo tibetano, que frequentemente fazia peregrinações ao lago. Eles
acreditavam que aquele era o lar de divindades protetoras que
cuidavam do lago e asseguravam que ele não secasse. Se secasse,
significaria o fim do Tibete.
Kishan e eu esperamos enquanto o Sr. Kadam conversava
animadamente com alguns pescadores locais que pareciam estar
tentando lhe vender o produto do trabalho do dia.
Quando voltamos para o carro, perguntei:
— Sr. Kadam, quantas línguas exatamente o senhor fala?
— Hum... Não tenho certeza. Conheço as principais
necessárias para o comércio com a Europa: espanhol, francês,
português, inglês e alemão. Posso me comunicar bem na maior parte
dos idiomas da Ásia. Sou um pouco fraco nas línguas da Rússia e nas
escandinavas, não sei nada das línguas africanas e só conheço cerca
de metade dos idiomas falados na Índia.
— Metade? — perguntei, confusa. — Quantas línguas existem
na Índia?
— Literalmente centenas, modernas e clássicas. Embora
apenas cerca de 30 sejam oficialmente reconhecidas pelo governo
indiano.
Eu o olhava, espantada.
— Claro que só tenho um conhecimento superficial da maioria
delas. Muitas são dialetos locais que aprendi ao longo dos anos. O
idioma mais falado é o híndi.
Atravessamos mais dois desfiladeiros e finalmente começamos
a descida em direção ao planalto tibetano. O Sr. Kadam falava para
manter minha mente ocupada durante a descida pela montanha, pois
eu estava me sentindo um pouco enjoada.
— O planalto tibetano é chamado às vezes de Teto do Mundo,
por causa de sua imensa altitude. Tem, em média, 4.500 metros. É o
terceiro local menos povoado no mundo, sendo o primeiro a
Antártica e o norte da Groenlândia, o segundo. Abriga diversos lagos
grandes de água salobra.
Suspirei e fechei os olhos, mas não ajudou.
Tentei me concentrar em outra coisa e perguntei:
— Sr. Kadam, o que é água salobra?
— A salinidade em massas de água vai de doce a salgada,
passando por salobra. Um lago salobro como, por exemplo, o mar
Cáspio, fica num ponto entre água salgada e água doce. Em geral, a
água salobra é encontrada em estuários onde um mar de água salgada
encontra um rio ou uma corrente de água doce.
Kishan rosnou baixinho e o Sr. Kadam a aula.
— Veja, Srta. Kelsey. Estamos quase lá.
Ele estava certo e, após alguns minutos numa estrada normal,
plana, apenas um pouco esburacada, me senti muito melhor.
Viajamos por mais umas duas horas até a cidade de Lhasa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário