quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 3 - Encontros


Encontro 1 

Eu não podia acreditar que o dia do meu encontro com Artie 
tinha chegado tão rápido. Fui de carro até o campus, estacionei e 
fiquei sentada, enrolando. Eu não queria sair com Artie. Nem um 
pouco. Sua persistência tinha me vencido e eu suspeitava de que não 
era a primeira vez que ele usava aquela tática. 

Resignada a me encontrar com ele naquela noite, me dirigi ao 
laboratório de idiomas. Artie estava lá, olhando para o relógio, com 
um pacote marrom debaixo do braço. Caminhei até ele e enfiei as 
mãos nos bolsos da calça. 

— Oi, Kelsey. Vamos. Estamos atrasados — disse ele, seguindo 
bruscamente para o corredor. — Ainda tenho que enviar um pacote 
pelo correio para uma velha amiga. 

Ele não era apenas gordo. Era alto e dava passadas bem 
maiores que as minhas. Eu precisava quase correr para acompanhá-lo. 


Artie atravessou o estacionamento, chegou à calçada e pôs-se a andar 
na direção da cidade. 

— Não seria melhor irmos no seu carro? — perguntei. — O 
correio fica a quase três quilômetros daqui. 

— Ah, não. Não tenho carro. São caros demais. 

Ainda bem que vim de tênis, pensei. 

Artie andava em silêncio e com passos rígidos. Concluí que 
provavelmente era tarefa minha fazer a conversa fluir. 

— Então... para quem é esse pacote? 

— E para a minha ex-namorada da escola. Ela frequenta outra 
faculdade e eu gosto de manter contato. Ela sai com muita gente, 
assim como eu — gabou-se Artie. — Você precisa ver minha agenda. 
Tenho encontros marcados para daqui a anos. 

Foi a caminhada mais longa da minha vida. Tentei me 
imaginar andando na selva indiana, mas estava frio demais. O céu 
estava escuro e nublado, soprava um vento forte. Não era um clima 
adequado para uma caminhada. Eu tremia — mesmo de casaco — e 
passei o tempo ouvindo parcialmente o que Artie falava e admirando 
as casas decoradas para o Halloween. 

Finalmente chegamos ao correio e Artie despachou seu pacote. 
Estávamos na Main Street e eu vi à nossa volta os vários restaurantes 
minúsculos localizados ali. Perguntei-me em qual deles jantaríamos. 
Estava faminta. Tinha me esquecido de almoçar de tão absorta nos 
estudos. O cheiro de comida chinesa que vinha de um lugar ali perto 
era de dar água na boca. 

Quando Artie saiu à rua, eu estava gelada. Bati as palmas das 
mãos e esfreguei uma na outra para aquecê-las. Se soubesse que 
ficaríamos tanto tempo na rua, teria calçado luvas. Artie tinha um par 
de luvas de couro no bolso, mas ele mesmo as usou. 


Meu cérebro, sempre ávido por punição, insistia que ele teria 
me dado suas luvas. Droga, ele teria tirado a camisa e me dado se 
achasse que eu poderia precisar dela. 

— E agora? Para onde vamos? — perguntei. 

Meus olhos dispararam, esperançosos, na direção do 
restaurante chinês. 

— De volta ao campus. Tenho uma surpresa guardada para 
você. 

Tentei colar um sorriso de entusiasmo no rosto. 

— Que ótimo. 

No longo trajeto de volta ao campus Arde foi falando de si 
mesmo. Falou sobre sua infância e a família. Descreveu todos os 
prêmios que ganhou e mencionou que foi presidente de cinco clubes, 
inclusive o de xadrez. Não fez uma só pergunta sobre mim. Eu ficaria 
surpresa se ele soubesse meu sobrenome. 

Minha mente divagou para uma conversa com um homem 
muito diferente. 

Ouvi sua voz cálida e hipnótica com muita clareza. De repente 
eu me encontrava debaixo de uma árvore. A árvore sob a qual eu 
dissera adeus. A árvore sob a qual eu olhara pela última vez seus 
olhos azul-cobalto. O vento frio e cortante do Oregon desapareceu e 
eu senti a balsâmica brisa do verão indiano soprar suavemente meus 
cabelos. A noite cinza e nublada não existia mais e eu olhava as 
estrelas cintilantes no céu noturno. Ele tocou o meu rosto e falou. 

“Kelsey, o fato é que... estou apaixonado por você... já faz algum 
tempo. Não quero que você vá embora. Por favor. Por favor. Por favor. 
Diga que vai ficar comigo.” 


Ele era tão lindo, como um anjo guerreiro enviado do céu. 
Como pude lhe negar alguma coisa, especialmente quando eu era 
tudo o que ele queria? 

“Quero lhe dar uma coisa. É uma tornozeleira. São muito 
populares aqui e escolhi esta para que nunca mais tenhamos que 
procurar um sino.” 

Meu tornozelo formigou quando me lembrei de seus dedos 
roçando-o. 

“Kells, por favor. Preciso de você.” 

Como eu pude deixá-lo? 

Minha mente voltou bruscamente ao presente e lutei para 
conter as intensas emoções que vinham à tona quando eu me 
permitia pensar nele. Enquanto Artie discorria deforma monótona 
sobre como vencera o campeonato de debates, eu me repreendia por 
permitir que meus pensamentos me levassem a um lugar tão 
perigoso. A verdade era que, mesmo que eu estivesse tendo dúvidas 
sobre minha decisão de partir, ele não havia telefonado. Isso provava 
que eu tinha tomado a decisão certa, não provava? Se ele me amasse 
unto quanto dizia, teria tentado entrar em contato comigo. Teria me 
procurado. Teria vindo ao meu encontro. Ele precisava de espaço. Eu 
estava certa de deixá-lo. Talvez agora eu pudesse começar a me curar 
e esquecê-lo. 

Obriguei-me a voltar a atenção para Artie e me esforcei de 
verdade para ouvir sua conversa. Não havia a menor possibilidade de 
Artie ser o cara certo para mim — nem para qualquer garota, aliás —, 
mas isso não significava que eu estivesse sem opções. Eu ainda tinha 
um encontro com Jason no dia seguinte e outro com Li na próxima 
semana. 

Quando Artie e eu chegamos de volta ao campus, meu 
estômago roncava alto que podia ser ouvido a três quarteirões de 


distância. Eu esperava ansiosamente que fôssemos logo comer na 
lanchonete da universidade. 

Ele me levou para o centro de mídia da Biblioteca Hamersly, 
pediu dois fones de ouvido e entregou um papel à mulher que nos 
atendia. Então empurrou duas cadeiras de madeira diante de um 
minúsculo aparelho de TV preto e branco que estava num canto. 

— Não é uma ótima ideia? Podemos assistir a um filme e eu 
não preciso gastar nem um centavo! — Ele sorriu enquanto meu 
queixo caía. — Muito inteligente, você não acha? 

Apertei os lábios. 

— Ah, é, muito inteligente. 

Calei-me rapidamente depois disso, engolindo um comentário 
sarcástico. Será que ele achava que as garotas gostavam de ser 
tratadas dessa forma? Não que um encontro tivesse que envolver 
coisas caras ou que fosse mesmo necessário gastar dinheiro. O que me 
aborrecia era que Artie era presunçoso em relação a tudo e não 
achava que suas acompanhantes fossem importantes o bastante para 
escutá-las. Eu estava indignada e com fome. Quando o filme 
começou, ele deslizou o fone cinzento gigantesco sobre os ouvidos e 
apontou para o meu. 

Limpei a poeira do dispositivo com a blusa, pluguei o fio e 
coloquei com força os fones em cima dos ouvidos, irritadíssima por 
ficar ali sentada por mais duas horas. Os créditos iniciais de A lenda 
dos beijos perdidos disparavam na tela e eu enviava mensagens 
mentais para que Gene Kelly dançasse mais rápido. 

Passada uma hora de filme, Artie fez um movimento. Ele ainda 
olhava diretamente para a tela minúscula quando colocou o pesado 
braço nas costas da minha cadeira. 


Olhei-o pelo canto do olho. Ele tinha um sorriso afetado no 
rosto. Imaginei que estivesse mentalmente ticando uma lista de 
tarefas em sua agenda. 

• Seduzir a garota falando de outros namoradas 
• Impressioná-lo com o número de prêmios que você 
recebeu 
• Não gastar dinheiro no encontro 
• Fazer a garota assistir o um filme cafona no centro 
de mio 
• Fazer comentários sobre a própria parcimônia 
• Pôr o braço no ombro da garota na marca exata da 
metade do filme 


Inclinei-me para a frente e fiquei numa posição desconfortável, 
na ponta da cadeira, durante toda a segunda metade do filme. Com a 
desculpa de que precisava ir ao banheiro, fiquei de pé. Ele fez o 
mesmo e foi até a mulher no balcão. Quando passava por eles, eu o 
ouvi pedindo que ela parasse o filme e o rebobinasse um pouquinho 
para que lembrássemos onde havíamos parado. 

Sensacional! Isso soma mais cinco minutos a essa experiência 
maravilhosa! Eu me apressei, temendo que ele pudesse cismar de 
reiniciar o filme. Pensei na possibilidade de sair do prédio correndo 
feito louca, mas de onde estávamos sentados ele podia ver a porta do 
banheiro e isso seria uma grosseria. Eu estava determinada a sofrer 
ainda durante a última parte do filme e depois voar para casa. 

Finalmente, finalmente, o filme terminou e eu me levantei de 
um salto, como se o alarme de incêndio tivesse acabado de ser 
acionado. 

— Muito bem, Artie. Foi legal. Meu carro está estacionado 
aqui fora, então até segunda. Obrigada pelo filme. 


Infelizmente ele não entendeu a deixa e fez questão de me 
acompanhar até o carro. Abri a porta e mais que depressa me enfiei 
atrás dela. 

Ele pôs a mão na porta do carro e inclinou o corpo volumoso 
na minha direção. Sua gravata-borboleta estava a poucos centímetros 
do meu nariz. Ele forjou um sorriso artificial e desajeitado. 

— Bem, eu me diverti muito e quero sair de novo com você na 
próxima — disse ele. — Que tal na sexta? 

Melhor cortar isto logo pela raiz. 

— Não posso. Já tenho outro encontro marcado. 

Artie insistiu, sem se intimidar. 

— Ele nem sequer piscou. — E sábado? 

Vasculhei meu cérebro freneticamente em busca de uma 
saída. 

— Hã... Eu não trouxe minha agenda, então não sei o 
que já tenho marcado. 

Ele assentiu, como se isso fizesse todo sentido. 

— Olhe, estou com uma dor de cabeça terrível, Artie. Vejo 
você no laborario semana que vem, está bem? 

— Claro. Ligo para você mais tarde. 

Entrei rapidamente no carro e fechei a porta. Sorrindo, pois 
sabia que nca tinha lhe dado o número do meu telefone, atravessei as 
ruas silencio‘ de Monmouth e subi a colina até a tranquilidade de 
minha casa. 



Encontro 2 


No encontro seguinte eu estava mais bem preparada para o 
clima. Usava minha blusa de moletom vermelho da Western Oregon 
e também levara um casaco mais grosso, uma echarpe de caxemira 
vermelha e luvas que encontrara numa gaveta. Normalmente eu teria 
evitado qualquer coisa que ele tivesse comprado para mim, mas não 
tinha tempo para comprar luvas novas esmo que tivesse, estaria 
usando o dinheiro dele de qualquer forma. 

Encontrei Jason no estacionamento do estádio e 
imediatamente comecei a catalogar suas qualidades. Ele era bonito, 
um pouquinho mais magro e mais baixo que a média, mas não se 
vestia mal e era inteligente. Encostado em seu velho Corolla, ergueu 
as sobrancelhas, surpreso, quando me viu saltar do Porshe. 

— Uau, Kelsey! Que carrão! 

— Obrigada. 

— Vamos? 

— Vamos. Me mostre o caminho. 

Então nos misturamos à multidão que seguia para o campo de 
futebol. A maioria usava camisas vermelhas ou da Western Oregon, 
mas havia também as cores branco e azul-marinho do adversário, a 
Western Washington University, espalhadas aqui e ali. Dois chapéus 
vikings se destacavam no meio da multidão. Jason me levou até uma 
caminhonete cercada por casais fazendo um churrasco na caçamba. 
Uma pequena grelha estava cheia de salsichas e hambúrgueres 
fumegantes. 

— Ei, pessoal! Quero apresentar Kelsey a vocês. Nos 
conhecemos na aula de antropologia. 

Vários rostos esticaram-se atrás dos vizinhos, tentando me ver. 
Acenei timidamente para eles. 

— Oi. 


Ouvi alguns “Oi, tudo bem?” e “Muito prazer’ e então eles 
voltaram a suas conversas, esquecendo que estávamos ali. 

Jason encheu um prato para mim e então abriu um cooler. 

— Quer uma cerveja, Kelsey? 

Sacudi a cabeça. 

— Refrigerante, por favor. Diet, se tiver. 

Ele me entregou um bem gelado, pegou uma cerveja para si 
mesmo e apontou para duas cadeiras dobráveis vazias. 

Assim que se sentou, ele enfiou metade do cachorro-quente na 
boca, mastigando ruidosamente. Era quase tão ruim quanto ver um 
tigre comer — nas um pouco menos sangrento. 

Argh. O que há de errado comigo? Será que estou 
intencionalmente procurando coisas que me aborreçam? Eu preciso 
mesmo relaxar ou Jennifer terá razão: vou desperdiçar minha vida. 
Desviei os olhos e comecei a beliscar minha comida. 

— Então você não é de beber, não é, Kelsey? 

— É, acho que não. Para começar, não tenho idade suficiente. 
E o álcool perdeu toda a graça para mim quando meus pais foram 
mortos há alguns anos por um motorista embriagado. 

— Ah. Foi mal. 

Ele fez uma careta e tirou a cerveja do meu campo de visão, 
escondendo-a embaixo da cadeira. 

Droga. O que estou fazendo? Imediatamente me desculpei. 

— Está tudo bem, Jason. Lamento ter sido tão deprimente. 
Prometo que vou ser muito mais animada no jogo. 

— Sem problema. Nem pense mais nisso. 

Ele voltou a engolir a comida e a rir com os amigos. 


O problema foi que eu continuei a pensar naquelas coisas. 
Sabia que a morte dos meus pais não era algo que eu normalmente 
mencionaria num maneiro encontro, mas... Eu sabia que ele teria 
reagido de forma bem diferente Talvez porque fosse mais velho, mais 
de 300 anos mais velho. Ou porque não fosse americano. Talvez 
porque também tivesse perdido os pais. Ou porque fosse 
simplesmente... perfeito. 

Tentei pôr fim a esses pensamentos, mas não pude evitá-los. 
Voltei ao dia em que acordei de um pesadelo envolvendo a morte dos 
meus pais e ele estava me consolar. Eu ainda podia sentir sua mão 
enxugando minhas lágrimas enquanto ele me botava no colo. 

“Shh, Kelsey Eu estou aqui. Não vou deixá-la, priya. Quietinha 
agora. Mein aapka raksha karunga. Não vou deixar nada acontecer 
com você, priyatama.” Ele havia acariciado meus cabelos e sussurrado 
palavras tranquilizadoras até eu sentir o sonho desaparecer. 

Desde então eu tivera tempo de procurar o significado das 
palavras que não havia entendido na Índia. Estou com você. Vou 
cuidar de você. Minha amada. Minha querida. Se ele estivesse aqui 
comigo, teria me puxado para abraço ou para o seu colo e teria 
compartilhado da minha tristeza. Teria afagado as minhas costas e 
compreendido meus sentimentos. 

Eu me sacudi. Não, não teria. Podia ter feito isso antes, mas 
agora ele havia mudado. Ele já era e o que teria frito ou como teria 
reagido não tem mais importância. Acabou. 

Jason estava enchendo outro prato e eu tentei parecer 
interessada e me envolver na conversa Meia hora depois todos nos 
levantamos e nos dirigimos campo de futebol. 

Era bom ficar ao ar livre no clima fresco do outono, mas os 
bancos estavam frios e meu nariz, congelado. O frio não parecia 
incomodar Jason e os amigos. Eles ficavam em pé e torciam muito. 
Tentei fazer o mesmo, mas não sabia que estava aplaudindo: o jogo 


estava muito distante para que eu sequer enxergasse a bola. Eu nunca 
me interessara muito por futebol americano. Preferia de longe filmes 
e livros. 

