quinta-feira, 6 de março de 2014

Capítulo 5 - Retorno


Envolta em seus braços eu ouvia meus batimentos cardíacos. 
Quando me tocou, todas as emoções que eu vinha contendo 
transbordaram e inundaram meu corpo, preenchendo lentamente o 
vazio em meu peito. 

Eu me senti desabrochar e crescer com novo alento. Ren era o 
sol e a ternura que ele me dedicava era a água que proporcionava a 
vida. Uma parte dormente de mim explodiu, viva e pulsante, estendeu 
raízes profundas, abriu folhas verdes e espessas e disparou ramos 
anelados, unindo-nos ainda mais. 

Sarah chamou da cozinha, lembrando-me de que existia um 
mundo além de nós dois. 

— Kelsey? Kelsey? Quem é? 

Voltando à realidade, eu me afastei. Ele me soltou, mas 
deslizou a mão pelo meu braço e entrelaçou os dedos nos meus. Eu 
estava muda. Minha boca se abriu para responder, mas não consegui 
falar uma palavra sequer. 


Ren notou minha dificuldade e anunciou sua chegada. 

— Com licença. Vocês são o Sr. e a Sra. Neilson? 

Tanto Mike quanto Sarah pararam o que estavam fazendo ao 
dirigiu-lhes seu sorriso arrasador e estendeu a mão. 

— Olá. Sou o neto do Sr. Kadam, Ren. 

Ele apertou calorosamente a mão de Mike e então á estendeu 
para Sarah. Quando Ren voltou seu sorriso para ela, Sarah 
enrubesceu, nervosa corno uma adolescente. Saber que eu não era a 
única mulher a ficar abobada quando ele estava por perto fez com que 
eu me sentisse melhor. Ele exercia um efeito hipnótico sobre 
mulheres de todas as idades. 

— Oi, Ren — disse Mike. — Que coincidência. Ei, Kelsey, 
aquele tigre não 

Eu me adiantei. 

— Ah, é. Engraçado, não? — Olhei para Ren e o apontei com o 
polegar. — Mas Ren na verdade é só o apelido dele. Seu nome mesmo 
é...Al. — Dei-lhe um soco no braço. Não é mesmo, Ai? 

Ele franziu as sobrancelhas, confuso. 

— É, sim, Kelsey. — Então voltou-se novamente para Mike e 
Sarah. — Na verdade, é Alagan, mas podem me chamar de Ren. 
Todos me chamam assim. 

A essa altura Sarah já havia se recuperado. 

— Ren, por favor, entre e conheça as crianças. 

E sorriu para ela novamente e disse: 

— Eu adoraria. 


Sarah respondeu reprimindo uma risadinha infantil e ajeitando 
o cabelo, Ren se abaixou para pegar vários pacotes grandes que ele 
havia empilhado junto á porta, enquanto eu seguia direto para a sala. 

Enquanto Mike ajudava Ren, Sarah veio até mim e sussurrou: 

— Kelsey, quando vocês dois se conheceram? Por um instante, 
pensei que esse finalmente conhecendo Li. O que está acontecendo? 

Fitei a árvore de Natal enquanto murmurava: 

— É o que eu gostaria de saber. 

Os homens entraram na sala, onde Ren tirou o sobretudo cor 
de carvão e o pendurou numa cadeira. Ele vestia calça jeans e uma 
camisa polo cinza de mangas compridas e zíper, que modelava seu 
peito e seus braços. 

— Quem é Li? — perguntou Ren. 

— Como você... — Fechei a boca rapidamente. Eu havia me 
esquecido de sua audição de tigre. — Li é... é ... um cara... que eu 
conheço. 

Sarah ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. 

Ren me observou com atenção, esperou educadamente que eu 
me sentasse e então se acomodou no sofá ao meu lado. No instante 
seguinte as crianças estavam em cima dele. 

— Eu trouxe presentes para vocês dois— disse, em tom 
conspiratório. — Vocês podem abri-los juntos? 

Ás crianças fizeram que sim com a cabeça, sérias, e ele riu e 
entregou a elas uma caixa grande. Elas a abriram freneticamente e 
tiraram dali uma coleção de livros do Dr. Seuss. A princípio os livros 
me pareceram estranhos. Peguei um deles e descobri por quê. 


— Você comprou exemplares raros, da primeira edição! — 
sussurrei para ele. — Para crianças? Devem valer milhares de dólares 
cada um! 

Ele prendeu uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e se 
inclinou. 

— Tenho em casa uma coleção igualzinha para você — 
sussurrou. — Não seja ciumenta. 

Meu rosto ficou vermelho vivo. 

— Não foi isso que eu quis dizer. 

Ele riu e pegou o presente seguinte. Mike olhava a todo 
instante pela janela o carro de Ren. 

— Ren, estou vendo que você dirige um Hummer. 

Ren ergueu os olhos para Mike. 

— Isso mesmo. 

— Acha que pode me levar para dar uma volta? Quer dizer... 
sabe, eu sempre quis andar num desses. 

Ren esfregou o queixo. 

— Claro, só não posso hoje. Tenho que me instalar em minha 
nova casa. 

— Ah... você vai ficar aqui por um tempo? 

— É o que pretendo fazer, pelo menos este semestre. Eu me 
matriculei em algumas disciplinas na Western Oregon University. 

— Bem, isso é ótimo. Vai frequentar a mesma universidade de 
Kelsey. 

Ren sorriu. 

— É. Talvez a gente se esbarre por lá. 


Mike voltou a atenção para o carro novamente com um grande 
sorriso no rosto. Sarah me observava atenta. Tentei manter uma 
expressão neutra, mas, por dentro, eu era um amontoado incoerente 
de perguntas. 

O que ele está pensando? Vai ficar aqui? Onde? Vai para a 
faculdade comigo? O que eu vou fazer? Por que ele está aqui? 

Ren deslizou uma grande caixa para Sarah e Mike. 

— Este é para vocês dois. 

Mike ajudou Sarah a abrir a embalagem e tiraram dali uma 
batedeira vermelha novinha em folha, com todo tipo de acessórios 
que se pode imaginar. Eu não ficaria surpresa se Sarah pudesse criar 
uma escultura de gelo com aquela coisa. Ela começou a falar cheia de 
entusiasmo sobre todas as coisas orgânicas e sem trigo que agora 
poderia fazer. 

Ren pegou um pacote menor e o entregou a mim. 

— Este é do Sr. Kadam. 

Abri e encontrei exemplares encadernados em couro do 
Mahãbhãrata, da Índia, do Romance dos três reinos, da China, e de O 
conto de Genji, do Japão, todos traduzidos para o inglês. Também 
havia uma breve carta me desejando feliz Natal. 

Corri a mão sobre as capas de couro e planejei ligar para ele 
mais tarde e lhe agradecer. 

Ren me entregou outro presente. 

— Este é de Kishan. 

Sarah ergueu os olhos de sua batedeira e perguntou: 

— Quem é Kishan? 

— Kishan é meu irmão mais novo — respondeu Ren. 


Sarah me lançou um olhar maternal de repreensão, ao qual 
reagi dando de ombros timidamente. Eu não havia falado nem de Ren 
nem de Kishan para ela, que devia estar se perguntando como eu 
poderia deixar de lembrar de alguém como ele. 

Desfiz o embrulho e encontrei uma caixinha de joias da 
Tiffany’s. Dentro havia um delicado colar de ouro branco, O cartão 
havia sido escrito à mão, muito capricho: 



Oi, Kells, 

Estou com saudade. 

Venha logo para casa. 

Achei que você fosse gostar de algo mais 

feminino para usar com meu amuleto. 

Também tem um presente extra na caixa, 

para o caso de você precisar. 

Kishan 



Deixei o cordão de lado e vasculhei a caixa. Encontrei um 
pequeno cilindro envolto em papel fino. Desenrolando-o, um frio 
recipiente de metal caiu na palma da minha mão. Era uma latinha de 
spray de pimenta. Nele, Kishan havia colado uma imagem de um tigre 
com um círculo cortado ao meio sobre o rosto. No alto, liam-se as 
palavras “Repelente Contra Tigres” em letras grandes e negras. 

Eu ri e Ren o tomou de mim. Depois de ler o rótulo, ele franziu 
a testa e jogou a lata de volta na caixa. Abaixando-se, pegou mais um 
pacote. 

— Este é meu. 


Suas palavras me deixaram alerta. Olhei rapidamente para 
avaliar a expressão de Mike e de Sarah. Mike parecia contente, alheio 
à tensão que eu sentis, mas Sarah estava mais ligada e me observava 
com atenção. Fechei os olhos por um segundo, rezando para que o 
que quer que houvesse naquela caixa não motivasse um bilhão de 
perguntas. 

Deslizei os dedos sob o elaborado papel de presente e desfiz o 
embrulho. 

Levando a mão ao interior da caixa, senti algo de madeira lisa e 
polida. Lá dentro havia um porta-joias entalhado à mão. 

Ren se inclinou na minha direção. 

— Pode abrir. 

Corri a mão nervosamente pela tampa e a abri com cuidado. 
Havia fileiras de minúsculas gavetas, forradas com veludo, e dentro de 
cada gavetinha uma fita de cabelo enrolada. 

—As partes são soltas, está vendo? 

Ele ergueu a seção superior e a seguinte. Havia cinco seções, 
com cerca de 40 fitas por seção. 

— Todas as fitas são diferentes. Não há nenhuma cor repetida 
e tem pelo menos uma de cada um dos principais países do mundo. 

Atônita, eu disse: 

—Ren... eu... 

Levantei a cabeça. Mike não via nada de extraordinário na 
cena. Ele devia achar que uma coisa assim acontecia todos os dias. 
Sarah olhava para Ren com outros olhos. Suas expressões de suspeita 
e preocupação haviam desaparecido. 

Com um pequeno sorriso de aprovação, ela disse: 


— Parece que você conhece Kelsey muito bem, Ren. Ela adora 
fitas de cabelo. — De repente Sarah pigarreou, pôs-se de pé e nos 
pediu que olhássemos as crianças enquanto eles iam dar uma 
corridinha. Eles nos trouxeram duas canecas de chocolate fumegante 
e desapareceram escada acima, indo trocar de roupa. Embora eles se 
exercitassem sempre, em geral faziam uma pausa no Natal. Será que 
ela estava tentando nos dar algum tempo a sós? Eu não sabia se devia 
abraçá-la ou implorar para que ficasse. 

A caixa ainda estava no meu colo e eu manuseava 
distraidamente uma fita quando os dois saíram correndo pela porta 
com um aceno. 

Ren tocou minha mão. 

— Você não gostou? 

Olhei dentro de seus olhos azuis e disse, a voz rouca: 

— É o melhor presente que já ganhei. 

Ele sorriu, radiante, pegou minha mão e depositou um beijo 
em meus dedos. 

Voltando-se para as crianças, perguntou: 

— Quem quer ouvir uma história? 

Rebecca e Sammy escolheram um livro e subiram no colo de 
Ren. Ele envolveu cada um deles com um braço e começou a ler. Só 
empacou numa palavra, mas as crianças o ajudaram, e a partir de 
então ele leu certinho. Eu estava impressionada. O Sr. Kadam deve tê-
lo ensinado a ler inglês. 

Ren convenceu Sammy a segurar o livro para ele e me agarrou 
com o braço livre, Ele me puxou contra seu corpo, de modo que 
minha cabeça :cansasse em seu ombro. Então correu os dedos, 
provocante, para cima e baixo em meu braço. 


Quando Mike e Sarah voltaram, levantei de um salto e comecei 
a recolher minhas coisas numa louca correria. Nervosa, olhei para Ren 
e o peguei me observando com o olhar ligeiramente divertido. Mike e 
Sarah nos agradeceram e me ajudaram a levar as coisas para o carro. 
Ren também se despediu e ficou minha espera do lado de fora. 

