quinta-feira, 6 de março de 2014
Capítulo 3 - Encontros
Encontro 1
Eu não podia acreditar que o dia do meu encontro com Artie
tinha chegado tão rápido. Fui de carro até o campus, estacionei e
fiquei sentada, enrolando. Eu não queria sair com Artie. Nem um
pouco. Sua persistência tinha me vencido e eu suspeitava de que não
era a primeira vez que ele usava aquela tática.
Resignada a me encontrar com ele naquela noite, me dirigi ao
laboratório de idiomas. Artie estava lá, olhando para o relógio, com
um pacote marrom debaixo do braço. Caminhei até ele e enfiei as
mãos nos bolsos da calça.
— Oi, Kelsey. Vamos. Estamos atrasados — disse ele, seguindo
bruscamente para o corredor. — Ainda tenho que enviar um pacote
pelo correio para uma velha amiga.
Ele não era apenas gordo. Era alto e dava passadas bem
maiores que as minhas. Eu precisava quase correr para acompanhá-lo.
Artie atravessou o estacionamento, chegou à calçada e pôs-se a andar
na direção da cidade.
— Não seria melhor irmos no seu carro? — perguntei. — O
correio fica a quase três quilômetros daqui.
— Ah, não. Não tenho carro. São caros demais.
Ainda bem que vim de tênis, pensei.
Artie andava em silêncio e com passos rígidos. Concluí que
provavelmente era tarefa minha fazer a conversa fluir.
— Então... para quem é esse pacote?
— E para a minha ex-namorada da escola. Ela frequenta outra
faculdade e eu gosto de manter contato. Ela sai com muita gente,
assim como eu — gabou-se Artie. — Você precisa ver minha agenda.
Tenho encontros marcados para daqui a anos.
Foi a caminhada mais longa da minha vida. Tentei me
imaginar andando na selva indiana, mas estava frio demais. O céu
estava escuro e nublado, soprava um vento forte. Não era um clima
adequado para uma caminhada. Eu tremia — mesmo de casaco — e
passei o tempo ouvindo parcialmente o que Artie falava e admirando
as casas decoradas para o Halloween.
Finalmente chegamos ao correio e Artie despachou seu pacote.
Estávamos na Main Street e eu vi à nossa volta os vários restaurantes
minúsculos localizados ali. Perguntei-me em qual deles jantaríamos.
Estava faminta. Tinha me esquecido de almoçar de tão absorta nos
estudos. O cheiro de comida chinesa que vinha de um lugar ali perto
era de dar água na boca.
Quando Artie saiu à rua, eu estava gelada. Bati as palmas das
mãos e esfreguei uma na outra para aquecê-las. Se soubesse que
ficaríamos tanto tempo na rua, teria calçado luvas. Artie tinha um par
de luvas de couro no bolso, mas ele mesmo as usou.
Meu cérebro, sempre ávido por punição, insistia que ele teria
me dado suas luvas. Droga, ele teria tirado a camisa e me dado se
achasse que eu poderia precisar dela.
— E agora? Para onde vamos? — perguntei.
Meus olhos dispararam, esperançosos, na direção do
restaurante chinês.
— De volta ao campus. Tenho uma surpresa guardada para
você.
Tentei colar um sorriso de entusiasmo no rosto.
— Que ótimo.
No longo trajeto de volta ao campus Arde foi falando de si
mesmo. Falou sobre sua infância e a família. Descreveu todos os
prêmios que ganhou e mencionou que foi presidente de cinco clubes,
inclusive o de xadrez. Não fez uma só pergunta sobre mim. Eu ficaria
surpresa se ele soubesse meu sobrenome.
Minha mente divagou para uma conversa com um homem
muito diferente.
Ouvi sua voz cálida e hipnótica com muita clareza. De repente
eu me encontrava debaixo de uma árvore. A árvore sob a qual eu
dissera adeus. A árvore sob a qual eu olhara pela última vez seus
olhos azul-cobalto. O vento frio e cortante do Oregon desapareceu e
eu senti a balsâmica brisa do verão indiano soprar suavemente meus
cabelos. A noite cinza e nublada não existia mais e eu olhava as
estrelas cintilantes no céu noturno. Ele tocou o meu rosto e falou.
“Kelsey, o fato é que... estou apaixonado por você... já faz algum
tempo. Não quero que você vá embora. Por favor. Por favor. Por favor.
Diga que vai ficar comigo.”
Ele era tão lindo, como um anjo guerreiro enviado do céu.
Como pude lhe negar alguma coisa, especialmente quando eu era
tudo o que ele queria?
“Quero lhe dar uma coisa. É uma tornozeleira. São muito
populares aqui e escolhi esta para que nunca mais tenhamos que
procurar um sino.”
Meu tornozelo formigou quando me lembrei de seus dedos
roçando-o.
“Kells, por favor. Preciso de você.”
Como eu pude deixá-lo?
Minha mente voltou bruscamente ao presente e lutei para
conter as intensas emoções que vinham à tona quando eu me
permitia pensar nele. Enquanto Artie discorria deforma monótona
sobre como vencera o campeonato de debates, eu me repreendia por
permitir que meus pensamentos me levassem a um lugar tão
perigoso. A verdade era que, mesmo que eu estivesse tendo dúvidas
sobre minha decisão de partir, ele não havia telefonado. Isso provava
que eu tinha tomado a decisão certa, não provava? Se ele me amasse
unto quanto dizia, teria tentado entrar em contato comigo. Teria me
procurado. Teria vindo ao meu encontro. Ele precisava de espaço. Eu
estava certa de deixá-lo. Talvez agora eu pudesse começar a me curar
e esquecê-lo.
Obriguei-me a voltar a atenção para Artie e me esforcei de
verdade para ouvir sua conversa. Não havia a menor possibilidade de
Artie ser o cara certo para mim — nem para qualquer garota, aliás —,
mas isso não significava que eu estivesse sem opções. Eu ainda tinha
um encontro com Jason no dia seguinte e outro com Li na próxima
semana.
Quando Artie e eu chegamos de volta ao campus, meu
estômago roncava alto que podia ser ouvido a três quarteirões de
distância. Eu esperava ansiosamente que fôssemos logo comer na
lanchonete da universidade.
Ele me levou para o centro de mídia da Biblioteca Hamersly,
pediu dois fones de ouvido e entregou um papel à mulher que nos
atendia. Então empurrou duas cadeiras de madeira diante de um
minúsculo aparelho de TV preto e branco que estava num canto.
— Não é uma ótima ideia? Podemos assistir a um filme e eu
não preciso gastar nem um centavo! — Ele sorriu enquanto meu
queixo caía. — Muito inteligente, você não acha?
Apertei os lábios.
— Ah, é, muito inteligente.
Calei-me rapidamente depois disso, engolindo um comentário
sarcástico. Será que ele achava que as garotas gostavam de ser
tratadas dessa forma? Não que um encontro tivesse que envolver
coisas caras ou que fosse mesmo necessário gastar dinheiro. O que me
aborrecia era que Artie era presunçoso em relação a tudo e não
achava que suas acompanhantes fossem importantes o bastante para
escutá-las. Eu estava indignada e com fome. Quando o filme
começou, ele deslizou o fone cinzento gigantesco sobre os ouvidos e
apontou para o meu.
Limpei a poeira do dispositivo com a blusa, pluguei o fio e
coloquei com força os fones em cima dos ouvidos, irritadíssima por
ficar ali sentada por mais duas horas. Os créditos iniciais de A lenda
dos beijos perdidos disparavam na tela e eu enviava mensagens
mentais para que Gene Kelly dançasse mais rápido.
Passada uma hora de filme, Artie fez um movimento. Ele ainda
olhava diretamente para a tela minúscula quando colocou o pesado
braço nas costas da minha cadeira.
Olhei-o pelo canto do olho. Ele tinha um sorriso afetado no
rosto. Imaginei que estivesse mentalmente ticando uma lista de
tarefas em sua agenda.
• Seduzir a garota falando de outros namoradas
• Impressioná-lo com o número de prêmios que você
recebeu
• Não gastar dinheiro no encontro
• Fazer a garota assistir o um filme cafona no centro
de mio
• Fazer comentários sobre a própria parcimônia
• Pôr o braço no ombro da garota na marca exata da
metade do filme
Inclinei-me para a frente e fiquei numa posição desconfortável,
na ponta da cadeira, durante toda a segunda metade do filme. Com a
desculpa de que precisava ir ao banheiro, fiquei de pé. Ele fez o
mesmo e foi até a mulher no balcão. Quando passava por eles, eu o
ouvi pedindo que ela parasse o filme e o rebobinasse um pouquinho
para que lembrássemos onde havíamos parado.
Sensacional! Isso soma mais cinco minutos a essa experiência
maravilhosa! Eu me apressei, temendo que ele pudesse cismar de
reiniciar o filme. Pensei na possibilidade de sair do prédio correndo
feito louca, mas de onde estávamos sentados ele podia ver a porta do
banheiro e isso seria uma grosseria. Eu estava determinada a sofrer
ainda durante a última parte do filme e depois voar para casa.
Finalmente, finalmente, o filme terminou e eu me levantei de
um salto, como se o alarme de incêndio tivesse acabado de ser
acionado.
— Muito bem, Artie. Foi legal. Meu carro está estacionado
aqui fora, então até segunda. Obrigada pelo filme.
Infelizmente ele não entendeu a deixa e fez questão de me
acompanhar até o carro. Abri a porta e mais que depressa me enfiei
atrás dela.
Ele pôs a mão na porta do carro e inclinou o corpo volumoso
na minha direção. Sua gravata-borboleta estava a poucos centímetros
do meu nariz. Ele forjou um sorriso artificial e desajeitado.
— Bem, eu me diverti muito e quero sair de novo com você na
próxima — disse ele. — Que tal na sexta?
Melhor cortar isto logo pela raiz.
— Não posso. Já tenho outro encontro marcado.
Artie insistiu, sem se intimidar.
— Ele nem sequer piscou. — E sábado?
Vasculhei meu cérebro freneticamente em busca de uma
saída.
— Hã... Eu não trouxe minha agenda, então não sei o
que já tenho marcado.
Ele assentiu, como se isso fizesse todo sentido.
— Olhe, estou com uma dor de cabeça terrível, Artie. Vejo
você no laborario semana que vem, está bem?
— Claro. Ligo para você mais tarde.
Entrei rapidamente no carro e fechei a porta. Sorrindo, pois
sabia que nca tinha lhe dado o número do meu telefone, atravessei as
ruas silencio‘ de Monmouth e subi a colina até a tranquilidade de
minha casa.
Encontro 2
No encontro seguinte eu estava mais bem preparada para o
clima. Usava minha blusa de moletom vermelho da Western Oregon
e também levara um casaco mais grosso, uma echarpe de caxemira
vermelha e luvas que encontrara numa gaveta. Normalmente eu teria
evitado qualquer coisa que ele tivesse comprado para mim, mas não
tinha tempo para comprar luvas novas esmo que tivesse, estaria
usando o dinheiro dele de qualquer forma.
Encontrei Jason no estacionamento do estádio e
imediatamente comecei a catalogar suas qualidades. Ele era bonito,
um pouquinho mais magro e mais baixo que a média, mas não se
vestia mal e era inteligente. Encostado em seu velho Corolla, ergueu
as sobrancelhas, surpreso, quando me viu saltar do Porshe.
— Uau, Kelsey! Que carrão!
— Obrigada.
— Vamos?
— Vamos. Me mostre o caminho.
Então nos misturamos à multidão que seguia para o campo de
futebol. A maioria usava camisas vermelhas ou da Western Oregon,
mas havia também as cores branco e azul-marinho do adversário, a
Western Washington University, espalhadas aqui e ali. Dois chapéus
vikings se destacavam no meio da multidão. Jason me levou até uma
caminhonete cercada por casais fazendo um churrasco na caçamba.