Olhei para o painel do placar. O primeiro tempo estava se 
esgotando. Dois minutos. Um minuto. Vinte segundos. Ufa! O timer 
soou e as duas equipes deixaram o campo correndo. O desfile de 
boas-vindas teve início e vários carros antigos percorreram o 
perímetro externo do campo. Garotas bonitas vestidas com chiffon e 
seda empoleiravam-se no encosto dos bancos traseiros, acenando 
para a multidão. 

Jason se juntou aos outros caras que davam assovios 
estridentes, expressando admiração. O aroma de sândalo subiu pela 
arquibancada e uma voz aveludada sussurrou em meu ouvido: “Você é 
mais bonita do que qualquer uma daquelas mulheres.” 

Virei bruscamente a cabeça, mas ele não estava atrás de mim. 
Jason ainda se encontrava de pé, gritando junto aos amigos. Deixei-
me cair no banco. Ótimo. Agora estou tendo alucinações. Pressionei 
os nós dos dedos contra a cabeça na esperança de que a pressão o 
empurrasse de volta aos recônditos da minha mente. 

Quando o segundo tempo do jogo começou, parei de tentar 
fingir entusiasmo. Esse era o segundo encontro que me transformava 
em picolé. Meu corpo foi lentamente se congelando no banco e 
comecei a bater o queixo. Depois do jogo, Jason me acompanhou até 
o carro e pôs o braço desajeitadamente em meu ombro, 
massageando-o para tentar me aquecer, mas ele fez muita força e 
deixou meu ombro dolorido. Eu nem me dei ao trabalho de perguntar 
quem havia ganhado. 

— Adorei conhecer você melhor esta noite, Kelsey. 

Será que ele tinha mesmo me conhecido melhor? 

— É, também achei legal. 


— Então posso ligar para você outro dia? 

Ponderei por um instante. Jason não era um cara ruim; era 
apenas um cara. Primeiros encontros costumavam mesmo ser 
constrangedores, então decidi lhe dar outra chance. 

— Claro. Você sabe onde me encontrar. 

Dirigi-lhe um sorriso morno. 

— Certo. Vejo você na aula segunda-feira. Tchau. 

—Tchau. 

Ele voltou para seu grupo de amigos barulhentos e eu me 
perguntei se tínhamos alguma coisa em comum. 



Encontro 3 

Antes de que eu me desse conta, chegou o Halloween — e, 
com ele, o encontro com Li. 

Havia alguma coisa nele que fazia com que eu me sentisse 
muito à vontade. Ele era mais divertido que Jason e, a contragosto, 
admiti que era muito possível que eu me sentisse mais relaxada na 
presença de Li porque ele me lembrava um pouco o homem que eu 
estava tentando esquecer. 

Relutante, puxei a porta do closet que jurei nunca abrir e 
encontrei uma blusa de mangas compridas laranja-escuro, enfeitada 
com botões de madeira e uma faixa na cintura. Para combinar, calça 
jeans escura com lycra. Ambas me serviram perfeitamente, como se 
tivessem sido feitas sob medida. Um par de botas escuras encontrava-
se no fundo do armário e, após calçá-las, dei uma voltinha na frente 
do espelho. A roupa fazia com que eu parecesse alta, chique e... 
estilosa, o que não era o meu normal. 


Deixei o cabelo solto, os cachos cascateando pelas costas, para 
mudar um pouco. Passei um brilho alaranjado nos lábios e segui para 
o estúdio, tomando o cuidado de dirigir mais devagar do que de 
hábito para evitar alguma criança desatenta correndo atrás de doces. 

Li estava em seu carro ouvindo música e balançando a cabeça 
para cima e para baixo. Assim que me avistou, imediatamente 
desligou o rádio e saltou carro. 

Ele sorriu. 

— Uau, Kelsey! Você está linda! 

Eu ria fácil com ele. 

— Obrigada, Li. É muita gentileza sua. Se estiver pronto, posso 
seguir você até a casa de sua avó. 