Sarah me dirigiu um olhar que dizia: “Você tem explicações a 
dar, mocinha.“ Então fechou a porta e nos deixou no frio de 
dezembro. Estávamos finalmente sozinhos. 

Ren tirou uma das luvas e traçou o contorno do meu rosto com 
os dedos cálidos. 

— Vá para casa, Kells. Não me faça perguntas agora. Este não é 
o lugar apropriado. Vamos ter tempo suficiente mais tarde. Encontro 
você lá. 

— Mas... 

— Mais tarde, rajkumari. 

Ele tornou a colocar a luva e se encaminhou para o Hummer. 

Quando foi que ele aprendeu a dirigir? Fiz a volta com meu 
carro e fiquei observando o Hummer pelo retrovisor até eu virar 
numa rua secundária e ele aparecer do meu campo de visão. 

Milhares de indagações martelavam minha cabeça e percorri a 
lista na subida da colina. A estrada estava parcialmente coberta de 
gelo. Deixei de lado as perguntas urgentes para me concentrar na 
direção. 

Quando dobrei a curva e vi minha casa, percebi que alguma 
coisa estava diferente. Levei um minuto para descobrir o que era: 
havia cortinas na janela da outra casa geminada. Alguém havia se 
mudado para lá. 

Estacionei na garagem e andei até a porta de entrada da outra 
casa. Bati, mas ninguém respondeu. Girando a maçaneta, encontrei a 


porta destrancada. A casa estava mobiliada quase da mesma maneira 
que a minha, só que em cores mais escuras, mais masculinas. Quando 
vi o velho bandolim descansando no sofá de couro, minhas suspeitas 
foram confirmadas. Ren estava se mudando para aquela casa. 

Fui até a cozinha, encontrei a despensa e a geladeira vazias e vi 
que na parte inferior da porta dos fundos havia sido adaptada uma 
portinhola grande demais. 

Humm... isso não vai impedir a entrada de um ladrão. Ele pode 
rastejar e entrar. Mas acho que teria uma bela surpresa se tentasse 
roubar alguma coisa aqui. 

Corri para minha casa, fechando a porta, sem me dar ao 
trabalho de olhar no segundo andar ou verificar o closet em busca das 
peças de grife que eu sabia que encontraria por lá. Não havia a menor 
dúvida de que Ren era meu novo vizinho. 

Na verdade, eu tinha acabado de tirar os sapatos e o casaco 
quando ouvi o que só podia ser o Hummer entrando na outra 
garagem. Eu o observei pela janela. Ren era um bom motorista. De 
alguma forma conseguira manobrar o veículo imenso entre os galhos 
salientes que poderiam arranhar a pintura. 

Ouvi o ruído de seus passos no caminho congelado enquanto 
ele se dirigia à minha porta. 

Deixando-a aberta para ele, fui para a sala de estar, sentei-me 
na poltrona reclinável com os pés dobrados sob o corpo e cruzei os 
braços diante do peito. Eu sabia que os especialistas em linguagem 
corporal diriam que essa era uma postura defensiva clássica, mas não 
me importava. 

Eu o ouvi fechar a porta, tirar o casaco e pendurá-lo. Então 
finalmente entrou na sala. Ele estudou meu rosto por um breve 
momento e então correu a mão pelo cabelo, sentando-se diante de 
mim. Seu cabelo estava mais comprido do que na Índia. Fios negros e 
sedosos caíam-lhe na testa e ele os jogou para trás, irritado. Parecia 


major, mais musculoso do que eu me lembrava. Deve estar se 
alimentando melhor do que antes. 

Ficamos nos entreolhando em silêncio por vários segundos. 

— Então... você é o meu novo vizinho — eu disse, por fim. 

Ele suspirou suavemente. — Não consegui mais ficar longe de 

— Eu não sabia que você estava tentando ficar longe de você. 

— Foi o que você me pediu. Eu estava tentando respeitar seu 
desejo. Queria lhe dar tempo para pensar. Para clarear a mente. 
Para... ouvir seu coração. 

