quarta-feira, 2 de abril de 2014

Capítulo 7

As injeções não me incomodavam tanto, mas ardiam muito durante a hora seguinte à aplicação. O
pior é que me davam uma espécie de energia pulsante e esquisita que durava quase o dia inteiro.
Não era raro encontrar um punhado de guardas correndo em círculos no jardim ou assumindo as
tarefas mais pesadas só para gastá-la. O doutor Ashlar fazia questão de limitar o número de soldados
que a recebiam por dia.
— Soldado Leger — o médico chamou.
Entrei em seu consultório e fiquei de pé ao lado do pequeno leito perto de sua mesa. A ala
hospitalar era grande o bastante para acomodar a todos, mas era melhor fazer aquilo
individualmente.
Ele me cumprimentou com um aceno, e baixei a calça alguns centímetros. Me recusava a
estremecer quando o antisséptico frio tocava minha pele ou quando a agulha a perfurava.
— Pronto — ele disse contente. — Converse com Tom sobre as vitaminas e os suplementos.
— Sim, senhor. Obrigado.
A picada latejava a cada passo que eu dava, mas não queria demonstrar.
Tom me entregou algumas pílulas e um pouco de água. Depois de engoli-las, rubriquei um
papelzinho e recebi meu dinheiro, que deixei no quarto antes de sair para cortar lenha. A
necessidade de me mexer já era incontrolável.
Cada machadada liberava um pouco do meu desespero. Me sentia sobrecarregado com as injeções,
as perguntas de Avery e aquele sonho sinistro.
Pensei no que o rei dissera sobre America ser uma das descartáveis. A vitória dela parecia
improvável no momento, já que estava tão decepcionada com Maxon. Ainda assim, me perguntei: o
que aconteceria se a vencedora fosse alguém que o rei nunca quisesse que levasse a coroa?
E se Marlee era mesmo uma das favoritas — talvez até a escolha pessoal do rei —, em quem ele
estaria apostando suas fichas agora?
Tentei me concentrar, mas meus pensamentos ficavam turvos devido a meu desejo insaciável de
movimento. Desferi golpes e mais golpes, só parando duas horas mais tarde, por não haver mais nada
que cortar.
— Há uma floresta inteira ali atrás se você precisar de mais.
Me virei e dei com o velho tratador de cavalos, que sorria.
— Acho que já acabei — respondi. Enquanto recuperava o fôlego, tinha certeza de que os piores
efeitos da injeção já tinham passado.
Ele se aproximou.
— Você parece melhor. Mais calmo.
Ri, sentindo a medicação se estabilizar na corrente sanguínea.
— Hoje eu precisava queimar um tipo diferente de energia.
Ele sentou no toco que servia de apoio para as toras; parecia bem à vontade. Eu não fazia ideia do
que pensar sobre aquele cara.
Esfreguei as mãos suadas na calça, tentando pensar no que dizer.
— Ei, desculpe pelo outro dia. Não era minha intenção ser chato. Eu…
Ele ergueu a mão para que eu parasse por ali e emendou:
— Sem problemas. Eu também não queria pressionar você. É que já vi muitas pessoas deixarem o
mal ao seu redor torná-las duras ou teimosas. No fim das contas, perdem a chance de tornar o
mundo um lugar melhor porque só conseguem enxergar o pior.
Continuei com a sensação de que algo em seu rosto e em seu tom de voz me era familiar.
— Sei o que você quer dizer — falei, chacoalhando a cabeça. — Não quero ser assim, mas sinto
raiva demais. Às vezes tenho a sensação de saber demais. Ou de que fiz coisas que não posso
consertar. E isso não sai da minha cabeça. E quando vejo acontecer algo que não deveria
acontecer…
— Você não sabe direito o que fazer.
— Exatamente.
Ele concordou com a cabeça e acrescentou:
— Bom, eu começaria pensando sobre as coisas boas. Depois, perguntaria a mim mesmo como
posso torná-las ainda melhor.
Eu ri.
— Isso não faz sentido.
— Pense a respeito — ele falou, endireitando o corpo.
Na volta para o palácio, tentei me lembrar de onde o conhecia. Talvez ele vivesse em Carolina
antes de ir trabalhar lá. Montes de Seis costumavam vagar pelo país. Independente de onde ele
esteve e das coisas que viu, não deixou que nada o abatesse. Eu devia ter perguntado seu nome, mas
nos encontrávamos tanto que imaginei que logo toparia com ele novamente. Quando eu não estava
com um péssimo humor, ele até que parecia um cara bem bacana.
Depois de me lavar, segui em direção ao quarto, ainda pensando nas palavras do tratador de
cavalos. Quais eram as coisas boas? Como melhorá-las?
Peguei o envelope em que guardava o dinheiro. Não precisava gastar um centavo no palácio,
então enviava tudo para a minha família. Geralmente.
Rabisquei um bilhete para minha mãe:
Desculpe não ser muito desta vez. Tive que usar para outra coisa. Envio mais semana que vem. Amo vocês,
Aspen.
Enfiei pouco menos da metade do meu salário e a carta no envelope. Então peguei outra folha de
papel.
Eu sabia de cor o endereço de Woodwork; já o escrevera dúzias de vezes. O analfabetismo era
mais comum do que muita gente imaginava, mas Woodwork tinha tanto medo de ser tachado de
burro ou inútil que fui o único guarda a quem ele confiou esse segredo.
Dependendo de uma série de fatores — lugar, tamanho da escola, se tinha muitos Sete —, era
possível receber uma década de educação e não aprender quase nada.
Não é que Woodwork tenha caído nas lacunas do sistema educacional — ele fora jogado em um
grande abismo.
Agora, não fazíamos ideia de onde estava, como estava, ou se Marlee continuava a seu lado.
Senhora Woodwork,
É o Aspen. Todos sentimos muito pelo seu filho. Espero que a senhora esteja bem. Aqui vai o que sobrou do
último soldo dele. Queria garantir que a senhora recebesse. Cuide-se.
Ponderei se deveria escrever mais. Não queria que ela pensasse que estava recebendo esmolas, por
isso achei melhor ser breve. Mas talvez, de tempos em tempos, eu pudesse enviar algo a ela
anonimamente.
A família era boa, e Woodwork ainda estava por aí. Eu precisava tentar ajudá-los.

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