Voltei para o meu carro, mas Li passou correndo por mim e 
abriu a porta. 

— Puxa, quase que eu não consigo! — Ele sorriu para mim 
outra vez. — Meu avô me ensinou a sempre abrir a porta para as 
damas. 

— Nossa, você é um perfeito cavalheiro. 

Ele inclinou a cabeça ligeiramente, riu e então voltou para seu 
carro. Dirigiu devagar também, verificando com frequência no 
retrovisor se eu o acompanhava nos cruzamentos. Seguimos até um 
bairro mais antigo, muito agradável. 

— Meus avós moram nesta casa — explicou Li quando 
entramos. — As noites de jogos são sempre aqui porque a mesa é 
maior. Além disso, minha avó cozinha muito bem. 

Li pegou minha mão e me conduziu para uma cozinha muito 
bonita com cheiro mais gostoso que qualquer restaurante chinês em 
que eu já estivera. Uma mulher pequenina de cabelos brancos espiava 


dentro de uma panela de arroz. Quando ergueu a cabeça, as lentes 
dos óculos estavam embaçadas. 

— Kelsey, esta é Vó Zhi. Vó Zhi, huó Kelsey. 

Ela sorriu, assentiu com a cabeça e segurou meus dedos 
nos dela. 

— Olá. Muito prazer. 

Retribuí o sorriso. 

— Prazer em conhecê-la também. 

Li enfiou o dedo numa panela borbulhante e sua avó pegou 
uma colher de madeira e bateu com ela levemente em sua mão. Então 
o repreendeu em mandarim. 

Ele riu enquanto ela estalava a língua afetuosamente. 

— Até mais tarde, vó. 

Eu a flagrei sorrindo orgulhosa para ele quando deixávamos a 
cozinha. 

Segui Li até a sala de jantar. Toda a mobília havia sido afastada 
para o lado a fim de abrir espaço para a grande mesa. Em torno dela 
encontrava-se um grupo de garotos asiáticos que discutiam 
acaloradamente a colocação das peças no tabuleiro do jogo. Li me 
levou até o grupo. 

— Ei, pessoal. Esta é Kelsey. Ela vai jogar com a gente 
esta noite. 

Um garoto ergueu as sobrancelhas. 

— Muito bem, Li! 

— Agora dá para entender por que ele demorou tanto. 

— Está com sorte. Wen trouxe o kit de expansão. 


Houve vários outros murmúrios e cadeiras foram arrastadas. 
Pensei ter ouvido um Comentário abafado sobre trazer uma garota 
para o grupo, mas não sabia dizer quem teria falado. Depois de alguns 
instantes, todos se acomodaram para começar o jogo. 

Li sentou-se ao meu lado e me explicou as regras do jogo. De 
início eu nunca sabia se era uma decisão sábia trocar trigo por tijolo 
ou minério por ovelhas, então podia pedir ajuda a ele. Depois de 
algumas rodadas, comecei a me sentir confiante o bastante para jogar 
por conta própria. Troquei duas de minhas aldeias por cidades e 
todos os garotos deram um gemido. 

Perto do fim do jogo, estava óbvio que o desfecho seria uma 
disputa entre mim e um garoto chamado Shen. Ele se gabou, de leve, 
sobre como estava perto da vitória e que eu não tinha chance. 
Entreguei uma ovelha, um minério e um trigo e comprei uma carta de 
desenvolvimento. Era um bônus, o último do jogo. 

— Ganhei! 

Os garotos resmungaram, disseram que foi sorte de 
principiante e fizeram um estardalhaço, ameaçando recontar todos os 
meus pontos só para ter certeza de que minha conta estava certa. 
Fiquei surpresa ao saber que haviam se passado horas. Meu estômago 
roncou. 

Li se levantou e se espreguiçou. 

— Hora de comer. 

A avó dele havia montado um delicioso bufê para nós. Os 
garotos fizeram a montanha em seus pratos com arroz frito, bolinhos 
de legumes e de carne, tempura de legumes e verduras e miniaturas 
de rolinhos primavera de camarão. Li pegou refrigerante para nós dois 
e nos acomodamos na sala de estar. 

