quarta-feira, 2 de abril de 2014

Capítulo 8

Esperei até ter certeza de que todos dormiam e então abri a porta de America. Fiquei empolgado ao
encontrá-la ainda acordada. Eu passara o dia desejando que ela me esperasse, e o jeito que ela
inclinou a cabeça e se aproximou de mim me deu a impressão de que já esperava me encontrar
naquela noite.
Como sempre, deixei a porta aberta e me ajoelhei ao lado da cama.
— Como vão as coisas?
— Tudo bem, acho. — Dava para notar por sua voz que não era bem assim. — Celeste me
mostrou este artigo hoje. Não sei se quero falar disso. Estou tão cansada dela.
Qual era o problema daquela garota? Será que se achava capaz de torturar os outros e conseguir a
coroa através de trapaças? Sua presença contínua no palácio era mais um exemplo do péssimo gosto
de Maxon.
— Acho que com Marlee fora, ele vai demorar para dispensar alguém, não?
Ela deu de ombros de maneira tão triste e breve que parecia ter gasto toda sua energia no gesto.
— Ei — chamei, pondo a mão sobre seu joelho —, vai ficar tudo bem.
America abriu um sorriso fraco.
— Eu sei. Só sinto saudades dela. E estou confusa.
— Confusa sobre o quê? — perguntei, ajeitando-me em uma posição mais confortável para ouvir.
Sua resposta veio desesperada.
— Sobre tudo: o que faço aqui, quem sou eu. Pensei que soubesse… — ela esfregou as mãos,
como se quisesse escolher as palavras certas. — Não sei nem explicar direito.
Olhei para America e me dei conta de que a perda de Marlee e a descoberta do verdadeiro
caráter de Maxon a tinham exposto a verdades que ela não queria enxergar. Isso desfez seu encanto
talvez rápido demais. Parecia paralisada, receosa de dar qualquer passo por não conhecer as
armadilhas ao longo do caminho. America tinha me visto perder o pai e aguentar as chibatadas de
Jemmy, e testemunhou minha luta para manter minha família segura e alimentada. Mas ela só vira
tudo isso; nunca sentira na pele. Sua família estava intacta — com exceção de seu irmão idiota —, e
ela nunca perdera nada de verdade.
Talvez com exceção de você, imbecil , parte de mim acusava. Afastei o pensamento. O foco no
momento era ela, não eu.
— Você sabe quem é, Meri. Não deixe eles mudarem você.
Ela mexeu a mão, como se estivesse prestes a tocar a minha. Só que não o fez.
— Aspen, posso lhe perguntar uma coisa?
Seu rosto ainda estava repleto de preocupações. Concordei com a cabeça.
— É meio estranho. Se para ser princesa eu não precisasse casar com ninguém, se fosse apenas um
cargo que eu pudesse escolher, você acha que eu seria capaz?
Eu esperava qualquer coisa, menos aquilo. Foi difícil crer que ela ainda considerava a hipótese de
se tornar princesa. Mas talvez não considerasse. Era só uma especulação, e ela tinha dito que pensava
naquilo sem estar ao lado de Maxon.
Levando em conta a maneira como ela tinha lidado com tudo que acontecera em público, pude
imaginar que se sentiria impotente ao enfrentar as coisas que se passavam atrás de portas fechadas.
America era boa em várias coisas, mas…
— Perdão, Meri. Não acho. Você não é calculista como eles — respondi, tentando demonstrar
que não era um insulto. Na verdade, estava feliz por ela não ser esse tipo de pessoa.
Ela franziu as sobrancelhas finas.
— Calculista? Como assim?
Soltei um suspiro, tentando pensar em como explicar sem entrar em muitos detalhes.
— Estou em toda parte, Meri, e escuto muita coisa. Há muita agitação no sul, nas áreas com
grande concentração de castas inferiores. Segundo os guardas mais antigos, essas pessoas nunca
concordaram muito com os métodos de Gregory Illéa, e já faz tempo que há conflitos na região.
Dizem por aí que foi por isso que o rei ficou fascinado pela rainha. Ela veio do sul, e sua escolha
acalmou as coisas por uns tempos. Parece que já não é mais assim.
Ela refletiu sobre minhas palavras e comentou:
— Isso não explica o que você quis dizer com calculista.
O que poderia acontecer se eu compartilhasse com ela o que sabia? Ela tinha mantido nosso
relacionamento em segredo por dois anos. Podia confiar nela.
— Outro dia, antes dessa história de Halloween, eu estava em um dos escritórios. Eles discutiam
sobre simpatizantes dos rebeldes no sul. Pediram-me que levasse umas cartas para a ala postal em
segurança. Havia mais de trezentas cartas, America. Trezentas famílias rebaixadas de casta por não