Eu certamente tivera tempo para pensar. Infelizmente, meus 
pensamentos continuavam confusos. Eu não havia conseguido 
raciocinar desde que deixara a Índia. E não tinha dado ouvidos ao meu 
coração desde que acordara ao lado de Ren em Kishkindha. Fazia 
meses que eu me desligara do meu coração. 

— Ah. Então seus sentimentos não... mudaram? 

— Meus sentimentos estão mais fortes do que nunca. 

Seus olhos azuis estudaram meu rosto. Ele afastou o cabelo 
dos olhos e se inclinou para a frente. 

— Kelsey, cada dia que você ficou longe de mim foi uma 
agonia. Eu fiquei louco. Se o Sr. Kadam não tivesse me mantido 
ocupado cada minuto de cada dia eu teria tomado um avião na 
semana seguinte. Eu ouvia pacientemente enquanto ele me instruía, 
mas só tenho seis horas como humano. Como tigre, abri um caminho 
no tapete do meu quarto de tanto andar de um lado para outro, hora 
após hora. Ele quase pegou um rifle de caça para me aplicar 
tranquilizante. Nada me acalmava. Eu estava sempre inquieto, um 
animal selvagem sem... sem sua fêmea. 

Remexi-me, nervosa, e mudei de posição na cadeira. 


— Eu disse a Kishan que precisava treinar para trazer minhas 
habilidades de luta de volta ao padrão esperado. Lutávamos o tempo 
todo, tanto como homens quanto como feras. Treinávamos com 
armas, garras, dentes e com as mãos. Praticar com ele foi 
provavelmente a única coisa que me manteve são. Eu desabava no 
tapete todas as noites, ensanguentado, exausto, esgotado. Mas, ainda 
assim.., podia sentir você. 

Ele me fitou antes de prosseguir. 

— Mesmo do outro lado do mundo eu muitas vezes acordava 
com o seu cheiro à minha volta. Eu ansiava por você, Kells. Por mais 
que Kishan me surrasse, a dor de perdê-la não diminuía. Eu sonhava 
com você e estendia a mão para tocá-la, mas você estava sempre fora 
do meu alcance. Kadam ficava me dizendo que era melhor assim e 
que eu tinha coisas a aprender antes de poder vir para o Oregon. Ele 
devia estar certo, mas não era o que eu queria ouvir. 

— Mas, se você queria ficar comigo, então... por que não 
telefonou? 

— Era o que eu queria fazer. Era uma tortura ouvir sua voz 
toda semana quando você ligava para Kadam. Eu ficava esperando ao 
lado dele todas as vezes, torcendo para que pedisse para falar comigo, 
mas você nunca pediu. Eu não queria pressioná-la. Queria respeitar 
seu desejo. Queria que a decisão fosse sua. 

Que ironia. Tantas vezes eu quis perguntar por ele, mas não 
conseguia fazer isso. 

— Você ouvia as nossas conversas ao telefone? 

— Ouvia. Tenho ótima audição, lembra? 

— Sim. Então o que... mudou? Por que vir aqui agora? 

Ren riu sarcasticamente. 


Foi graças a Kishan. Um dia, durante uma de nossas lutas, ele 
estava acabando comigo, como sempre. A essa altura, eu nem me 
esforçava mais para competir com ele. Eu queria que ele me 
machucasse. De repente ele parou. Andou à minha volta e me olhou 
de cima a baixo. Fiquei lá, parado, esperando que retomasse a luta. 
Então ele fechou a mão e me deu o soco mais forte de que foi capaz. 

— Meu Deus. 

— Eu simplesmente recebi o golpe, sem nem me dar ao 
trabalho de me defender. Em seguida, ele me socou com toda força na 
barriga. Eu me recuperei e me levantei novamente diante dele, sem 
me importar. Ele rosnou e berrou na minha cara. 

— O que foi que ele disse? 

— Muitas coisas, a maioria das quais prefiro não repetir. O que 
disse de mais importante foi que eu precisava sair dessa e perguntou 
por que eu não me levantava e fazia alguma coisa, já que estava tão 
infeliz. 