Ele prendeu seus bolinhos de carne de porco habilmente com 
os hashis e disse: 


— Então me fale sobre você, Kelsey. Alguma coisa além do 
wushu. O que você fez nas férias? 

— Ah, isso. Eu, hã... trabalhei na índia como estagiária. 

— Uau! Isso é incrível! O que você fazia? 

— Na maior parte do tempo catalogava e registrava ruínas, 
obras de arte e as históricas. E você? O que fez nas férias? 

Voltei a pergunta para ele, ansiosa para desviar o foco da 
conversa. 

— Basicamente trabalhei para o meu avô no estúdio. Estou 
tentando economizar para a faculdade de medicina. Eu me formei em 
biologia na cidade de Portland. 

Fiz os cálculos rapidamente, e as contas não pareciam fechar. 

— Quantos anos você tem, Li? 

Ele sorriu. 

— Vinte e dois. Adiantei muitas disciplinas e também fiz 
cursos de verão. Na verdade todos os jogadores aqui são 
universitários. Meii está estudando química, Shen, engenharia da 
computação, Wen acabou de se formar e está fazendo mestrado em 
análise estatística e eu quero fazer medicina. 

— Vocês realmente... sabem o que querem. 

— E você? Está estudando o quê, Kelsey? 

— Estudos internacionais e história da arte. Nesse momento 
estou focando a Índia — respondi, jogando outro bolinho na boca. — 
Mas talvez eu devesse mudar para wushu para me livrar de todas 
essas calorias. 

Li riu e pegou meu prato. Voltamos para a sala de jogos e eu 
parei para olhar a foto de Li e do avô, Chuck. Cada um segurava três 
troféus. 


— Caramba. O estúdio ganhou todos esses? 

Li espiou a foto e enrubesceu. 

— Não, são todos meus. Participei de um torneio de artes 
marciais. 

Ergui as sobrancelhas, surpresa. 

— Eu não sabia que você era assim tão bom. Isso é um feito e 
tanto. 

— Tenho certeza de que meus avós vão lhe falar sobre isso — 
disse Li, me levando de volta à cozinha. — Não tem nada que eles 
gostem mais de fazer do que falar dos méritos de seus descendentes. 
Certo, Vó Zhi? 

Li deu-lhe um beijo no rosto e ela agitou as mãos para enxotá-
lo de sua lava-louças. 

Os rapazes haviam definido um novo jogo que era muito mais 
fácil de aprender. Eu perdi, mas foi muito divertido. Quando o jogo 
chegou ao fim, já passava da meia-noite. Li me acompanhou até o 
carro na noite fria e estrelada. 

— Valeu por ter vindo, Kelsey. Eu me diverti muito com você. 
Acha que ia gostar de repetir a dose? A gente se reúne a cada 15 dias. 

— Claro. Parece divertido. E já que eu ganhei no primeiro jogo 
você vai pegar mais leve comigo na aula de wushu? — provoquei. 

— Nada disso. Quando você ganha, eu pego ainda mais 
pesado. 

Eu ri. 

— Então me lembre de perder da próxima vez. E o que 
acontece quando você ganha? 

Ele sorriu. 


— Hum... vou pensar. 

Ele recuou e ficou parado sob a luz da entrada da casa, 
observando enquanto eu me afastava. 

Fui para a cama me arrastando de cansaço, pensando que, com 
o passar do tempo, eu poderia aprender a gostar de Li. Ele era 
divertido e gente boa. Eu não sentia nada por ele que não fosse 
amizade, mas talvez isso pudesse mudar no futuro. A vida normal 
estava começando a parecer... normal outra vez. Virei-me de lado, me 
enrolei na colcha da minha avó e acidentalmente derrubei meu tigre 
branco da cama. 

Por alguns instantes considerei a possibilidade de deixá-lo no 
chão ou colocá-lo no armário. Fiquei deitada imóvel, olhando o teto, 
tentando reunir forças para fazer isso. Minha decisão durou apenas 
cinco minutos e eu me repreendi por minha fraqueza. Estiquei-me na 
cama, peguei o tigre de pelúcia e o aconcheguei junto ao peito, me 
desculpando pelo simples fato de ter tido tal pensamento. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!