terem denunciado alguma coisa ou por terem ajudado alguém que o palácio considerava uma
ameaça.
Ela chegou a perder o ar, e pude notar dezenas de situações se desenrolando diante de seus olhos.
— Eu sei — continuei. — Dá para imaginar? E se fosse você? Você só sabe tocar piano, e de
repente, tem que arrumar emprego em um escritório. Como encontrar um emprego na área? A
mensagem é bem clara.
A preocupação dela mudou de foco.
— E Maxon… ele sabe disso?
Era uma boa pergunta.
— Acho que sim. Falta pouco para ele governar sozinho.
Ela assentiu. Deixei que absorvesse a informação junto com todas as outras que descobrira
recentemente sobre seu “namorado”.
— Não conte para ninguém, certo? Um deslize como esse poderia custar meu emprego — alertei,
acrescentando mentalmente: “e muitas outras coisas”.
— Claro. Já esqueci.
Seu tom de voz era leve e tentava mascarar suas preocupações. Seu esforço me fez sorrir.
— Sinto saudades de estar com você, longe de tudo isso. Saudades dos nossos problemas de antes
— lamentei. O que eu não daria para estar irritado porque ela tinha me preparado um jantar…
— Entendo o que você quer dizer — ela disse, com um riso sincero. — Andar às escondidas pelo
meu quintal é tão mais fácil do que no palácio.
— E desdobrar-me para arrumar uma moedinha para você era melhor que não ter nada para
oferecer — acrescentei, dando uma batidinha no jarro ao lado de sua cama. Sempre achei um bom
sinal ela mantê-lo por perto mesmo antes de eu chegar ao palácio. — Eu não sabia que você
guardava todas até a véspera da sua partida — completei, lembrando do impressionante peso que
senti quando America virou o jarro sobre minhas mãos.
— Claro que eu guardava! — ela exclamou, orgulhosa. — Quando você estava longe, elas eram
tudo o que me restava. Às vezes, eu as despejava em cima da cama só para juntá-las de novo. Era
bom ter algo que você tinha tocado.
Ela era como eu. Nunca peguei nada dela para guardar, mas armazenava cada momento como se
fosse um objeto. Eu repassava essas memórias sempre que as coisas estavam mais calmas. Passava
mais tempo com ela do que ela jamais imaginara.
— O que você fez com elas? — America quis saber.
Abri um sorriso.
— Estão em casa, esperando.
Antes de America partir para a Seleção, eu tinha guardado um pouco de dinheiro para me casar
com ela. Mais recentemente, pedi à minha mãe que separasse um pouco de cada pagamento para
mim. Tinha certeza de que ela sabia qual era o destino daquele dinheiro. Mas entre todas as minhas
economias, aquelas moedinhas eram a coisa mais preciosa.
— Esperando o quê?
Um casamento decente. Alianças de verdade. Nossa casa própria.
— Isso eu não posso dizer.
Eu lhe contaria tudo em breve. Ainda estávamos percorrendo nosso caminho de volta um para o
outro.
— Ótimo — ela falou, fingindo estar irritada. — Guarde seus segredos. E não se preocupe por não
ter nada para me dar. Já estou feliz por tê-lo aqui, por finalmente podermos acertar as coisas, mesmo
que não seja como nos velhos tempos.
Franzi a testa. Estávamos assim tão distantes do que já tínhamos sido? Tão distantes que ela
precisava afirmar com todas as letras? Não. Não para mim. Ainda éramos os mesmos de Carolina, e
eu precisava fazer com que se lembrasse disso.
Queria dar o mundo a ela, mas tudo o que tinha no momento eram as roupas do corpo. Olhei
para baixo, arranquei um botão e o ofereci a ela.
— Literalmente, não tenho nada mais a oferecer, mas você pode agarrar-se a isto, uma coisa que
toquei, e pensar em mim a qualquer hora. Pode ter certeza de que estarei pensando em você
também.
Ela pegou o botãozinho dourado da minha mão e olhou para ele como se eu lhe tivesse dado a lua.
Seus lábios tremiam e ela respirava devagar, como se estivesse prestes a chorar. Talvez eu tivesse
estragado tudo.
— Não sei como fazer isso agora — confessou. — Sinto que não sei mais fazer nada. Eu… eu não
esqueci você, certo? Você ainda está aqui.
Ela levou a mão ao peito, e vi seus dedos se cravarem na pele, na tentativa de acalmar o que quer
que se passasse em seu coração.
Sim, ainda havia um longo caminho a percorrer, mas sabia que passaria rápido se o percorrêssemos
juntos.
Sorri. Já não precisava saber mais.
— Isso basta para mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens

Não dê spoiller!
Deixem comentários e incentive a dona do blog a continuar postando! Façam pedidos!