quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 4 - A voz grossa do Pantanal

Aquela voz grossa era segura, confortadora. E a figura do Senador, meio
debruçado sobre o leito do hospital, trouxe a Crânio um tranqüilo despertar.
— Muito bem! Nosso corajoso garotão já está de volta ao mundo dos vivos.
Pelo menos ao mundo dos acordados!
— Eu... eu estive desmaiado todo esse... ?
— Não. Você dormiu devido a um calmante que o médico lhe aplicou. A
pancada não pegou de jeito. O médico disse que está tudo bem, Crânio. Tia
Matilde contou que é assim que o chamam. Crânio! Se você for tão inteligente
quanto tia Matilde é engraçada, você deve ser um gênio!
Crânio sorriu meio sem jeito, sem responder.
— Acha estranho que eu também chame sua tia Matilde de tia? Ela também é
a tia de todo o Pantanal. Uma tia muito querida, muito querida mesmo. É assim
que todos a chamamos: tia Matilde!
O rapaz sentou-se na cama e apalpou um pequeno curativo ao lado da orelha.
— O senhor é um senador? Desculpe, mas eu nunca... O grandalhão fez um
gesto evasivo e sentou-se ao lado de Crânio.
— Não. Eu não sou um senador, mas todos aqui me chamam de Senador. É
uma espécie de respeito. E respeito nunca é demais.
O rapaz estranhou a lógica daquele lugar, onde chamavam de senador
qualquer político poderoso, e de tia qualquer velhinha engraçada.
— Todos lhe devemos muitas desculpas, garotão. Acredite, não costumamos
receber nossas visitas a coronhadas. Aquele cão que você dominou é treinado
para farejar tóxicos. Quando ele latiu em sua direção, estava na pista certa, mas
o tenente não devia tê-lo soltado em cima de você. Pior ainda foi a coronhada.
Mas o tenente só podia pensar que a cocaína estava...
— Cocaína? Que história é essa?
— Você não sabe de nada, não é? É claro que não sabe. Esta é uma das
muitas histórias tristes que estão transformando este paraíso em um enredo
sinistro. Não fossem os mosquitos, qualquer um diria que Adão e Eva foram
expulsos do Pantanal e não do Éden. Este é o pedaço mais lindo do planeta, mas
do jeito que vão as coisas o paraíso está se transformando em verdadeiro inferno.
Acho que já é um purgatório para muita gente...
— Mas o senhor disse que a cocaína...
— A cocaína é apenas um dos ingredientes do panelão infernal que está sendo
cozido por aqui. As drogas, o contrabando, o desmatamento, a destruição dos
índios, ò brutal extermínio dos jacarés e de tudo quanto é único no Pantanal
misturam-se como uma receita dos demônios. Não sei se vai ser possível
encontrar um antídoto para todo esse envenenamento.
O Senador foi interrompido pela entrada do médico. Era o mesmo que
atendera o jovem no aeroporto. Junto com ele, entrou outro homem, que Crânio
imediatamente reconheceu: o tenente de bigode que o atingira!
— Oh, oh! — gozou o Senador. — Chegou alguém que realmente deve
desculpas!
— Com licença, Senador — gaguejou o tenente, agora bem menos à vontade
do que na batalha do aeroporto. — É que eu queria falar com o garoto antes de
ele ir embora. Olhe, eu não sabia que tia Matilde era sua tia de verdade. Na hora,
eu pensei que...
— Deixa pra lá — acalmou-o Crânio. — Eu não estou zangado com você.
— Nesse caso... — continuou o tenente, com uma timidez que contrastava
com a agressividade exibida no aeroporto —...nesse caso, o senhor talvez possa
dizer à tia Matilde que eu não...
— Onde está tia Matilde, Senador? — interrompeu Crânio, incomodado com o
jeito servil do tenente. — Não conheço minha tia, sabe? Esta seria a primeira vez
que nos encontraríamos.
O Senador gargalhou alto, perturbando certamente metade do hospital:
— Ah, a velha tia Matilde estava chegando naquele avião rosa-choque, justo
no momento de toda aquela confusão. Ficou aflitíssima quando viu seu sobrinho
desmaiado e providenciou tudo para que você tivesse o melhor atendimento aqui
no hospital. Depois voltou para o aeroporto e brigou com todo mundo, como se o
pessoal de terra fosse responsável pela falta de pressão de óleo nos motores
daquela velha relíquia da 2.a Guerra Mundial. Não deixou que nenhum mecânico
tocasse no avião rosa-choque. Mandou trancá-lo em um hangar e colocou a
tripulação de guarda, como se alguém pudesse se interessar por aquela velharia...
