quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 8 - Veneno nas veias

A madrugada tinha esfriado a terra sob seu corpo, e o frio foi sua primeira
sensação, quando um murmúrio o acordou.
— Eu me chamo Bezerra. Sou um piloto. Quem é você?
O prisioneiro parecia ansioso.
— Alguém sabe que eu estou aqui? Você faz parte de algum grupo de
resgate?
— Me chamam de Crânio...
O piloto enterrou o rosto nas mãos quando ouviu que as respostas de Crânio
não traziam nenhuma esperança.
— Calma, amigo. Pelo menos agora você não está sozinho. Daremos um jeito
de fugir daqui.
— Fugir? Impossível. Você vai ver quando começarem o "tratamento" com
você...
— Tratamento? Que tratamento?
— Veja! — Bezerra estendeu os braços, como se Crânio pudesse ver alguma
coisa naquela escuridão. — É isso o que vão fazer com você. Vão lhe injetar
cocaína e heroína à força, até você esquecer seu próprio nome e desejar a
morte, como se deseja uma mulher! Veja! Eu, que nem bebo, estou todo furado
pela maior porcaria do mundo. Esse veneno já está em meu cérebro e meu
sangue já não pode circular sem ele. Eles conseguiram que eu desejasse a droga.
Eles me viciaram, Crânio!
O rapaz abraçou o pobre companheiro, como se consola uma criança que
caiu e esfolou o joelho.
— É claro que eles já poderiam ter me matado há muitos dias. Mas o
assassinato puro e simples de um piloto conhecido atrairia atenções indesejáveis.
Já descobri o que pretendem fazer, esses malditos. Quando eles me
considerarem "no ponto", vão me devolver ao quarto do hotelzinho onde eu
estava hospedado e me aplicar uma superdose, uma dose assassina. Quando meu
corpo for encontrado, todo mundo vai pensar que me viciei em tóxicos e morri
devido à superdose que teria aplicado em mim mesmo...
O efeito da última aplicação da droga tinha diminuído e Bezerra podia falar
quase claramente.
— Maldita a hora que decidi vir de São Paulo para cá! Achei que valia a pena
ganhar o triplo para pilotar aviões carregados de peles de jacaré na ida e de
caixas de contrabando na volta. Mas acabei descobrindo que o buraco em que
me meti era muito mais fundo. Era o buraco dos tóxicos, dos mais tremendos
crimes, Crânio. Acabei descobrindo que aqui há muito mais que ameaças à
ecologia e extermínio de jacarés. Aqui, a humanidade inteira está ameaçada...
Tentei sair, Crânio, tentei sair, mas ninguém sai deste buraco depois de ter se
afundado nele como eu me afundei... Agora eu sei demais e eles não podem me
deixar escapar vivo com tudo o que sei... Perderam a confiança em mim, e a
minha vida já não vale mais nada. Ninguém escapa do crime organizado
internacional... Crânio espantou-se.
— O crime organizado?! Agindo aqui? No Pantanal?
— O Pantanal sempre foi o paraíso dos fora-da-lei. Um lugar onde se está
destruindo o verdadeiro paraíso, arrasando-se a natureza impunemente em troca
do enriquecimento rápido. Uma rota perfeita para a passagem do contrabando e
dos tóxicos. O Pantanal foi escolhido como a sede ideal do crime organizado. É
uma operação gigante, Crânio. Estão transportando para cá uma grande
quantidade de ouro, para proteger a fortuna incalculável conseguida pelas mais
diversas e bárbaras atividades criminosas. O líder dessa operação é o Ente que...
— Ouvi o Centurião falar desse tal Ente. Quem é ele?
— Não sei. É o segredo mais bem guardado do Pantanal. O Ente centraliza
todo o poder. É uma espécie de tesoureiro do crime internacional. O guardião de
toneladas de ouro que devem estar escondidas aqui, em alguma parte. Por isso
bandidinhos sem importância como eu era não podem saber quem é o Ente. Nós
sempre recebíamos as ordens por mensagens de rádio, sem nunca falar
diretamente com o grande líder. Só os chefes de grupo, como o Centurião,
devem saber quem é o Ente,
— Mas o que a polícia...