— Ele zombou de mim, dizendo que o poderoso Príncipe do 
Império Mujulaain, o Sumo Protetor do Povo, o campeão da Batalha 
dos Cem Cavalos, herdeiro do trono, fora abatido por uma garota. 
Gritou que não havia nada mais patético que um tigre covarde 
lambendo suas feridas. Mas a essa altura eu não estava nem aí para o 
que ele falava. Nada me perturbou até ele me dizer que nossos pais 
ficariam envergonhados, que eles haviam criado um covarde. Foi aí 
que tomei uma decisão. 

— A decisão de vir aqui. 

Sim. Decidi que precisava ficar perto de você. Decidi que, 
mesmo que você só quisesse minha amizade, eu estaria mais feliz aqui 
do que na India sem você. 

Ren se levantou, ajoelhou-se e pegou minha mão. 


— Decidi encontrá-la, me atirar aos seus pés e implorar para 
que tenha misericórdia de mim. Vou aceitar o que você decidir. De 
verdade, Kelsey. Só não me peça que fique longe de você outra vez. 
Porque... eu não posso. 

Como eu poderia resistir? As palavras de Ren penetraram as 
frágeis barreiras em torno do meu coração. Eu tivera a intenção de 
erguer uma cerca de arame farpado, mas o arame tinha pontas de 
marshmallow. Ele passou facilmente por minhas defesas. Ren pousou 
a testa em minha mão e meu coração de marshmallow se derreteu. 

Passei os braços em torno de seu pescoço, abraçando-o, e 
sussurrei em seu ouvido: 

— Um príncipe da Índia nunca deve se ajoelhar e implorar por 
nada. Está bem. Você pode ficar. 

Ele suspirou e me apertou mais. 

Eu sorri com ironia. 

— Afinal, eu não ia querer que a sociedade protetora dos 
animais viesse atrás de mim por maus-tratos a um tigre. 

Ele riu. 

— Espere aqui — disse e saiu pela porta que conectava nossas 
casas. 

Voltou com um pacote amarrado com uma fita vermelha. 

A caixa era comprida, fina e negra. Eu a abri e encontrei uma 
pulseira. A corrente fina tinha um medalhão oval de ouro branco, 
dentro do qual havia duas fotografias: Ren, o príncipe, e Ren, o tigre. 

Eu sorri. 

— Você sabia que eu ia querer me lembrar do tigre também. 

Ren prendeu a pulseira em meu pulso e suspirou. 


— Sabia, embora eu tenha um pouco de ciúme dele. Ele passa 
muito mais com você do que eu. 

— Hum. Não tanto quanto antes. Sinto falta dele. 

Ele fez uma careta. 

— Acredite em mim, você o verá muito nas próximas semanas. 

Seus dedos quentes roçaram meu braço e meu coração 
acelerou. Ele puxou meu braço até a altura de seus olhos, examinou o 
pingente e depositou um beijo no pulso. 

Os olhos de Ren brilharam, maliciosos, enquanto ele 
perguntava: 

— Então... gostou? 

— Gostei. Obrigada. Mas... — Minha expressão mudou, 
mostrando tristeza. — Eu não comprei nada para você. 

Ele me puxou e me abraçou pela cintura. 

— Você me deu o melhor presente de todos: o dia de hoje. É o 
melhor presente que eu poderia ter desejado. 

Eu ri e provoquei: 

— Nesse caso, que porcaria de embrulho que eu fiz. 

— É, tem razão. É melhor eu embrulhar você devidamente. 

Ren pegou a colcha da minha avó no encosto da poltrona e me 
enrolou feito uma múmia. Eu me debati e gritei enquanto ele me 
pegava nos braços e me punha no colo. 

— Vamos ler alguma coisa, Kells. Estou pronto para outra peça 
de Shakespeare. Tentei ler uma sozinho, mas tive muita dificuldade 
com a pronúncia das palavras. 

Pigarreei dentro de meu casulo. 