Uma pequena grelha estava cheia de salsichas e hambúrgueres
fumegantes.
— Ei, pessoal! Quero apresentar Kelsey a vocês. Nos
conhecemos na aula de antropologia.
Vários rostos esticaram-se atrás dos vizinhos, tentando me ver.
Acenei timidamente para eles.
— Oi.
Ouvi alguns “Oi, tudo bem?” e “Muito prazer’ e então eles
voltaram a suas conversas, esquecendo que estávamos ali.
Jason encheu um prato para mim e então abriu um cooler.
— Quer uma cerveja, Kelsey?
Sacudi a cabeça.
— Refrigerante, por favor. Diet, se tiver.
Ele me entregou um bem gelado, pegou uma cerveja para si
mesmo e apontou para duas cadeiras dobráveis vazias.
Assim que se sentou, ele enfiou metade do cachorro-quente na
boca, mastigando ruidosamente. Era quase tão ruim quanto ver um
tigre comer — nas um pouco menos sangrento.
Argh. O que há de errado comigo? Será que estou
intencionalmente procurando coisas que me aborreçam? Eu preciso
mesmo relaxar ou Jennifer terá razão: vou desperdiçar minha vida.
Desviei os olhos e comecei a beliscar minha comida.
— Então você não é de beber, não é, Kelsey?
— É, acho que não. Para começar, não tenho idade suficiente.
E o álcool perdeu toda a graça para mim quando meus pais foram
mortos há alguns anos por um motorista embriagado.
— Ah. Foi mal.
Ele fez uma careta e tirou a cerveja do meu campo de visão,
escondendo-a embaixo da cadeira.
Droga. O que estou fazendo? Imediatamente me desculpei.
— Está tudo bem, Jason. Lamento ter sido tão deprimente.
Prometo que vou ser muito mais animada no jogo.
— Sem problema. Nem pense mais nisso.
Ele voltou a engolir a comida e a rir com os amigos.
O problema foi que eu continuei a pensar naquelas coisas.
Sabia que a morte dos meus pais não era algo que eu normalmente
mencionaria num maneiro encontro, mas... Eu sabia que ele teria
reagido de forma bem diferente Talvez porque fosse mais velho, mais
de 300 anos mais velho. Ou porque não fosse americano. Talvez
porque também tivesse perdido os pais. Ou porque fosse
simplesmente... perfeito.
Tentei pôr fim a esses pensamentos, mas não pude evitá-los.
Voltei ao dia em que acordei de um pesadelo envolvendo a morte dos
meus pais e ele estava me consolar. Eu ainda podia sentir sua mão
enxugando minhas lágrimas enquanto ele me botava no colo.
“Shh, Kelsey Eu estou aqui. Não vou deixá-la, priya. Quietinha
agora. Mein aapka raksha karunga. Não vou deixar nada acontecer
com você, priyatama.” Ele havia acariciado meus cabelos e sussurrado
palavras tranquilizadoras até eu sentir o sonho desaparecer.
Desde então eu tivera tempo de procurar o significado das
palavras que não havia entendido na Índia. Estou com você. Vou
cuidar de você. Minha amada. Minha querida. Se ele estivesse aqui
comigo, teria me puxado para abraço ou para o seu colo e teria
compartilhado da minha tristeza. Teria afagado as minhas costas e
compreendido meus sentimentos.
Eu me sacudi. Não, não teria. Podia ter feito isso antes, mas
agora ele havia mudado. Ele já era e o que teria frito ou como teria
reagido não tem mais importância. Acabou.
Jason estava enchendo outro prato e eu tentei parecer
interessada e me envolver na conversa Meia hora depois todos nos
levantamos e nos dirigimos campo de futebol.
Era bom ficar ao ar livre no clima fresco do outono, mas os
bancos estavam frios e meu nariz, congelado. O frio não parecia
incomodar Jason e os amigos. Eles ficavam em pé e torciam muito.