— Nem adianta esperar a ação da polícia. Aqui, de vez em quando, são
presos alguns contrabandistas. Mas de que adianta isso, se os grandes
receptadores de peles continuam impunes, em suas mansões da Bolívia, do Brasil
ou do Paraguai? E o que esperar agora quando quem está agindo é o crime
organizado internacional?
— Eu não vim para cá por causa do crime internacional, Bezerra. Vim atrás
de um crime único. O professor Elias...
— Professor Elias? Ele foi assassinado, não foi?
— Como você sabe? Você conhecia o meu professor?
— Eu o conheci rapidamente, em Aquidauana, quando ele me mostrou uma
série de fotos que tinha feito aqui, no Pantanal.
— Mas como soube que ele foi assassinado?
— Aqui os bandidos falam tudo sem ligar se eu estou ouvindo ou não. Não
lhes importa o que eu saiba. Eu vou morrer mesmo, não vou? Parece que o
professor Elias descobriu alguma coisa muito comprometedora. Algum segredo
muito importante. O Centurião desapareceu daqui por uns dias. Quando voltou,
ouvi que tinha estado em São Paulo e que o "serviço" estava feito... que o tal
professor Elias não tinha mais nada pra mostrar a ninguém... e que nunca mais
fotografaria qualquer coisa...
Crânio escondeu a cabeça entre os joelhos. O Centurião fora mandado a São
Paulo especialmente para torturar e matar seu querido professor! Pobre Elias!
Nem suspeitava da importância de suas fotos, mas o Centurião torturou-o do
mesmo modo, só para ter certeza. Maldito Centurião! Maldito Ente! Malditos!
Crânio tinha descoberto o que tinha vindo descobrir. Mas de que lhe adiantava
isso agora? Estava engaiolado como um animal, à espera da morte...
— O professor Elias não desconfiava de nada, Bezerra. Não tinha consciência
de ter descoberto nada. Tudo o que ele pretendia era vender os slides que fez no
Pantanal para algum jornal ou revista.
— E acabou mostrando os slides para algum informante do crime organizado.
Malditos! Esses criminosos estão por toda parte!
Crânio suspirou.
— O que o Elias descobriu de importante estava em três daqueles slides.
— Tem certeza? Você viu os slides?
— Não. Quem matou Elias sumiu com eles. Mas tenho certeza que eles
foram fotografados aqui, neste aeroporto clandestino. Devia estar acontecendo
alguma coisa muito importante por aqui para que o Centurião se desse o trabalho
de ir até São Paulo atrás das fotos, assassinando o Elias.
Era preciso pensar. Era preciso agir. Era preciso ousar. Era preciso ser um
Kara, naquele momento.
— Bezerra, você examinou todos os slides. Você viu as fotos roubadas. Você
sabe o que havia nelas!
— Eu examinei as fotos, mas...
— Uma por uma?
— Sim. Mas como vou me lembrar delas?
— Tente, Bezerra.
— É impossível...
Crânio aproximou-se mais do piloto. Recordava-se do sucesso que tivera no
Colégio Elite ao hipnotizar a servente e fazê-la lembrar-se da mensagem que
Chumbinho deixara para guiar os Karas na pista da Droga da Obediência.
— Eu posso fazer você se lembrar, Bezerra. Eu conheço hipnose. Posso
penetrar no seu subconsciente e fazê-lo recordar as fotos. Você concorda em
submeter-se à hipnose?
— Agora? Por que não?
Crânio fez Bezerra recostar-se nas grades de bambu.
— Feche os olhos e não tema nada. Você está relaxado e se sente bem.
Quando eu contar até cinco...
Crânio caprichou o mais que pôde. Do sucesso daquela sessão de hipnose
dependia mais do que a descoberta de uma pista. Dependia a própria vida dos
dois!—
Agora você está de volta a Aquidauana, Bezerra. Procure lembrar-se. O
professor Elias está mostrando os slides para você. Diga o que está vendo.
— Porcos selvagens...
— Agora olhe o próximo.
— Árvores floridas... vermelhas... jacarés.
— Ótimo! Passe para outro.
— Um veado... bebendo... beira da água.
— O próximo, Bezerra.