— Como pode ver, meu captor, meus braços estão presos. 

Ren se inclinou para fazer um carinho com o nariz em minha 
orelha e de repente ficou rígido. 

— Tem alguém aqui. 

A campainha soou. Ren se levantou de um salto, me colocou 
em pé e me livrou da colcha antes que eu pudesse piscar. Fiquei ali 
parada por um instante, tonta e confusa. Então corei, constrangida. 

— O que aconteceu com sua audição de tigre? — sibilei. 

Ele sorriu para mim. 

— Eu estava distraído, Kells. Você não pode me culpar. Está 
esperando alguém? 

De repente me lembrei: 

— Li! 

— Li? 

Fiz uma careta. 

— Temos um... um encontro. 

Os olhos de Ren escureceram e ele repetiu baixinho: 

— Você tem um encontro? 

— Tenho... — respondi, hesitante. 

Em minha mente disparavam pensamentos sobre o homem à 
minha frente e o outro, diante da porta. Ren está de volta, mas o que 
isso significa? E o que eu devo fazer agora? 

A campainha tornou a soar No mínimo eu sabia que não podia 
deixar Li esperando. 

Voltando-me para Ren, expliquei: 


— Preciso ir agora. Por favor, fique aqui. Veja o que tem na 
geladeira e faça um sanduíche. Volto mais tarde. Por favor, tenha 
paciência. E não... fique... zangado. 

Ren cruzou os braços diante do peito e estreitou os olhos. 

— Se é isso que você quer que eu faça, é o que farei. 

Suspirei com alívio. 

— Obrigada. Estarei de volta assim que puder. 

Calcei os sapatos e peguei o embrulho com a coleção de DVDs 
que havia comprado para Li. Com os lábios apertados, Ren me ajudou 
a vestir o casaco e foi para a cozinha. Ele se recostou na bancada com 
os braços cruzados e ergueu as sobrancelhas. Dirigi-lhe um sorriso 
débil e suplicante e segui para a porta da frente. 

Senti uma pontada de culpa por ter um presente para Li e 
nenhum para Ren mas rapidamente descartei essa sensação e abri a 
porta, agindo como se nada estranho estivesse acontecendo. 

— Oi, Li. 

— Feliz Natal, Kelsey — disse ele, completamente alheio ao 
fato de que tudo na minha vida havia mudado mais uma vez. 

Meu encontro com Li não transcorreu como originalmente 
planejado. Devíamos ver um filme de artes marciais e depois ir para o 
jantar de Natal na casa da Vó Zhi. Eu estava séria e meus 
pensamentos insistiam em me levar a volta a Ren. Era difícil me 
concentrar em Li — ou em qualquer outra coisa. 

— O que foi, Kelsey? Você está muito quieta. 

— Li, você se importa se pularmos o filme e anteciparmos o 
jantar? Preciso dar alguns telefonemas quando chegar em casa. Quero 
desejar feliz Natal a alguns amigos. 


Li ficou decepcionado, mas replicou alegremente, como 
sempre. 

— Ah. Claro. Isso não é problema. 

Aquilo não era exatamente mentira. Eu pretendia ligar para o 
Sr. Kadam mais tarde. Porém isso não me fez sentir nem um pouco 
melhor por mudar nossos planos. 

Na casa da Vó Zhi, os garotos estavam no meio de uma 
maratona de um dia inteiro de jogos. Participei de alguns, mas estava 
distraída e tomei decisões estratégicas ruins — tão ruins que até os 
rapazes comentaram. 

— O que você tem, Kelsey? — perguntou Wen. — Nunca 
deixou que eu me safasse com uma jogada como essa. 

Sorri para ele. 

— Não sei. Melancolia de Natal, talvez. 

Eu estava perdendo feio, então Li pegou minha mão e me 
levou para a sala ir de trocarmos nossos presentes. Li e eu abrimos os 
pacotes ao mesmo tempo. 

Rasgamos os papéis e rimos muito por muito tempo. 
Havíamos comprado exatamente o mesmo presente para o outro. Era 
uma sensação boa aliviar parte da tensão que havia se acumulado. 