Tentei fazer o mesmo, mas não sabia que estava aplaudindo: o jogo
estava muito distante para que eu sequer enxergasse a bola. Eu nunca
me interessara muito por futebol americano. Preferia de longe filmes
e livros.
Olhei para o painel do placar. O primeiro tempo estava se
esgotando. Dois minutos. Um minuto. Vinte segundos. Ufa! O timer
soou e as duas equipes deixaram o campo correndo. O desfile de
boas-vindas teve início e vários carros antigos percorreram o
perímetro externo do campo. Garotas bonitas vestidas com chiffon e
seda empoleiravam-se no encosto dos bancos traseiros, acenando
para a multidão.
Jason se juntou aos outros caras que davam assovios
estridentes, expressando admiração. O aroma de sândalo subiu pela
arquibancada e uma voz aveludada sussurrou em meu ouvido: “Você é
mais bonita do que qualquer uma daquelas mulheres.”
Virei bruscamente a cabeça, mas ele não estava atrás de mim.
Jason ainda se encontrava de pé, gritando junto aos amigos. Deixei-
me cair no banco. Ótimo. Agora estou tendo alucinações. Pressionei
os nós dos dedos contra a cabeça na esperança de que a pressão o
empurrasse de volta aos recônditos da minha mente.
Quando o segundo tempo do jogo começou, parei de tentar
fingir entusiasmo. Esse era o segundo encontro que me transformava
em picolé. Meu corpo foi lentamente se congelando no banco e
comecei a bater o queixo. Depois do jogo, Jason me acompanhou até
o carro e pôs o braço desajeitadamente em meu ombro,
massageando-o para tentar me aquecer, mas ele fez muita força e
deixou meu ombro dolorido. Eu nem me dei ao trabalho de perguntar
quem havia ganhado.
— Adorei conhecer você melhor esta noite, Kelsey.
Será que ele tinha mesmo me conhecido melhor?
— É, também achei legal.
— Então posso ligar para você outro dia?
Ponderei por um instante. Jason não era um cara ruim; era
apenas um cara. Primeiros encontros costumavam mesmo ser
constrangedores, então decidi lhe dar outra chance.
— Claro. Você sabe onde me encontrar.
Dirigi-lhe um sorriso morno.
— Certo. Vejo você na aula segunda-feira. Tchau.
—Tchau.
Ele voltou para seu grupo de amigos barulhentos e eu me
perguntei se tínhamos alguma coisa em comum.
Encontro 3
Antes de que eu me desse conta, chegou o Halloween — e,
com ele, o encontro com Li.
Havia alguma coisa nele que fazia com que eu me sentisse
muito à vontade. Ele era mais divertido que Jason e, a contragosto,
admiti que era muito possível que eu me sentisse mais relaxada na
presença de Li porque ele me lembrava um pouco o homem que eu
estava tentando esquecer.
Relutante, puxei a porta do closet que jurei nunca abrir e
encontrei uma blusa de mangas compridas laranja-escuro, enfeitada
com botões de madeira e uma faixa na cintura. Para combinar, calça
jeans escura com lycra. Ambas me serviram perfeitamente, como se
tivessem sido feitas sob medida. Um par de botas escuras encontrava-
se no fundo do armário e, após calçá-las, dei uma voltinha na frente
do espelho. A roupa fazia com que eu parecesse alta, chique e...
estilosa, o que não era o meu normal.
Deixei o cabelo solto, os cachos cascateando pelas costas, para
mudar um pouco. Passei um brilho alaranjado nos lábios e segui para
o estúdio, tomando o cuidado de dirigir mais devagar do que de
hábito para evitar alguma criança desatenta correndo atrás de doces.
Li estava em seu carro ouvindo música e balançando a cabeça
para cima e para baixo. Assim que me avistou, imediatamente
desligou o rádio e saltou carro.
Ele sorriu.
— Uau, Kelsey! Você está linda!
Eu ria fácil com ele.
— Obrigada, Li. É muita gentileza sua. Se estiver pronto, posso
seguir você até a casa de sua avó.