Depois alugou um jatinho e foi-se com Pepino, seu piloto ítalo-americano, em
busca de seu próprio mecânico, dizendo que não confia "nos incompetentes
brasileirinhos"! Ah, você precisava conhecer o mecânico de tia Matilde: é outro
ítalo-americano, tão velho quanto o C-47 que...
Crânio ouviu, divertido. Mesmo sem conhecer a própria tia, ele já podia fazer
uma idéia de como seria aquela figura...
— A pancada na cabeça foi menor que o susto, meu rapaz — diagnosticou o
médico, depois de um rápido exame. — Teve sorte. Está pronto pra outra.
Disse a velha piada de todos os médicos, rabiscou uma ordem de alta
hospitalar e retirou-se.
— Também já estou indo, garotão — trovejou o Senador. — O que pretende
fazer? Posso levá-lo a um hotel enquanto espera tia Matilde consertar aquele
paquiderme cor-de-rosa...
A lembrança do avião avariado deixou Crânio inquieto. Esperar não estava
nos seus planos.
— O conserto do avião vai demorar, não vai?
— Talvez uns dois dias. Por quê? Está muito ansioso para iniciar suas férias no
Pantanal?
— Ansioso? Oh! não... é que... é que eu vim por causa de um professor amigo
meu. Ele me falou de tanta coisa fascinante que fiquei curioso demais. Mal dá
para esperar. Gostaria de fazer o mesmo roteiro que ele fez.
O Senador voltou-se para Crânio logo que ouviu a palavra "professor".
Parecia interessado.
— Seu professor esteve aqui? Professor de geografia, ou de biologia, suponho.
— Não. Professor de matemática. E fotógrafo amador. Professor Elias...
O Senador e o tenente trocaram um rápido olhar que não escapou à atenção
de Crânio. O rapaz disfarçou, ajeitando a pequena bandagem e dando a
impressão de que nada tinha percebido.
— O professor Elias esteve aqui na semana santa. Talvez o senhor o tenha
conhecido, Senador. Ele andou pelo oeste da rodovia Transpantaneira...
— A oeste da Transpantaneira? — cortou o grandalhão —Vai ver foi lá pelos
lados das minhas terras e da fazenda da tia Matilde. Bem, é fácil ter sido pelos
lados da fazenda da tia Matilde. Ela está por todos os lados!
— É para esses lados que eu gostaria de ir, Senador.
Gostaria de ver o que o professor Elias viu.
Sem olhar para o garoto, subitamente interessado nas dobras do lençol, o
Senador perguntou:
— Você se encontrou com o seu professor antes de vir para cá?
Crânio resolveu mentir. Não saberia explicar por quê, mas resolveu não falar
da morte do professor Elias.
— Não... Há duas semanas eu não o vejo. Antecipei minhas férias e, antes de
embarcar para cá, fui cuidar de uns cursos extras que pretendo fazer...
O Senador olhou com estranheza para Crânio, como se custasse a
compreender o que ouvia. De repente, como se despertasse, gargalhou alto e deu
um estrepitoso tapa nas costas do garoto, decidido.
— Então está feito. Deixamos um recado para tia Matilde e partimos para o
Pantanal hoje mesmo. A Fazenda Rosa-Pink é o meu vizinho. Você fica nas
minhas terras até...
— Fazenda Rosa-Pink!?
— A fazenda de tia Matilde. Tudo é pink, tudo é rosa para ela. Você vai ver.
Aceita o convite?
— Aceito!
Subitamente apressado, o Senador encaminhou-se para a porta.
— Apronte-se. Daqui a uma hora passo para buscá-lo. Vamos para o
Pantanal, garotão!
Saiu espalhafatosamente.
O tenente de bigode ia sair também, quando foi detido pela voz de Crânio:
— E a cocaína, tenente? Onde estava? Nas roupas do bebê?
Uma expressão de cristal gelado passou, por um instante, pelos olhos do
tenente. Crânio percebeu que ele se sentia mais seguro lidando com desgraças do
que pedindo desculpas.
— Não, a cocaína não estava nas roupas do bebê, senhor sobrinho de tia
Matilde. Estava no bebê. O corpo dele estava costurado do pescoço à virilha. Os
malditos esvaziaram as entranhas de um pobre cadaverzinho e o encheram com
drogas!

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