— Parece que nós dois gostamos de DVDs de artes marciais — 
disse ele, rindo. 

— Desculpe, Li. Eu devia ter pensado mais. 

Ele ainda estava rindo. 

— Não se preocupe. Ë um bom sinal. Vó Zhi diria que é um 
sinal de boa sorte na cultura chinesa. Significa que somos 
compatíveis. 

— É — eu disse, pensativa —, acho que sim. 


Voltamos ao jogo depois de comer e joguei sem entusiasmo 
enquanto pensava no que ele tinha dito. Li estava certo em muitos 
aspectos. Nós éramos compatíveis e provavelmente combinávamos 
mais do que Ren e eu. Como Sarah e Mike, éramos pessoas normais. E 
Ren... não. Ele era imortal e maravilhoso. Era perfeito demais. 

Eu podia facilmente visualizar uma vida com Li. Seria cômoda 
e segura. Ele seria médico e montaria um consultório num lugar 
tranquilo. Teríamos um casal de filhos e passaríamos as férias na 
Disney. As crianças fariam aulas de wushu e futebol. 
Comemoraríamos as datas festivas com os avós de Li e faríamos 
churrascos e convidaríamos todos os seus amigos e esposas. 

Uma vida com Ren era mais difícil de imaginar. Não parecia 
que fôssemos feitos um para o outro. Era como combinar Ken com 
Moranguinho. Ele precisava da Barbie. O que Ren faria no 
Oregon?Arranjaria um emprego? O que ele colocaria no currículo? 
Sumo Protetor e ex-Príncipe da Índia? Ficaríamos sócios de um 
parque temático de animais selvagens para que ele pudesse ser a 
principal atração nos fins de semana? Nada disso fazia sentido. Mas 
eu não podia negar meus sentimentos por Ren — não mais. 

Era dolorosamente óbvio que meu coração rebelde ansiava por 
ele. E, por mais que eu tentasse me convencer a me apaixonar por Li, 
a verdade era que eu era sempre atraída de volta a Ren. Eu gostava de 
Li. Talvez um dia pudesse até vir a amá-lo. Com certeza eu não queria 
magoá-lo. Não era justo. 

O que eu vou fazer? 

Depois de jogar mal por mais uma hora, Li me levou para casa. 
A noite caía quando ele parou na entrada da garagem. Olhei para as 
janelas em busca de uma sombra familiar, mas não vi nada. A casa 
estava escura. Li me acompanhou até a porta. 

— Ei, meus olhos estão me enganando ou é um visco que está 
pendurado aí? — perguntou ele, apertando meu cotovelo. 


Olhei para cima, para o visco, e me lembrei de minha decisão 
de beijar Li naquela noite. Isso parecia ter sido muito tempo atrás. 
Agora tudo tinha mudado. Não tinha? E Ren? Podíamos mesmo ser só 
amigos? Eu deveria arriscar tudo e dar uma chance a Ren? Ou optar 
por algo seguro como Li? Como escolher? 

Eu ficara em silêncio por muito tempo e Li esperava 
pacientemente por zz-_ha resposta. Por fim, virei-me para ele e disse: 

— É,sim. 

Levei a mão ao seu rosto e beijei-o delicadamente nos lábios. 
Foi bom. Não foi o beijo apaixonado que eu havia planejado, mas 
ainda assim ele parecia feliz. Li tocou meu rosto e sorriu. Seu toque 
era agradável. Seguro. Mas não chegava nem perto do que eu sentia 
com Ren. O beijo de Li era uma partícula de poeira no Universo, uma 
gota perto de uma cachoeira. 

Como viver com alguma coisa tão comum quando já se teve 
algo tão excepcional? Acho que só aprendendo a acalentar as 
lembranças. 

Girei a chave na fechadura e abri a porta. 

— Boa noite, Kelsey — gritou Li, feliz. — Até segunda. 

Fiquei observando o carro se afastar e entrei em casa para 
encarar o príncipe indiano que me esperava lá dentro. 

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