Voltei para o meu carro, mas Li passou correndo por mim e
abriu a porta.
— Puxa, quase que eu não consigo! — Ele sorriu para mim
outra vez. — Meu avô me ensinou a sempre abrir a porta para as
damas.
— Nossa, você é um perfeito cavalheiro.
Ele inclinou a cabeça ligeiramente, riu e então voltou para seu
carro. Dirigiu devagar também, verificando com frequência no
retrovisor se eu o acompanhava nos cruzamentos. Seguimos até um
bairro mais antigo, muito agradável.
— Meus avós moram nesta casa — explicou Li quando
entramos. — As noites de jogos são sempre aqui porque a mesa é
maior. Além disso, minha avó cozinha muito bem.
Li pegou minha mão e me conduziu para uma cozinha muito
bonita com cheiro mais gostoso que qualquer restaurante chinês em
que eu já estivera. Uma mulher pequenina de cabelos brancos espiava
dentro de uma panela de arroz. Quando ergueu a cabeça, as lentes
dos óculos estavam embaçadas.
— Kelsey, esta é Vó Zhi. Vó Zhi, huó Kelsey.
Ela sorriu, assentiu com a cabeça e segurou meus dedos
nos dela.
— Olá. Muito prazer.
Retribuí o sorriso.
— Prazer em conhecê-la também.
Li enfiou o dedo numa panela borbulhante e sua avó pegou
uma colher de madeira e bateu com ela levemente em sua mão. Então
o repreendeu em mandarim.
Ele riu enquanto ela estalava a língua afetuosamente.
— Até mais tarde, vó.
Eu a flagrei sorrindo orgulhosa para ele quando deixávamos a
cozinha.
Segui Li até a sala de jantar. Toda a mobília havia sido afastada
para o lado a fim de abrir espaço para a grande mesa. Em torno dela
encontrava-se um grupo de garotos asiáticos que discutiam
acaloradamente a colocação das peças no tabuleiro do jogo. Li me
levou até o grupo.
— Ei, pessoal. Esta é Kelsey. Ela vai jogar com a gente
esta noite.
Um garoto ergueu as sobrancelhas.
— Muito bem, Li!
— Agora dá para entender por que ele demorou tanto.
— Está com sorte. Wen trouxe o kit de expansão.
Houve vários outros murmúrios e cadeiras foram arrastadas.
Pensei ter ouvido um Comentário abafado sobre trazer uma garota
para o grupo, mas não sabia dizer quem teria falado. Depois de alguns
instantes, todos se acomodaram para começar o jogo.
Li sentou-se ao meu lado e me explicou as regras do jogo. De
início eu nunca sabia se era uma decisão sábia trocar trigo por tijolo
ou minério por ovelhas, então podia pedir ajuda a ele. Depois de
algumas rodadas, comecei a me sentir confiante o bastante para jogar
por conta própria. Troquei duas de minhas aldeias por cidades e
todos os garotos deram um gemido.
Perto do fim do jogo, estava óbvio que o desfecho seria uma
disputa entre mim e um garoto chamado Shen. Ele se gabou, de leve,
sobre como estava perto da vitória e que eu não tinha chance.
Entreguei uma ovelha, um minério e um trigo e comprei uma carta de
desenvolvimento. Era um bônus, o último do jogo.
— Ganhei!
Os garotos resmungaram, disseram que foi sorte de
principiante e fizeram um estardalhaço, ameaçando recontar todos os
meus pontos só para ter certeza de que minha conta estava certa.
Fiquei surpresa ao saber que haviam se passado horas. Meu estômago
roncou.
Li se levantou e se espreguiçou.
— Hora de comer.
A avó dele havia montado um delicioso bufê para nós. Os
garotos fizeram a montanha em seus pratos com arroz frito, bolinhos
de legumes e de carne, tempura de legumes e verduras e miniaturas
de rolinhos primavera de camarão. Li pegou refrigerante para nós dois
e nos acomodamos na sala de estar.