Crânio deixou que o piloto descrevesse os slides um a um, como se os
estivesse examinando naquele momento. A seqüência era aquela, e Crânio foi se
entusiasmando à medida que se aproximava o ponto dos três slides fatídicos.
— Cemitério de jacarés... carcaças ao sol...
— Continue.
— Entre as árvores... descampado... mancha brilhando à distância...
— Que mancha é essa, Bezerra?
— Brilhante... sol refletindo... sol amarelo... sol vermelho... entre as árvores...
não dá para ver...
— Passe para o próximo.
— Descampado... avião brilhando ao sol... sol amarelo...
A terceira foto era igual. O professor Elias tinha fotografado apenas o avião
dos contrabandistas, sob as cores do sol, no aeroporto clandestino. E isso bastou
para que o matassem!
— Canalhas! — praguejou Crânio para si mesmo. — Temos de fugir daqui.
Essa gente tem de ser punida pelo que fez!
Os acontecimentos daquele dia terrível revolviam sua mente, embrulhavam
seu estômago vazio, faziam-no esquecer a própria sede. O Ente! Dono da vida e
da morte. Os coureiros, pendurados no alto das árvores, com as bocas cheias de
formigas carnívoras, provavelmente mortos pelos homens do Centurião. O crime
organizado não admitia criminosos autônomos no Pantanal. Os Formigas-paradas!
Repentinamente, o quadro iluminou-se em seu cérebro:
— Os homens do Centurião são os Formigas-paradas! Os assassinos
misteriosos do Pantanal! Não tem nada de folclore nem de crendice popular
nisso tudo. É isso! Descobri! Os Formigas-paradas! O Ente! Ente tem a mesma
pronúncia que Ant, que quer dizer "formiga", em inglês. O Ente é o líder dos
Formigas-paradas! Os Formigas-paradas são os criminosos que protegem o ouro
da Máfia! Toneladas de ouro! Escondidas aqui por perto!
Separados por centenas de quilômetros, dois Karas tinham chegado à mesma
conclusão.
Agora, mais que nunca, era preciso fugir dali e denunciar aqueles assassinos.
Voltou-se para o piloto hipnotizado:
— Bezerra, você agora se sente bem, está relaxado, e ouve apenas a minha
voz. Apenas a minha voz... Quando os bandidos vierem e aplicarem a injeção de
heroína, você se fingirá de morto. Fingirá tão bem que ninguém vai desconfiar.
Você só acordará com água. Lembre-se. Somente com água. Entendeu?
— Sim...
Sorriu, satisfeito com sua ideia. Sempre lavam os cadáveres antes de enterra-los.
O empregado da funerária teria uma bela surpresa!
— Agora você acordará e não se lembrará de nada. Você vai se sentir muito
bem, confiante. Quando eu contar até três, você acordará. Um... dois... três.
Acorde, Bezerra!
O piloto abriu os olhos. Olhou para Crânio e sorriu.
— Como é? Deu certo?
— Deu. Os slides eram mesmo do aeroporto clandestino. O professor Elias
fotografou um avião, sob o sol.
— O que foi que eu descrevi?
— Você falou: "mancha brilhando ao sol... sol refletindo,.. avião brilhando...
sol amarelo... sol vermelho... " Esses bandidos mataram o professor Elias só
porque ele descobriu onde as muambas são embarcadas e desembarcadas...
— Canalhas...
— Preste atenção, Bezerra. Não posso lhe explicar agora, mas você vai fugir
daqui.
— Eu?! Como?
— Não importa. Preste bastante atenção: o crime organizado está agindo no
Pantanal acobertado pela superstição popular que fala em espíritos assassinos, os
Formigas-paradas. Mas os Formigas-paradas não são fantasmas. São os
criminosos comandados pelo Ente. O grupo do Centurião faz parte deles. Eu
mesmo vi do que eles são capazes. Há doze corpos pendurados lá no cemitério de
jacarés!
— Meu Deus!
— O ouro deve estar escondido por aqui, por esta região. Provavelmente eles
estão assassinando os coureiros, e quem mais aparecer por aqui, para reforçar a
superstição e manter todo mundo bem longe do esconderijo principal. Entendeu
direito? Não se esqueça de nada. As autoridades precisam ser avisadas.
— Está bem. Só não entendo como eu vou fugir daqui...

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