Ele prendeu seus bolinhos de carne de porco habilmente com
os hashis e disse:
— Então me fale sobre você, Kelsey. Alguma coisa além do
wushu. O que você fez nas férias?
— Ah, isso. Eu, hã... trabalhei na índia como estagiária.
— Uau! Isso é incrível! O que você fazia?
— Na maior parte do tempo catalogava e registrava ruínas,
obras de arte e as históricas. E você? O que fez nas férias?
Voltei a pergunta para ele, ansiosa para desviar o foco da
conversa.
— Basicamente trabalhei para o meu avô no estúdio. Estou
tentando economizar para a faculdade de medicina. Eu me formei em
biologia na cidade de Portland.
Fiz os cálculos rapidamente, e as contas não pareciam fechar.
— Quantos anos você tem, Li?
Ele sorriu.
— Vinte e dois. Adiantei muitas disciplinas e também fiz
cursos de verão. Na verdade todos os jogadores aqui são
universitários. Meii está estudando química, Shen, engenharia da
computação, Wen acabou de se formar e está fazendo mestrado em
análise estatística e eu quero fazer medicina.
— Vocês realmente... sabem o que querem.
— E você? Está estudando o quê, Kelsey?
— Estudos internacionais e história da arte. Nesse momento
estou focando a Índia — respondi, jogando outro bolinho na boca. —
Mas talvez eu devesse mudar para wushu para me livrar de todas
essas calorias.
Li riu e pegou meu prato. Voltamos para a sala de jogos e eu
parei para olhar a foto de Li e do avô, Chuck. Cada um segurava três
troféus.
— Caramba. O estúdio ganhou todos esses?
Li espiou a foto e enrubesceu.
— Não, são todos meus. Participei de um torneio de artes
marciais.
Ergui as sobrancelhas, surpresa.
— Eu não sabia que você era assim tão bom. Isso é um feito e
tanto.
— Tenho certeza de que meus avós vão lhe falar sobre isso —
disse Li, me levando de volta à cozinha. — Não tem nada que eles
gostem mais de fazer do que falar dos méritos de seus descendentes.
Certo, Vó Zhi?
Li deu-lhe um beijo no rosto e ela agitou as mãos para enxotá-
lo de sua lava-louças.
Os rapazes haviam definido um novo jogo que era muito mais
fácil de aprender. Eu perdi, mas foi muito divertido. Quando o jogo
chegou ao fim, já passava da meia-noite. Li me acompanhou até o
carro na noite fria e estrelada.
— Valeu por ter vindo, Kelsey. Eu me diverti muito com você.
Acha que ia gostar de repetir a dose? A gente se reúne a cada 15 dias.
— Claro. Parece divertido. E já que eu ganhei no primeiro jogo
você vai pegar mais leve comigo na aula de wushu? — provoquei.
— Nada disso. Quando você ganha, eu pego ainda mais
pesado.
Eu ri.
— Então me lembre de perder da próxima vez. E o que
acontece quando você ganha?
Ele sorriu.
— Hum... vou pensar.
Ele recuou e ficou parado sob a luz da entrada da casa,
observando enquanto eu me afastava.
Fui para a cama me arrastando de cansaço, pensando que, com
o passar do tempo, eu poderia aprender a gostar de Li. Ele era
divertido e gente boa. Eu não sentia nada por ele que não fosse
amizade, mas talvez isso pudesse mudar no futuro. A vida normal
estava começando a parecer... normal outra vez. Virei-me de lado, me
enrolei na colcha da minha avó e acidentalmente derrubei meu tigre
branco da cama.
Por alguns instantes considerei a possibilidade de deixá-lo no
chão ou colocá-lo no armário. Fiquei deitada imóvel, olhando o teto,
tentando reunir forças para fazer isso. Minha decisão durou apenas
cinco minutos e eu me repreendi por minha fraqueza. Estiquei-me na
cama, peguei o tigre de pelúcia e o aconcheguei junto ao peito, me
desculpando pelo simples fato de ter tido tal pensamento.
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